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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Câmara decide que só políticos podem atacar ou discriminar políticos

Deputados trocam xingamentos e ameaças durante sessão - Reprodução / Twitter
Deputados trocam xingamentos e ameaças durante sessão Imagem: Reprodução / Twitter

Colunista do UOL

16/06/2023 04h00

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Por 252 votos a favor e 163 contra, a Câmara dos Deputados aprovou, na calada da noite de quarta-feira (14), um projeto de lei que prevê punição em casos de discriminação contra "pessoas politicamente expostas", entre as quais os próprios políticos, seus familiares, e outras autoridades dos Três Poderes.

Se for sancionada, a nova regra poderá levar à cadeia quem acusar políticos que respondam a investigações na Justiça e não foram ainda condenados. Eis um dos méritos do projeto: resolver na teoria um problema que na prática não existe. Quem acusa, formalmente, uma autoridade de qualquer desvio antes do julgamento, afinal, é o Ministério Público, e não o tiozinho revoltado das redes sociais. Mas vá lá.

Caso prospere, a regra tende a criar problemas para quem negar emprego ou promoção no trabalho a quem tem relações políticas. E também para quem negar a elas abertura de contas bancárias, mesmo que os interessados tenham pinta e forma de laranja.

Um desavisado pode se perguntar em que momento alguém, digamos a autora do projeto, já viu barradas as pretensões profissionais ou bancárias com argumentos do tipo: "desculpa, aqui você não pode trabalhar nem abrir conta porque seu pai é o Eduardo Cunha".

Ah, sim, a autora do projeto é justamente a deputada Dani Cunha (MDB-RJ), filha do dito-cujo — ele mesmo suspeito, em seu reinado na Câmara, de manter contas estranhas na Suíça.

A não ser que a negativa tenha essa explicação expressa, o projeto abre margem para que o eventual empregador ou instituição bancária seja obrigado(a) a contratar o primo do irmão do parlamentar, sob risco de ter a decisão considerada uma discriminação. Empregar ou emprestar dinheiro a pessoas politicamente expostas — e, vamos supor, sob o risco de serem condenadas por lavagem de dinheiro ou terem os bens bloqueados no futuro próximo — seria menos arriscado do que a negativa.

Com certa razão, os deputados andam preocupados com o nível de perseguição contra autoridades em eventos públicos. Esse é um dos sintomas do sentimento antipolítica que emporcalha qualquer saída democrática em qualquer debate.

De um tempo pra cá, se tornou comum ver eleitores com um celular na mão e muita indignação na cabeça abordarem parlamentares ou mesmo ministros do STF na rua com falas grosseiras e ameaças que beiram a agressão. Sim, esta é uma preocupação e diz muito sobre a crise civilizatória em que o país se meteu, desde que alguém decidiu eleger um inimigo e espalhar por aí que tudo o que acontece na sua vida, da falência dos negócios à unha encravada, é culpa de determinado juiz ou partido.

Mas esse estado de beligerância não brotou do nada. Foi e é alimentado pela própria classe política e seus gabinetes de ódio, incapazes de lidar com adversários sem demonizá-los.

Nessas horas vale resgatar do fundo do armário um ditado usado pelos antigos em outros séculos: o exemplo vem de cima.

Quem quiser ver ao vivo um representante eleito ser esculhambado em público basta ligar a TV Câmara e acompanhar os sopapos trocados entre governistas e opositores em qualquer comissão da Casa. As sessões quase sempre se estendem aos limites das redes sociais, onde seguidores se digladiam até sobre o tamanho de pênis de seus parlamentares de estimação.

Lula (PT), por exemplo, já foi chamado em plenário de "ladrão", "Barrabás" e "chefe de organização criminosa", mesmo tendo as condenações anuladas pela Justiça. Um parlamentar já disse ter "nojo" do PT e do PSOL.

Flávio Dino, ministro da Justiça, foi recepcionado sob a alcunha de "merda" e "babaca" em uma comissão da Câmara.

Outro dia mesmo uma deputada bolsonarista, depois de uma discussão mais ríspida, mandou um colega tomar no... Bem, vocês sabem. E, pouco antes, um deputado da turma subiu à tribuna com uma peruca e pronunciou uma série de agressões contra pessoas trans — entre as quais duas colegas de Parlamento. Não sei, mas tal postura parece bastante discriminatória. Assim como as inúmeras interrupções e intimidações sofridas por deputadas mulheres em comissões inóspitas.

Por sorte ou juízo, o projeto dos deputados deve ser solenemente engavetado pelo Senado. Caso contrário, só reforçaria a ideia de que políticos e autoridades vivem em um mundo à parte, em que a ofensa é imperdoável, a não ser que seja cometida por eles mesmos.

Do alto do Monte Olimpo e da imunidade parlamentar, são eles que determinam quem pode ou não cobrá-los por posturas e acusações em curso.

Um hoje improvável pacto de não-agressão, com regras claras sobre golpes abaixo da cintura, selado num churrasco entre líderes dos partidos, teria mais efeito prático do que a blindagem prevista no projeto. Nada disso vai acontecer, porque o estímulo ao ódio é um manancial de votos. Sem isso, metade das bancadas mais barraqueiras das duas Casas sequer teria sido eleita.

Foi-se o tempo em que um parlamentar podia pegar voo comercial até sua base e passar desapercebido pelos demais passageiros, a não ser quando eram saudados pelo comandante, honrado pela presença ilustre, como já testemunhei certa vez em um voo.

A agressividade com que muitos hoje são recebidos em espaços públicos é resultado não da politização tardia de seus eleitores, mas da passionalidade com que lidam com os afetos políticos — uma passionalidade alimentada por ódio a adversários e todo tipo de ofensa proferida em plenário ou nas redes sociais.

É isso o que deve ser combatido por quem não quer ser tratado na rua como trata os colegas diante da TV.