'Vivi o fundo do poço': perseguidos na ditadura têm reparação negada
Sandra Rodrigues caminhava sem rumo pelo centro de São Paulo com uma câmera a tiracolo. Fotografar era apenas um hobby da jornalista e estudante de filosofia, então com 24 anos. Entrou por acaso na rua de uma agência bancária que no momento recebia dinheiro do Banco Central. A imagem da equipe que fazia segurança ostensiva, em suas palavras, parecia cena de filme.
Uma voz dentro dela falou: "não faz isso". Sandra continuou andando, deu a volta no quarteirão e bateu duas fotos, de longe. Ainda assim, os agentes de segurança perceberam o registro e a pegaram, na hora. O ano era 1973.
Levada ao DOI-Codi, órgão de inteligência e repressão da ditadura militar, Sandra ficou presa por duas semanas. Sem fazer parte de movimento político, a jornalista relata que apanhou e foi submetida a choques elétricos. "Na época minha filha tinha 2 anos. Jamais me arriscaria em alguma atividade clandestina."
Sandra é hoje uma senhora de cabelos brancos, magra, delicada. A voz sai bem baixinha, e é especialmente difícil escutá-la em meio à gritaria dos galos no Parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, onde quis conversar com a reportagem do TAB. "Detesto falar sobre esse tema, mas pelo menos estamos num lugar gostoso", explica.
Pelo trauma sofrido, a jornalista entrou com um pedido de reparação em 2014, indeferido pela Comissão de Anistia em setembro último.
Foi o que aconteceu com quase todos os casos de reparação definidos pelo atual governo. Segundo dados do Diário Oficial coletados pelo advogado Humberto Falren, especialista em casos de anistia, 79% dos pedidos foram indeferidos, 18%, anulados, ou seja, revistos e cancelados, e 3% deferidos. Durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, os indeferimentos ficavam em torno de 50%, afirma Eneá de Stutz e Almeida, professora de Direito da UnB (Universidade de Brasília) e conselheira da Comissão de Anistia de 2009 a 2018.
"Não vou dizer que fiquei surpresa, mas sim, estou frustrada. As marcas de quem foi preso e torturado são profundas, e não atingem só a mim. Estive no fundo do poço. Minha vida era uma e depois virou outra", conta Sandra, hoje aos 74 anos, bisavó e aposentada. "Poderia recorrer na Justiça, mas será que estarei viva até concluir o processo?"
Segundo a advogada de Sandra, Paula Febrot, o parecer de indeferimento da Comissão de Anistia afirma que ela não sofreu "prejuízo funcional" porque, apesar de ter sido presa, a jornalista não perdeu o emprego após o ocorrido.
Reparação governamental
Criada em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Anistia concedeu status de anistiado político a cerca de 39 mil pessoas, segundo informações do próprio órgão, que não especificou em quantos desses casos houve também reparação econômica.
A partir de 2007, com Tarso Genro no Ministério da Justiça e Paulo Abrão na presidência do órgão, a Comissão de Anistia ganhou vulto. Além da compensação econômica, o governo propunha atos de reparação simbólica e projetos educativos. Também provia atendimento psíquico gratuito a vítimas e familiares.
A partir de 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência, após o impeachment de Dilma Rousseff, o órgão passou a sofrer interferências mais sérias, analisa José Carlos Moreira da Silva Filho, professor de Direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), ex-vice-presidente e ex-conselheiro da Comissão da Anistia.
"No segundo dia do governo Temer, o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes [hoje ministro do Supremo Tribunal Federal], fez algo que nunca tinha acontecido antes na Comissão: exonerou um conjunto de conselheiros sem dar nenhuma justificativa", afirma José Carlos, que foi um dos sete conselheiros exonerados.
Foram nomeadas 19 novas pessoas para compor o conselho da Comissão, segundo José Carlos, sem tradição na defesa dos direitos humanos e nas pautas relacionadas à justiça de transição. Até então, havia um debate entre os conselheiros sobre quem era mais adequado indicar e o ministério geralmente acolhia as sugestões do Conselho. "A partir do governo Temer nada mais era conversado, então nem sabemos se havia algum critério nas indicações ou não", conta Stutz de Almeida.
O trabalho como conselheiro tem tempo indeterminado e não é remunerado. Segundo a professora, a maior parte dos novos conselheiros pediu para ser dispensada depois da primeira sessão. "Eles não tinham tempo para a demanda de trabalho e as reuniões quinzenais em Brasília, ou faltava estrutura emocional para lidar com um tema tão pesado."
O aumento no volume de indeferimentos ocorreu a partir da entrada de Torquato Jardim no Ministério da Justiça, em 2017. De setembro daquele ano ao fim de 2018, 1.862 pedidos foram indeferidos de um total de 1.899, segundo levantamento feito por Humberto Falren. Nomeado presidente da Comissão de Anistia em maio de 2017, o advogado Arlindo Fernandes de Oliveira pediu demissão do cargo em setembro daquele ano. Ele discordava da criação de um órgão de revisão, pelo Ministério da Justiça, que na prática passou a reverter reparações já aprovadas pelos conselheiros. Em comunicado aos integrantes da Comissão, também criticou o fim do apoio do governo ao programa de atendimento psíquico a vítimas da ditadura.
Tudo na canetada
Eunice Souto, 69, teve uma crise de pânico na madrugada do dia em que conversou com a reportagem. Na noite anterior, redigiu um texto para enviar a seu advogado e recorrer da decisão da Comissão de Anistia, que indeferiu o pedido de reparação no fim de 2021.
"A gente não é normal, né? Eu tenho psiquiatra, faço terapia, tomo medicamento", diz Eunice, que passou sete anos exilada na Guiné-Bissau. Ela, o então marido Nestor Cozetti e a sogra, Wanda Cozetti, deixaram o Brasil para escapar da perseguição da ditadura.
A sogra, Wanda, militante política da AP (Ação Popular), ficou cinco anos presa e sofreu torturas que a deixaram com sequelas físicas. Vivia com Nestor e Eunice no Rio de Janeiro, quando o Supremo Tribunal Militar decidiu que ela teria de cumprir mais três anos de pena. Foi quando Eunice e Nestor decidiram sair do Brasil, em 1977, para depois levarem Wanda. Foram à Guiné-Bissau para trabalhar com a equipe do educador Paulo Freire, à época exilado político na Suíça, que dirigia um programa de alfabetização naquele país.
O parecer de indeferimento de Eunice alega "insuficiência quanto à comprovação da existência de perseguição de caráter exclusivamente político".
A Comissão, hoje
O órgão, antes ligado ao Ministério da Justiça e hoje ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é composto por um presidente, um vice-presidente e doze conselheiros -- quatro deles são militares e foram nomeados pela ministra Damares Alves.
É o caso do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, autor do prefácio do livro "A verdade sufocada", escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador, em 2008. Os outros militares na Comissão são Dionei Tonet, coronel e comandante-geral da PM de Santa Catarina, Tarcisio Gabriel Dalcin, coronel da FAB (Força Aérea Brasileira), e Vital Lima Santos, coronel do Exército.
O atual presidente da Comissão de Anistia, João Henrique Nascimento de Freitas, advogado e ex-assessor parlamentar do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), foi autor de ações judiciais para suspender anistias concedidas a familiares de Carlos Lamarca e a camponeses da Guerrilha do Araguaia.
O regimento da Comissão também foi alterado por Damares: a decisão inicial continua sendo do colegiado ou de parte dele, mas o julgamento de recursos deixou de ser feito em plenário e passou a ser competência do titular do ministério, de forma monocrática e por meio de uma portaria.
Outra mudança: o órgão do governo que entrega notificações da Comissão da Anistia não é mais os Correios, mas o Comando da Aeronáutica. "É um toque de crueldade. As pessoas passam a ser comunicadas por militares fardados da Aeronáutica", afirma Eneá.
Por meio da assessoria de imprensa, a Comissão da Anistia afirma que as alterações deixaram o fluxo de trabalho mais "célere, seguro e transparente", e que as mudanças de composição do colegiado "preservam a segurança jurídica e o respeito àqueles que esperam respostas". Também declara que a maior parte dos processos chegam "sem material probatório algum".
Tortura dobrada
Durante décadas, o jornalista César Fernandes, 71, manteve silêncio sobre o que viveu na ditadura. Ao contar à reportagem, fez pausa algumas vezes para chorar. Ele e a então mulher, Maria da Conceição Chaves Fernandes, ambos membros da RAN (Resistência Armada Nacional), ficaram presos no Rio por 40 dias, em 1972.
Levados por homens com metralhadoras, desceram encapuzados e foram empurrados para dentro de um carro. A caminho do DOI-Codi, César conta que ouviu quando um agente abriu a calça e começou a esfregar o pênis no rosto de Conceição - episódio que ela depois confirmou ao marido.
César relata que, além das agressões físicas, passou uma noite nu na chamada "geladeira", uma cela congelante no completo escuro. Ali era obrigado a ouvir gravações de pessoas sendo torturadas.
Conceição, por sua vez, foi abusada sexualmente. "Eles passavam cabo de vassoura na vagina dela, agarravam os seios, diziam que iam estuprá-la", relata o jornalista.
Em 3 de novembro de 2021, Fernandes recebeu um e-mail da Comissão de Anistia informando-o de que o pedido de reparação feito em 2014 em nome de Conceição, morta por atropelamento em 1975, foi indeferido. O documento afirma não haver provas de "perseguição de caráter político", e que Conceição foi indiciada pela participação em "atividades subversivas". Conclui que "apenas foi aplicada a legislação vigente, sem excessos, abusos ou qualquer ato ilícito pelo Estado".
"Queria uma resposta respeitosa, um reconhecimento de que o Estado foi abusivo, que maltratou, matou. Não esperava que meu pedido fosse aceito nesse governo, mas essa violência que o governo está fazendo contra quem lutou pela democracia, por direitos, por uma sociedade mais igualitária, é inaceitável. Não é por mim: é pela sociedade, pelos meus filhos", diz Fernandes.
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