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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Coisa de Menino': série da HBO sobre crise masculina é triste e necessária

Coisa de Menino, da HBO - Divulgação/HBO
Coisa de Menino, da HBO Imagem: Divulgação/HBO

Colunista do UOL

07/05/2023 04h01

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Proteger, procriar e prover são os três P's que definem um homem segundo a ótica de grupos conservadores. Para a turma, a crise da masculinidade é uma crise da virilidade.

"Onde foram parar os machos?", escreveu certa vez um ídolo de seitas masculinistas que dizia ter saudade daquele "mundo bárbaro onde homens assumiam um papel de provedor sem muito tempo para chorar".

Em outras palavras, é mais ou menos isso o que diz um policial de Porto Velho (RO) no primeiro episódio de "Coisa de Menino", série recém-lançada na HBO e HBO Max dirigida por Paula Buarque e Tatiana Issa (diretora também de "Pacto Brutal: o assassinato de Daniela Perez").

"Sabe por que falta respeito às mulheres hoje? Porque os homens deixaram de ser homens. Antigamente a mulher podia passar nua no meio da rua, mas se fosse a filha do Adriano, cuidado! Ele dava um tiro na sua cara. Se fosse a filha do coronel, nego nem olhava. Os homens protegiam. Seu entorno era protegido: a funcionária, a mulher e as filhas. Então as mulheres tinham respeito porque os homens eram homens", diz o policial.

A lógica dialoga e faz eco com discursos despejados diariamente pelos red pills da vida em suas redes, mas não dura até a segunda página. No caso, não dura nem até a cena seguinte, quando a ex-companheira do policial conta que certa vez chegou em casa em frangalhos após ser assediada na rua e ouviu do marido, o machão-filósofo da frase acima, que ela não deveria sair com certos tipos de roupa.

A estreiteza do raciocínio esbarra em outros limites da realidade. Por exemplo, os coronéis que não assumem a paternidade e os muitos pais que saem de casa para comprar cigarro e nunca mais voltam — logo, não estão perto para proteger a família nem das baratas do banheiro.

Ao fim e ao cabo, o argumento não define também a quem se deve recorrer quando a instância protetora se torna uma ameaça dentro de casa.

E, principalmente, não diz o que resta a um homem quando ele envelhece e perde a capacidade de procriar, prover e proteger. Se mata?

Não é uma pergunta retórica.

Criado em um ambiente violento, o entrevistado parece emparedado por um novo mundo, o qual realmente se esforça para compreender sem conseguir se despir totalmente das marcas da própria criação e se tornar um bom pai. As contestações partem das filhas, da ex-mulher, da delegada (também conhecida como sua chefe) e das diretoras da série documental.

Cada questionamento serve como caminho para o personagem assimilar como reproduziu ao seu redor um nível de sofrimento que afastou as pessoas que o amavam e o levou, literalmente, para o caminho da rua e do álcool antes de se reencontrar.

Seu depoimento serve como contraste ao de outro personagem, um morador de Brasília, pai de dois meninos e disposto a expelir na terapia os resquícios da chamada masculinidade tóxica que aprendeu desde cedo.

Ele conta que se deprimiu ao encarar uma nova configuração de expectativas da mulher em relação ao seu papel. A figura de homem carinhoso que divide as tarefas e o cuidado dos filhos com a mulher, igualmente inserida no mercado de trabalho, não batia com aquela que ele aprendeu a ser no convívio com o pai — um homem violento e amargurado descrito por ele como incapaz de sair do botequim.

A referência paterna, que chamava todo mundo de "viado" e destroçava a autoestima do filho enquanto ele crescia entre dúvidas e hesitações comuns da adolescência, um dia envelheceu. Mal. Muito mal.

O fim da história, relatado pelo personagem, é um dos mais tristes e tocantes depoimentos que eu já assisti. Deveria servir como alerta para quem desconfia que os homens também podem ser vítimas do próprio machismo.

Em comum, ambos os entrevistados são assombrados pela criação, marcada por todo tipo de violência psicológica e castigos físicos. Ao menos não escondem que o período não foi nada edificante para emoldurar qualquer caráter. Pelo contrário, deixou marcas profundas no corpo e na alma.

No caso do policial, a brutalidade é ainda visível no ambiente em que está inserido: a periferia árida e arenosa de uma capital de um estado espoliado, devastado e empobrecido pela ação humana, sobretudo o garimpo. E onde até pouco tempo, segundo o entrevistado, quem tinha ouro e virilidade para se embrenhar na mata era a figura mais respeitada da quebrada.

No caso do segundo personagem, o caminho da desconstrução na cidade grande, rica e diversa, é mais arborizado e menos problemático. Mas tem também as suas pedras.

Os depoimentos mostram que, enquanto não forem confrontados, os modelos de masculinidade que triunfaram até aqui seguirão incapazes de oferecer proteção a alguém. Nem aos próprios homens.