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Matheus Pichonelli

REPORTAGEM

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Filme 'Memória Sufocada' traça paralelos entre ditadura e os anos Bolsonaro

O torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante depoimento à CNV - Sérgio Lima/Folhapress
O torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante depoimento à CNV Imagem: Sérgio Lima/Folhapress

Colunista do UOL

31/03/2023 04h00

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O cineasta Gabriel Di Giacomo, 38, dedica a todos os seus professores o filme "Memória Sufocada".

Filho de professores, com quem teve aulas de história, ele conta ter crescido em meio a noções estabelecidas a respeito das consequências do golpe militar de 1964, tema de seu documentário. "Meus pais viveram a infância e a adolescência na ditadura e esse era um assunto recorrente em casa. Tínhamos uma visão clara do que aconteceu e ninguém no Brasil parecia questionar."

Pouco antes da eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018, ele percebeu que essa verdade histórica passou a ser colocada em dúvida com a ascensão da nova direita conservadora. "As pessoas começaram a se perguntar se a ditadura teria sido assim tão ruim. Eu via uma relativização cada vez maior, e não só dos mais fanáticos. Isso me preocupou."

Com documentários selecionados em festivais internacionais e trabalhos em direção e roteiro de programas de TV, Di Giacomo queria fazer um filme "didático", que passasse pela galeria dos presidentes do regime militar. A ideia era capturar a atenção de quem ainda hoje está "confuso" sobre o que foi e o que representou a ditadura no Brasil.

O resultado chegou aos cinemas nesta quinta-feira (30), véspera do 59º aniversário do golpe militar.

O material didático, assim definido por Di Giacomo, mostra as ferramentas usadas pelo cineasta para obter as informações sobre o período. Tudo o que é exposto ali está disponível a qualquer pessoa com acesso a internet. Entre uma cena e outra, uma seta indica os caminhos até as páginas de onde os materiais foram retirados, inclusive diálogos do governo dos EUA nos dias anteriores à deposição de João Goulart.

"A intenção é mostrar o caminho da busca para cada um construir ou desconstruir suas próprias verdades e entender. Para isso fizemos um site com todas as informações que usamos no filme. Está tudo lá para quem quiser fazer seu próprio filme", diz Di Giacomo, que compara o processo de edição com uma montagem de quebra-cabeças realizada durante o período mais crítico da pandemia, quando quase não saía de casa.

Em diversos momentos ele teve de parar e incluir "peças" atualizadas da mesma história, como as manifestações contra as medidas de isolamento que se tornaram um ensaio de protestos golpistas nos meses seguintes. "O filme tem cenas dessas manifestações, com pessoas já pedindo a volta da ditadura. E eu pensava: 'preciso encaixar isso, é a peça que falta'. O fanatismo que a gente viu em 8 de janeiro foi plantado ali."

O filme, embora baseado em imagens de arquivo, não deixa de trazer ineditismos, como a visita da equipe de filmagem à antiga sede do DOI-Codi em São Paulo, um centro de tortura de arquitetura preservada ao lado de uma delegacia na Vila Mariana.

Mesmo quem acompanha a história e o noticiário se surpreende ao visualizar cenas antigas, ignoradas ou já desbotadas na lembrança. (Eu, por exemplo, me assustei ao ver, pela primeira vez, uma entrevista do ex-vice-presidente Hamilton Mourão na qual ele chama o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra de "ídolo". A entrevista aconteceu no processo de montagem do documentário e também foi encaixada de última hora.)

O próprio Di Giacomo diz ter visto muitas cenas pela primeira vez durante a montagem. Uma delas foi uma entrevista, digamos, amigável entre o jornalista Alexandre Garcia, hoje porta-voz de extremistas, e o ditador João Batista Figueiredo, de quem foi assessor. Foi nessa entrevista que o ditador pediu para ser esquecido.

Outra memória resgatada foi a de uma palestra de Carlos Lacerda em uma universidade dos EUA, onde explica em um inglês impecável seus planos para montar uma frente ampla com os antigos adversários João Goulart e Juscelino Kubitschek e enfrentar a ditadura que ajudou a criar — um plano que morreu antes de ser colocado em prática.

O filme entra em cartaz quase dez anos depois da publicação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade — para muitos, um gatilho para o revanchismo militar que pegou carona no bolsonarismo.

Passada uma década, os confrontos entre vítimas e torturadores ganham, assim, novas configurações quando vistos em tela grande em 2023, num efeito semelhante, embora documental, ao da reconstituição feita pelo diretor Santiago Mitre em "Argentina, 1985".

Graças ao filme argentino, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, muita gente que já não tinha ideia do que foi o regime militar de seu país se assombrou com as cenas inspiradas em depoimentos reais das vítimas de tortura durante o julgamento de militares — como uma mãe obrigada a dar à luz algemada no banco de trás de uma viatura sem poder segurar a filha.

Um dos méritos de "Memória Sufocada" foi ter trazido ao centro da cena depoimentos à CNV que já andavam esquecidos. As cenas atualizam a tensão do encontro de Ustra, ídolos de Mourão e Bolsonaro, e presos políticos torturados sob suas ordens.

"Os trabalhos da Comissão não atingiram a população na época. Não é uma linguagem simples, os depoimentos são longos e pouco acessíveis. Não tem a linguagem frenética da internet. No documentário tentei traduzir e dar uma dinamizada para que houvesse esse engajamento", afirma.

Para o diretor, esse esforço é um exercício de enfrentamento num momento em que grupos conservadores possuem suas próprias produtoras para produzir verdades audiovisuais paralelas a respeito do regime, com uma linguagem que ele resume como "pop, muito acessível e bombardeada com propagandas nos meios eletrônicos". Um dos mitos dessas produções é que a ditadura foi um mal necessário diante da ameaça comunista — que nenhum historiador minimamente sério no país diz ter existido.

"Uma vez me assustei quando vi o pai de um amigo do meu filho me indicar uma dessas produções. Ali eu vi que o negócio estava chegando às pessoas."

Di Giacomo conta ter assistido diversos filmes sobre a ditadura antes de fazer "mais um". Ao fim do processo, notou que "Memória Sufocada" era um registro de como foi viver em um Brasil governado por um apoiador do regime, fã de torturador e que tinha como livro de cabeceira as memórias de Brilhante Ustra, a quem dedicou seu voto durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).

"Quando vejo o filme, fico meio deprimido. Em cada dia da edição acontecia alguma coisa ruim no governo. E então a gente corria em busca de uma nova peça do quebra-cabeças. Quando conseguia alguma imagem de arquivo, ficava contente e impactado, ao mesmo tempo. É bem pesado ver em cena um torturador dissimulado, como o Ustra. E saber que o pensamento evoluiu tão pouco no Brasil. Mas foi assim que tentamos fazer um paralelo entre passado e presente."

Esse paralelo, segundo o diretor, só se tornou possível porque os agentes da tortura e outros crimes nunca foram responsabilizados.

Outro link inevitável entre os dois momentos históricos é a sequência de propagandas, aparentemente ingênuas, produzidas pelos militares no auge do regime. Di Giacomo se preocupou em traduzir o que eram organizações como o IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), braço de grupos conservadores que contavam com financiamento dos EUA para espalhar desinformação e medo na população brasileira nos anos pré-golpe. Eram uma espécie de gabinete do ódio da época.

"Aquilo tem tudo a ver com o discurso do Bolsonaro", diz o diretor. "É essa ideia de que uma tragédia se aproxima, o inimigo está chegando. É mais fácil manipular pessoas assustadas. Ainda hoje, 44% da população brasileira diz ter medo de uma ameaça comunista. O disparo de fake news pelo WhatsApp, bancado por empresários, faz hoje o que o IPÊS fez na época com palestras, panfletagens e marchas com teor conspiratório."

Em uma das propagandas resgatadas pelo documentário, os militares responsabilizam o povo pelo aumento da inflação. A peça ensinava as pessoas a pechinchar na feira.

Muitos anos depois, Bolsonaro apelou para o patriotismo de empresários para reduzirem os preços nos supermercados. "Esse é um tema que eu queria ter avançado mais. A economia na ditadura também foi um desastre, com endividamento e inflação descontrolados, além do favorecimento a grandes empreiteiras, que começa nessa época. Se as pessoas não se compadecem diante de todos os outros males, que pelo menos pensem que economicamente a ditadura também foi uma tragédia", diz o cineasta.

Para Di Giacomo, a homenagem aos professores, no fim do filme, é uma forma de dizer quem são os agentes da atualidade que podem enfrentar a desinformação. "É também uma homenagem aos meus pais."