'Argentina, 1985': quem é a bebê que nasceu em uma viatura da repressão
Teresa Laborde, 44, atribui as dores que sempre sentiu nas costas aos minutos após sair do útero da mãe, ter caído no chão e ficado pendurada pelo cordão umbilical — depois ter quicado, sem nenhuma contenção, durante o trajeto do carro que as levava, a toda velocidade, pela estrada esburacada que unia as cidades de La Plata e Buenos Aires.
Durante o parto e até o final do trajeto, a mãe de Teresa, Adriana Calvo de Laborde, uma física de 29 anos, foi mantida com as mãos algemadas para trás e olhos vendados, com o automóvel em movimento.
"Quem dirigia e o acompanhante riam, diziam que dava na mesma, que iam me matar e matar o bebê, e que não deveria me importar", relatou Adriana no famoso "Julgamento das Juntas", como ficou conhecido o processo que levou às primeiras condenações de comandantes militares da ditadura mais sangrenta da região (1976-1983) — história contada no filme "Argentina, 1985", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Sadismo fardado
Apesar das súplicas de Adriana, Teresa foi mantida chorando por horas, nua e suja, longe dos braços da mãe. Nas horas pós-parto, a placenta da puérpera foi retirada com violência e ela foi obrigada a limpar o ambiente de um dos centros de prisões clandestinas da ditadura, sem roupa e sob olhares e risos de agentes.
A violência com requintes de sadismo, cometida em 1977, choca o público do filme protagonizado por Ricardo Darín, no papel do promotor Julio Strassera, que ficcionaliza o antológico julgamento que levou ex-presidentes e oficiais ao banco dos réus.
Em Temperley, região do município de Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, onde mora, Teresa contou ao TAB que assistiu ao filme acompanhada do pai, químico, também sequestrado pela ditadura argentina, e dos irmãos mais velhos que, como ela, cresceram em meio ao medo e à angústia das ameaças da ditadura.
Ficaram como sequelas do terror vivido as dores nas costas e a perda de audição do ouvido esquerdo, devida à má formação de um nervo do rosto que pode se explicar pela má nutrição da mãe na prisão. Teresa cresceu escutando como as companheiras de cela, que tiveram seus bebês roubados pelas "forças de segurança", ofereciam à mãe dela o caldo ralo que recebiam a cada três ou quatro dias, para que Adriana conseguisse amamentar.
Professora universitária
Teresa Laborde, que já se dedicou à alfabetização de crianças em áreas carentes do país, é hoje professora de Arte e Sociedade na Universidade Nacional de Lanús, na Grande Buenos Aires. Ela se emociona a cada vez que conta o que viveu com a mãe no centro clandestino de repressão conhecido como "Poço de Banfield". Ficou também o medo experimentado durante a infância, depois que a mãe fundou a Associação de Ex-Presos Desaparecidos e prestou depoimento contra seus algozes.
"Meus irmãos tinham um plano de fuga pela janela, caso acontecesse alguma coisa", lembra, da época em que tinha 6, 7 anos. A família teve o telefone grampeado, percebia-se seguida na rua e chegou a considerar o exílio. Ameaças eram frequentes. "Lembro de estar comendo ravióli no domingo e de ligarem para dizer que tinha uma bomba em casa. Lembro de sair com o prato de ravióli na mão, para ver se a casa explodiria ou não", relata.
Na época, sua mãe era uma das testemunhas no julgamento do repressor Miguel Etchecolatz, ex-diretor de investigações da polícia da província de Buenos Aires. Um dos autores do processo contra ele, Julio López, desapareceu em 2006, no dia em que teria que comparecer para conseguir o quórum necessário para dar seguimento a uma audiência.
A frequência das ameaças era tanta que ela admite se identificar com o humor com que o filme argentino retrata as ligações para Strassera e sua família, no período de preparação para o julgamento. "A gente também fazia piada lá em casa, senão não tinha como. A gente também dizia 'ah, pai, o cara das ameaças ligou o dia inteiro'", lembra-se. "Dei muita risada com essa cena."
Na sala de cinema
Os irmãos assistiram de mãos dadas à cena do depoimento de "Argentina, 1985". O pai chegou a responder para a tela em determinados momentos. Mas ela conta que se admirou como, apesar de a sala estar lotada, "não se escutava uma mosca" na hora. Após o término do filme, na fila do banheiro, ela ouviu incógnita mulheres, jovens e senhoras comentando o trecho, impressionadas.
"Aconteceu há décadas, mas muita gente só ficou sabendo agora", diz Teresa. "Duas senhoras de 65 anos falavam que não sabiam que tinha sido assim, que nunca contaram para elas dessas aberrações." O que mostra o quanto, apesar da intensa luta de organizações de direitos humanos, é importante que o cinema tenha voltado ao tema.
"Minha mãe voltou do julgamento indignada, contando como queriam que as Mães da Praça de Maio tirassem os lenços da cabeça, e como haveria prescrição [de parte] dos crimes. Que o [presidente da época, Raúl] Alfonsín tinha que fazer isso, mas não iriam mostrar realmente tudo o que aconteceu."
Hoje, a Argentina é o país modelo na América do Sul no julgamento das atrocidades cometidas pela ditadura — o Brasil sequer julgou os torturadores e assassinos do regime e muito menos os comandantes do período militar.
Ao contrário do Brasil, que manteve o manto da Lei da Anistia (1979), na Argentina as chamadas "leis de impunidade" (que limitavam processos aos militares por crimes da época) e os indultos dados por Carlos Menem (1989-1999) foram revertidos na primeira década do século 21. Desde então, 1.088 pessoas foram condenadas e 166 absolvidas.
Atualmente, 14 processos estão sendo julgados, mas 1.371 acusados morreram antes de receber qualquer sentença. Hoje, dos 725 condenados presos, 551 cumprem prisão domiciliar.
Além da ficção
Teresa ressalta alguns pontos de divergência em relação à forma como o julgamento foi levado às telas. Como o fato de que ele não foi transmitido por rádio — somente alguns trechos saíram na imprensa escrita. "Se as pessoas de fato tivessem ouvido ou visto esses depoimentos, teria tido muito mais impacto."
Ela pontua também que Hebe de Bonafini, da Associação Mães da Praça de Maio, resistiu ao pedido de retirar da cabeça o lenço que simboliza a luta pela aparição dos presos políticos pela ditadura — respondendo que então os militares deveriam tirar o uniforme.
Ela também conta que sua mãe ficou aterrorizada por ter de esperar para depor na sala ao lado da que estavam os militares à espera do julgamento. Foram três horas de agonia. Ainda assim, reconhece a importância simbólica do acontecimento. "Esse julgamento foi um símbolo de luta popular, da população dizendo 'nunca mais'. Já não eram só as Mães de Maio; os argentinos já estavam cansados, não dava mais para ocultar a situação."
Desde a estreia do filme, o cotidiano de Teresa se transformou: agora, ela não para de ser chamada para palestras, encontros com estudantes, homenagens e programas de TV para relembrar a história de sua mãe e de seu nascimento.
"Depois de tantos anos, este é o momento", diz, com os olhos cheios de lágrimas. "Todos esses auditórios, com ouvidos abertos e comovidos para escutar o que aconteceu —- é isso que minha mãe teria querido."
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