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Ricardo Abramovay

Quem está por trás disso? Pandemia turbina teorias conspiratórias

Enterro de Denis Queiroz da Silva, 34, vítima confirmada da Covid-19, no Cemitério Parque Tarumã, em Manaus (AM) - EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO
Enterro de Denis Queiroz da Silva, 34, vítima confirmada da Covid-19, no Cemitério Parque Tarumã, em Manaus (AM) Imagem: EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

06/05/2020 04h00

Um dos mais importantes combustíveis das caldeiras de ódio que sustentam o governo Bolsonaro são as teorias conspiratórias. Apesar do rigor e da minúcia na investigação da facada que o presidente levou em setembro de 2018, durante a campanha eleitoral, seus seguidores e ele próprio seguem insistindo na tese de que há interesses e forças obscuras que impedem a revelação do mandante do crime.

Mesmo eleito, ele promete provas (que nunca apresentou) de que as eleições foram fraudadas. Durante a campanha eleitoral, o general Augusto Heleno, hoje chefe do Gabinete de Segurança Institucional, justificava a ausência de seu candidato nos debates pelo conhecimento que ele tinha (mas cujas evidências jamais se tornaram públicas) de um plano terrorista para eliminá-lo.

Agora, a Covid-19 criou a situação perfeita para a proliferação massiva de mais teorias conspiratórias. Neste caso, como mostra um recente estudo feito nos Estados Unidos, duas versões predominam. A primeira nega o alcance da pandemia e conduz ao trágico resultado de que as pessoas subestimam seu perigo e não seguem as orientações das autoridades sanitárias. Essa negação não é exclusivamente norte-americana: o espetáculo mentiroso oferecido pelos vídeos com caixões vazios sendo colocados em sepulturas, para supostamente inflar o número de mortes em Manaus, é apenas um de seus exemplos mais macabros. O impacto da visão conspiratória traduz-se em mais contaminação, em virtude do apoio que ela recebe, nos Estados Unidos e no Brasil, de seus respectivos presidentes da República.

Na segunda versão, o perigo da pandemia é reconhecido, mas ela é vista como produto da ação deliberada e secreta de interesses não revelados. Desde o início da Covid-19, multiplicaram-se as versões de que a Fundação Bill e Melina Gates, o investidor George Soros e os laboratórios chineses eram seus principais beneficiários. A indústria farmacêutica poderia vender mais remédios, novas oportunidades de investimento apareceriam e a China poderia dominar o mundo. O alcance prático dessa segunda versão não é nefasto como o da anterior, pois ela, ao menos, não estimula as pessoas a desrespeitarem o isolamento social.

Joseph Uscinski, professor de ciência política da Universidade de Miami, vem estudando crenças e teorias conspiratórias há quase dez anos e acaba de publicar "Conspiracy Theories. A primer" (Teorias conspiratórias. Uma introdução, em tradução livre). Ele mostra que teorias conspiratórias podem ser profundamente comprometedoras para a democracia, a ponto de estimular a violência. Se há muita gente convencida de que seus oponentes estão tramando por trás da cortina e se apoiam em forças poderosas e não reveladas para defender interesses inconfessáveis, é muito difícil estabelecer diálogo e muito menos negociações racionais e equilibradas. Se não tenho dúvida de que jornais, revistas e emissoras de rádio e TV (à exceção daqueles que eu leio e assisto, bem entendido) estão tramando contra os que compartilham minhas convicções, é esperado não só que eu não consuma suas informações, mas que os rejeite de forma explícita e até mesmo violenta. Foi o que se viu no último domingo (3) à frente do Palácio do Planalto em Brasília.

Teorias conspiratórias não são exclusividade da extrema-direita, como mostram as versões de que não houve facada durante a campanha eleitoral de 2018. O Comitê Soviético para a Segurança do Estado sustentava que a Aids era produto de uma arma biológica desenvolvida pelos EUA. As crenças conspiratórias tampouco são um traço característico da era digital, embora, claro, a internet facilite enormemente sua difusão.

Mas, de onde vem a força das teorias conspiratórias?

Tudo indica que elas emergem com mais frequência em situações de crise, quando os indivíduos são colocados diante de vivências inesperadas e para as quais não existe explicação fácil. Guerras, atentados terroristas, crises financeiras de largas proporções como as de 2008 e, evidentemente, pandemias, são terrenos férteis para seu desenvolvimento.

São eventos que desestabilizam a vida das sociedades e abalam a capacidade interpretativa com a qual elaboramos nossas expectativas com relação aos comportamentos dos outros e ao funcionamento daquilo que compõe nosso cotidiano. Teorias conspiratórias permitem que os indivíduos recuperem a possibilidade de imprimir sentido àquilo que não conseguem mais compreender.

Elas dão às pessoas a ilusão de que recuperaram o controle sobre a perplexidade e a imprevisibilidade que a crise fez surgir. E nada como atribuir eventos inconvenientes a entidades poderosas e diabólicas. A confiança numa explicação simples, que identifica claramente quem provoca o desconforto em que o indivíduo se encontra, devolve-lhe um sentimento de controle que deriva não da melhoria real de sua situação, mas da certeza de que ele sabe a razão do que lhe acontece e, mais que isso, sabe quem ele deve combater para enfrentar seus problemas. Os momentos de crise são propícios à difusão da mentalidade conspiratória, que consiste na crença generalizada de que há poderes secretos que comandam o mundo e que dirigem suas instituições básicas.

Esta é uma das principais razões pelas quais os fatos, as evidências, tornam-se frágeis para enfrentar a visão conspiratória do mundo. É uma visão que tem coerência interna, um poder persuasivo imune aos fatos. A exposição a teorias conspiratórias aumenta o sentimento de fragilidade dos indivíduos e abre caminho a comportamentos socialmente predatórios. Medo, falta de controle, incerteza são caldos de cultura para a disseminação desse tipo de atitude. Uma das consequências mais nefastas desse sentimento é a desconfiança generalizada nas instituições que formam a base da convivência democrática, quer se trate da política, da Justiça, da imprensa ou da ciência.

O "conspirativismo", como forma de interpretar o mundo, traduz-se, politicamente, em dois expedientes utilizados frequentemente por dirigentes políticos (Bolsonaro, apoiado por seu gabinete do ódio, é mestre nisso) e que Theodor Adorno, um dos mais importantes pensadores do século 20, analisou num texto dos anos 1960, recentemente traduzido pelo excelente blog "A terra é redonda". A atualidade da reflexão de Adorno e sua importância para o estudo das teorias conspiratórias são notáveis.

O primeiro expediente consiste em se colocar permanentemente como mártir, como pessoa modesta, que tudo sacrifica, inclusive a vida, pelo povo. "Ele repete, diz Adorno, que não é amparado pelo dinheiro grosso ou qualquer poder existente. Particularmente anseia em nos fazer crer que não é um político, mas, antes, está distante e de algum modo acima da política." É um lobo solitário, lutando contra todos e comprometido apenas com o povo.

O segundo expediente é caracterizado por Adorno na expressão "se vocês soubessem". O dirigente sabe da existência de negociatas, conhece os bastidores daquilo que as pessoas não precisam que lhes seja revelado, porque elas também já o sabem. Mas, um dia, tudo isso vai mudar e o poder desse dirigente consiste em convencer as pessoas que já está mudando.

Em um quadro tão preocupante, a esperança é que a queda na popularidade de Jair Bolsonaro (e também de Donald Trump) possa abalar a coerência interna das visões conspiratórias que os sustentam e abrir caminho a que argumentos, fatos e, sobretudo, empatia e compaixão tomem o lugar daquilo com que hoje tantas forças prosperam, mundo afora: o culto ao ódio.