TAB: Em artigo para a Folha de S.Paulo, o escritor Joca Reiners Terron relata problemas para quem vive de escrever, em especial durante a pandemia. Será que isso não vai refletir negativamente na nossa produção literária?
ILB: Não tem nada a ver uma coisa com a outra. A vida inteira fui jornalista para sobreviver, e a vida inteira eu escrevi. Na verdade, os que vendem muito e só vivem de literatura são poucos. A grande maioria, eu diria que uns 80% dos escritores do mundo, sobrevive com trabalhos à parte. E tem os que sobrevivem com dificuldade, mas continuam escrevendo. O ato de escrever independe da sua capacidade de sobreviver.
[Franz] Kafka trabalhava em uma companhia de seguros e escreveu aqueles livros. Não precisa abandonar a escrita por dificuldade. O escritor não é mais aquele tipo que ficava em uma torre fechada alheia a tudo. O escritor de hoje tem que se virar, ir pra vida, tem que se movimentar, conversar, formar leitor, tem que fazer tudo.
TAB: Na introdução à edição comemorativa de "Zero", você fala do processo de escrita e das matérias censuradas no "Última Hora", a partir de 1964. Considerando os ataques frequentes à imprensa, você encontra semelhanças do Brasil de 2020 com essa época?
ILB: Durante a ditadura era uma coisa oficial, cada redação tinha seu censor. Não eram só militares. Tinham cooptado civis também, e esses senhores, funcionários públicos, sentavam ao lado na redação, liam tudo que era produzido e aprovavam ou não. Cada livro a ser publicado deveria ser enviado ao Ministério da Justiça. Nenhum editor fazia isso: eles se arriscavam a publicar o livro, correndo o risco de ver a obra ser proibida depois. Foram mais de 500 obras proibidas, grandes livros. Era terrível, você podia ser preso por um livro, como o Renato Tapajós. Era meu amigo, sumiu. [Renato Tapajós ficou preso de 1969 a 1974. Lançou "Em Câmera Lenta" em 1974 sobre sua experiência na prisão e, em 1977, voltou a ser preso pelo regime militar.]
Os filmes eram mandados para a censura, as peças teatrais também, era uma máquina oficial. Essa máquina ainda não existe, mas tentam instalá-la de alguma maneira. Por enquanto, as redes sociais fazem a vigilância e a perseguição, de alguma forma fazem parte do trabalho que a censura fazia. Hoje você tem "fake news", o clima é muito ruim.
TAB: A censura da época parece meio contraditória. A pornochanchada foi contemporânea da ditadura militar, por exemplo. Seria o Brasil tão caótico por essência que um estado totalitário não teria como funcionar da forma tradicional?
ILB: Mas foi feito um regime totalitário organizado. Na pornochanchada você não via uma transa, não via um pau, uma xoxota. Não era pornô, era mais chanchada do que pornô, era o que conseguiam. Às vezes não tinha nem erotismo, porque era grotesco. Na editora Três, onde trabalhei, tínhamos revistas que publicavam mulheres nuas. Tinha regras como não poder aparecer dois seios ao mesmo tempo, aí a modelo tinha que cobrir um deles. Era uma coisa maluca, uma dor de cabeça, assistir à sessão para escolher fotos. Não podia pelos pubianos, não podia bunda frontal. Era um pouco brasileiro mesmo, uma censura à brasileira. Você tem razão, era meio caótico. A gente ficava louco. A literatura foi minha válvula de escape. Coloquei tudo que quis no "Zero".