Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nando Reis admite ser alcoólatra num país que não sabe quanto bebe

O cantor e compositor Nando Reis - Carol Siqueira/Divulgação
O cantor e compositor Nando Reis Imagem: Carol Siqueira/Divulgação

Colunista do UOL

01/08/2023 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Nando Reis parou de beber em 6 de outubro de 2016 e desde então se mantém sóbrio. "Gosto de beber. Se eu pudesse, eu bebia. Acontece que eu não posso porque sou alcoólatra. Não pretendo recair porque conheço as consequências do primeiro gole", disse o cantor e compositor de 60 anos em um forte e surpreendente depoimento à jornalista Lia Hama publicado na revista "Piauí".

"Se eu tomar uma dose de vodca, vou precisar de outra e de mais outra e de mais outra, num desejo sem fim. É algo desesperador porque não há nada que o sacie. Não vou voltar a beber porque sei que o álcool só traz dor para mim e para os que estão ao meu redor."

Relatos como este são tão raros por uma questão estatística: poucos reconhecem o alcoolismo como um problema. Menos ainda os estragos que causam a todo mundo ao redor.

Na semana passada, uma pesquisa realizada pelo Ipec em parceria com o Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) mostrou que 57% dos brasileiros ignoram os parâmetros de moderação de consumo. Entre os consumidores abusivos (17% dos 1.983 entrevistados), só 13% reconhecem que precisam mudar seus hábitos. A maioria (75%) acha que bebe de maneira adequada e 11% até sabem que bebem muito, mas não veem isso como um problema (e por que deveriam, num país onde o consumo excessivo é romantizado, naturalizado e cantado em letras garrafais?).

Não há consenso sobre o que seria o consumo moderado de álcool, mas a maioria dos especialistas em saúde dizem que ela não deve transbordar duas doses ao dia para homens ou uma, para mulheres (cada dose equivale a uma lata de 350ml de cerveja ou uma taça de 150ml de vinho). A conta inclui os esforços de quem se segura na semana e despenca em litros no sábado e no domingo tudo o que não bebeu nos dias úteis.

O depoimento de Nando Reis, uma figura pública com amplo alcance vocal, é mais potente do que qualquer julgamento de quem observa o problema por fora. As estatísticas mostram que o autor de "All Star" é uma das raras pessoas que sofrem com alcoolismo e sabem dos riscos envolvidos (no caso dele, potencializados pelos tempos em que usava também cocaína).

Detalhe: uso abusivo não é sinônimo de dependência — um problema que afeta 1,5% da população. O restante não acorda de madrugada com uma necessidade fisiológica de ingerir álcool, como o cantor fazia. Mas bebe além da conta por outras razões além do vício e estão expostas ao mesmo risco, como desenvolvimento de problemas de saúde e, claro, acidentes no trânsito.

A exemplo de muita gente, durante muito tempo Nando Reis acreditou no mito de que o álcool traz espontaneidade. "Eu era um cara inseguro e muitas vezes não me sentia à vontade no meio artístico. Tinha dificuldade de lidar com a hostilidade, a competitividade e a inveja no ambiente em que atuo", relata. "Esses sentimentos faziam com que eu me visse ameaçado — e o álcool atenuava essa angústia."

Não é preciso ser um artista desse calibre para se identificar com o relato. Atire a primeira garrafa quem nunca virou um copo, seja lá do que for, para se destravar num ambiente socialmente hostil ou mesmo estranho. Eu, até ler o relato, achava que precisava beber para que as pessoas pudessem me ver, sem travas, como realmente sou.

Se fosse verdade, eu acordaria no dia seguinte não com vergonha, mas com vontade de fazer tudo o que anunciei no auge da bebedeira: largaria tudo, pediria demissão, venderia minha arte na praia, diria umas boas verdades para alguém com quem já não convivo etc. Nem sempre era vontade real. Era apenas alguém empolgado e encorajado querendo impressionar.

Quando alguém me reencontra e relembra de alguma patifaria que cometi alcoolizado (como transformar um carrinho de sorvete da festa em meu touro mecânico, subir na estrutura do palco e rodopiar a roupa lá de cima, chutar a taça de champanhe de amigos na pista a abraçar chorando e dizendo que amava gente que nem amava tanto assim), fico com vergonha não porque a pessoa conheceu um "eu profundo" que deveria manter em cativeiro, mas uma pessoa folclórica que nunca fui. Por que fazia isso?

O Nando Reis me ajudou a reconhecer essa contradição: aquilo que pensamos ser espontaneidade é só artificialidade e distorção.

Ele compara a situação ao dia em que fez uma cirurgia para catarata e voltou a ver as cores. "O álcool era um escudo entre mim e a realidade. Era como uma catarata que vai criando uma opacidade no cristalino."

Nando Reis diz que se entristece quando pensa nos estragos que seu excesso causou na sua relação com familiares e os amigos de Titãs. "A bebida alimentou o rancor, a inveja, a hostilidade, a insegurança e a paranoia dentro de mim. Hoje sei que eles são meus amigos e me amavam, mesmo quando estavam com ódio de mim."

O reencontro da banda, afirma ele, não seria possível se ele hoje não estivesse sóbrio. É como se pudesse dizer a ele mesmo um verso de uma de suas mais conhecidas canções: "Por onde andei enquanto você me procurava?".

Que seu relato seja tão ouvido quanto suas músicas. É esse tipo de coragem — dessas que traz o soprar do vento noturno de um verão, como em outra música — que precisamos para assumir e enfrentar um problema de frente: um problema que interrompe histórias e deixa um rastro de tristeza, decepção e ressaca por onde passa.

O Nando sexagenário não precisa se perguntar se falou o que ninguém ouvia nem se ouviu o que ninguém dizia. Ele se adaptou ao novo figurino. Não precisa mais achar tão estranho quando se olhar ao espelho e se reconhecer sóbrio, sem a opacidade no cristalino. Nós ouvimos a mensagem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL