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Refutar fala transfóbica de Nikolas Ferreira é dar palanque para imbecil?
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No dia em que foi revelada a conversa entre Jair Bolsonaro (PL) e o então chefe da Receita Federal sobre a liberação das joias presenteadas pela Arábia Saudita, houve quem apostasse que, na ausência do ex-presidente, não demoraria para algum integrante da tropa de choque bolsonarista vestir peruca para ganhar holofotes e desviar as atenções.
De fato, não demorou.
No Dia Internacional das Mulheres, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu à tribuna da Câmara com uma cabeleira postiça para dizer, sob o pseudônimo de "Nicole", que "as mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres".
Levava, assim, à tribuna, uma corrente de WhastApp que durante a campanha assombrou corações e mentes com espantalhos como os do banheiro unissex, uma bandeira atribuída a adversários da esquerda e que não constava no programa de candidato algum.
Ainda assim, Nikolas dizia estar ali para defender a liberdade de homens indispostos a aceitar a presença de mulheres trans em banheiros femininos frequentados por suas filhas.
O discurso mostrou que o bolsonarismo passa bem, obrigado, sem seu líder por perto.
Na tribuna, Nikolas reciclou, agora com chinó, a velha cartilha da extrema direita de apontar o dedo para perigos inexistentes, espalhar o medo com lentes de aumento e obter voto e atenção com desinformação.
No Brasil, 33,4% das mulheres já vivenciaram violência física ou sexual, segundo uma pesquisa Datafolha divulgada no começo do mês em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Duas em cada dez mulheres brasileiras (21,1%) dizem ter sido forçadas a manter relações sexuais contra sua vontade, e 24,5% já sofreram agressões como tapas, batidas e chutes.
Não eram agressores amoitados em banheiros profanados.
A mesma pesquisa apontou que mulheres separadas ou divorciadas eram as principais vítimas da violência masculina (41,3%), acima de casadas (17%), viúvas (24,6%) e solteiras (37,3%).
A maioria dos agressores eram ex-companheiros incapazes de aceitar o fim do relacionamento.
Deputados como Nikolas fariam bem se, em vez de maquiarem espantalhos, assumissem onde mora o perigo e mostrassem alguma solidariedade com as pessoas que mais sofrem com as agressões praticadas pelos homens das melhores famílias.
Seu histórico de ofensas, no entanto, como quando escracha e expõe à violência mulheres alvo de gordofobia, aponta para outra direção.
Como um bom algoz, Nikolas se refestelou com a repercussão de sua performance, que gerou uma reprimenda do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e pedidos de cassação anunciados por colegas como Tabata Amaral (PSB-SP).
Para o deputado, tudo não passou de "histeria".
O check-list do usuário típico da redpill estava completo.
Mal a confusão havia esfriado e já tinha gente defendendo que era melhor ignorar as falas do deputado imberbe e focar a atenção no que interessava: as joias da Arábia, a pressão sobre o poder público para fins privados, a responsabilização dos arquitetos do 8 de janeiro e por aí vai.
Não é uma discussão tão simples.
Primeiro porque não se deve ignorar o ataque aparentemente gratuito de quem usa a tribuna para reforçar estereótipos e referendar a violência contra pessoas que, nesse jogo desigual de forças, são as vítimas, e não as algozes, como sugere o deputado.
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo há 14 anos seguidos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Foram 131 mortes, quase todas com requintes de crueldade, só em 2022.
Discursos como o do deputado mineiro autorizam "pais de meninas" assustados a descer o porrete em transexuais por medo de que aconteça algo nos banheiros femininos com suas filhas. Mesmo que elas nunca frequentem o mesmo banheiro, como quer denunciar o deputado.
Esse é um ponto.
O outro é que não adianta agora falar em palanque para idiota quando ele já subiu a tribuna como deputado mais votado do Brasil.
A foto de Nikolas com a peruca estampou as capas de jornais no dia seguinte, como se este fosse um recibo de que um "moleque", como foi chamado pelos pares, ganhava mais importância do que merecia.
Mas foi no caminho até a chegada à tribuna que falharam todas as instâncias para mostrar ao respeitável público que a simples ideia de aquele sujeito sonhar em ser representante da população era absurda.
Ele chegou até ali porque sobrou ou porque faltou atenção para as barbaridades que já espalhava antes?
Não é uma pergunta fácil de responder.
Uma vez eleito, tudo o que ele quer agora é uma moção de censura para atribuir a adversários a pecha de perseguidores antidemocráticos e incapazes de respeitar o direito à opinião de quem tem imunidade parlamentar.
Por ironia, é justamente gente como ele que sabota os esforços para levar à escola projetos de educação e informação que permitiriam visualizar, com espírito crítico e informação precisa, quem mata, quem morre e como funciona a violência de gênero no país.
Os grupos que apontam o dedo para o elo mais frágil da sociedade são os mesmos que correm para proteger o avô religioso e abusador, não exatamente nessa ordem, quando algum escândalo na família explode e/ou é abafado.
Nesse round, gente como Nikolas ainda vence de lavada. Mas não vai vencer sempre.
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