O homem centenário

O escritor Isaac Asimov completaria 100 anos em janeiro. Nosso presente faz jus à sua ideia de futuro?

O autor de ficção científica Isaac Asimov nasceu na Rússia em 2 de janeiro de 1920. No ano seguinte, estreava a peça checa "Rossum's Universal Robots". Escrita por Karel Capek, ela inaugurava o conceito de robô que fundamenta toda a produção de ficção científica posterior — em especial, na literatura de Asimov.

Falecido em 1992, Asimov deixou como legado mais de 500 livros escritos e editados, bem como 90 mil cartas e cartões postais. Considerado um dos "Três Grandes" da ficção científica dura, ou seja, com maior foco nas ciências exatas, Asimov divide a tríade com Arthur C. Clarke (de "2001: Uma Odisseia no Espaço") e Robert Heinlein (de "O Dia Depois de Amanhã").

Asimov era diferente de seus contemporâneos por se mostrar otimista quanto à tecnologia e ao futuro da humanidade. Com linguagem simples e direta, era capaz de provar em suas histórias uma "crença absoluta no engenho humano", como define Nelson de Oliveira, escritor e coordenador de oficinas de criação literária.

"Foi o autor mais otimista de toda sua geração. Mais até do que Robert A. Heinlein e Arthur C. Clarke, e talvez fosse o mais bem-humorado", afirma. "Às vezes, no começo da carreira, Asimov escrevia finais trágicos, mas era bastante raro. Até mesmo uma história super trágica como 'O cair da noite', escrita quando ele tinha 21 anos, termina com uma imagem grandiosa: o espetáculo de 30 mil poderosas estrelas brilhando próximas."

Tecnologia + humano = <3

"Enquanto outros autores pensavam mais em termos puramente técnicos, estritamente filosóficos ou meramente aventurescos, Asimov tentava imaginar como as pessoas comuns reagiriam às maravilhas (ou não) da tecnologia", diz o escritor e jornalista André Cáceres, fã assumido do autor. Para ele, explorar essa esfera na ficção científica é praticamente um pré-requisito para os escritores atuais, mas foi um trabalho que a chamada "New Wave", representada por autores de ficção científica dos anos 1960, fizeram com afinco — pense em, por exemplo, Philip K. Dick e suas personagens que inspiraram o filme "Blade Runner".

Como o ser humano era central em suas histórias, Asimov, ao contrário de outros autores como Clarke, quase não aborda alienígenas em sua ficção. O doutor em filosofia e escritor de fantasia e ficção científica Alexey Dodsworth diz ao TAB que, em vez de pensar em novos tipos de seres habitantes do universo, Asimov investia mais na ideia de uma galáxia tomada por nós mesmos, em um futuro no qual a colonização espacial vingou: "Os extraterrestres seriam nossos descendentes".

Segundo Dodsworth, a razão para essa preferência pode estar presente nas correspondências trocadas entre Asimov e Clarke, nas quais o autor chegou a comentar que já "se sentia alienígena o suficiente" e, por isso, não sentia necessidade de inserir tais criaturas em suas histórias. Mas isso pouco teria a ver com o fato de Asimov ser um imigrante russo nos Estados Unidos, uma vez que sua mudança ocorreu quando ele ainda era criança. O escritor, como se vê na própria obra, estava completamente inserido na cultura norte-americana.

"O futuro humano cosmicamente expandido de Asimov é bastante norte-americano, com tudo de bom e de ruim que vem com isso. A humanidade se comporta em relação à galáxia como se possuísse um 'Destino Manifesto', o que é algo bastante americano", defende Dodsworth. Para ele, o que pode explicar o sentimento de alienação de Asimov é outra coisa. Dodsworth, que também era membro da Mensa (organização internacional dedicada a indivíduos com QI acima da média), conta que Asimov chegou a fazer parte do grupo, mas o abandonou em certo momento, dizendo que seus colegas eram "intelectualmente empobrecidos". Em outras palavras, seja entre possíveis pares intelectuais ou literários, Asimov sempre esteve fora da curva.

Próximo destino: as estrelas

A obra de Asimov soa mais inspiradora, ao propor que não devemos esperar que uma Força Superior nos salve, mas que somos nós os responsáveis pela expansão e o progresso da nossa espécie. "É muito mais plausível que acordar um dia e descobrir que naves alienígenas repletas de seres mais evoluídos chegaram aqui. Apesar de esse ser o cenário que eu adoraria testemunhar, acho o menos provável", complementa Dodsworth, explicando que Asimov não chega a defender a inexistência de civilizações inteligentes pelo espaço, mas que o universo é tão imenso que a comunicação entre nós e eles seria algo improvável.

O astrônomo e professor de física da Fundação Educacional Inaciana (FEI) Cássio Barbosa lembra que Asimov falava de astronomia e astronáutica a partir dos conhecimentos vigentes na época em que escrevia. "Ele viveu durante um período em que a exploração do Sistema Solar estava começando e muitos dos seus livros tratam de conceitos que rapidamente se alteraram. Também não se furtava em violar as leis da física para levar o leitor a lugares impossíveis de serem alcançados, como as profundezas da atmosfera de Júpiter", descreve Barbosa. Apesar disso, essas concessões são importantes para construir, na cabeça do leitor, um universo totalmente desconhecido e fascinante.

É nesse ponto que André Cáceres defende que a ficção científica é primeiro "ficção" antes de ser "científica": apesar de o gênero se apropriar de temas científicos, ele está muito mais comprometido com a liberdade poética, propondo ideias por vezes absurdas ou equivocadas do que, de fato, ser cientificamente correto ou prever o futuro. Ainda assim, são essas as características que atraem leigos para o mundo das descobertas científicas e tecnológicas.

Barbosa assume que histórias de ficção científica tiveram um papel muito importante na sua formação e que as narrativas continuam presentes mesmo em sua atuação como professor. "Uso com frequência a ficção científica para apresentar e esclarecer conceitos de física que ensino nas salas de aula. Não só de maneira abstrata, mas também para exemplificar novas tecnologias", conta.

As três leis da robótica

Asimov "previu" tecnologias que são conhecidas hoje: androides, cirurgiões-robôs, computadores portáteis, imagens holográficas, veículos autônomos, máquinas projetando máquinas mais avançadas. "Já chegaram até mesmo a nanomedicina e os nanorrobôs, se pensarmos na miniaturização que Asimov descreve no romance 'Viagem fantástica', escrito sob encomenda a partir do roteiro do filme", lembra Nelson de Oliveira.

Contudo, são as três leis da robótica que o imortalizaram como um autor que transcende a ficção para inspirar pesquisas na área tecnológica e filosófica. É quase consenso que estamos nos encaminhando para a chamada Quarta Revolução Industrial. Já convivemos com seres sintéticos, seja na forma de assistentes digitais como a Siri ou a Alexa, seja como robôs conversacionais (chatbots) em SACs, ou ao ligar um aspirador automatizado que limpa a casa e recarrega a bateria sozinho.

Mas a tecnologia tem deixado um traço torto que precisa ser corrigido. Algoritmos com viés, programações com buracos de responsividade e dificuldade de processamento de linguagem natural são alguns dos desafios encontrados por tecnólogos, filósofos e sociólogos contemporâneos. Asimov tratou disso já em 1950, em obras como "Eu, Robô", em que antecipa profissões como roboticistas ou psicólogos especializados em robôs. Para estruturar esse futuro, Asimov então propôs as elegantes três leis da robótica como uma espécie de coluna vertebral para todo e qualquer robô.

Em caso de acidente

As histórias de Asimov giram em torno das falhas e brechas na interpretação dessas leis, que no conjunto propõem uma espécie de ética tecnológica. Alexey Dodsworth, que se doutorou pesquisando ética e tecnologia, explica que, assim como o filósofo Jürgen Habermas, Asimov também denunciava o fato de que a ética não acompanha o progresso tecnológico.

"Na perspectiva de Asimov, é fundamental que exista ética na técnica, e a ética tem de vir em primeiro lugar. As três leis da robótica, por exemplo, se fossem seriamente consideradas, já teriam permitido a regulação dos chatbots", defende o escritor. "Chatbots induzem seres humanos ao erro, instigam violência virtual e física, propagam mentiras, destroem reputações. Ou seja: são robôs virtuais que não seguem as leis asimovianas da robótica. É exatamente isso que leva filósofos como Habermas e Zygmunt Bauman a torcer o nariz e questionar: progredimos tanto para... isso?"

"Se Asimov estivesse vivo, creio que ele ficaria muito desapontado em ver que o desenvolvimento científico e tecnológico não fizeram a humanidade evoluir para uma sociedade mais justa. Ele esperaria que a popularização da internet trouxesse mais conhecimento e suprimisse radicalismos, preconceito e ignorância. Ficaria alarmado que uma ferramenta potencialmente tão interessante tenha tido o efeito oposto", afirma o astrônomo Cássio Barbosa.

Contudo, mesmo "em caso de acidente", Asimov também chegou a propor uma ciência capaz de proporcionar maior entendimento da sociedade e talvez uma melhor forma de lidar com seus desafios. Esta seria a psicohistória.

Dê-me teus dados e te direi quem és

Combinando psicologia, estatística e história, a disciplina da psicohistória proposta por Asimov teria como finalidade estudar o comportamento coletivo a fim de prever atos futuros, incluindo padrões de consumo e orientação política.

Soa familiar? Para quem assistiu ao documentário "Privacidade Hackeada" ou acompanhou os desdobramentos do caso Cambridge Analytica e Facebook, fica evidente que já temos algo rolando nos moldes de uma psicohistória: grandes quantidades de dados não estruturados (big data) hoje podem ser usados não apenas para entender o comportamento das pessoas, mas também para manipulá-lo.

À época de Asimov, o filósofo catalão Alexandre Deulofeu defendia a ideia de que nações e impérios estão sempre sujeitos a ciclos bem definidos, passíveis de serem previstos pelas ciências exatas. "Deulofeu chegou a acertar alguns palpites aterradores como a dissolução da Iugoslávia, a queda da Alemanha nazista e o colapso da União Soviética, todos com vários anos de antecedência", comenta o jornalista André Cáceres.

Mais recentemente, também o professor russo-americano Peter Turchin, da Universidade de Connecticut, fundou a cliodinâmica, uma ciência que tenta traçar um método para a previsão de eventos históricos por meio de mecanismos matemáticos. "Com a quantidade de informações angariadas por empresas como Google, Facebook, Amazon e Microsoft, não é um disparate pensar que uma versão mais individualizada da psicohistória seria um desdobramento natural — embora esse seja um pensamento perturbador", conclui Cáceres.

Otimismo em tempos sombrios

Em oposição ao humor e ao otimismo dos anos 1950 nos EUA, que talvez explique a empolgação tecnológica de Asimov, hoje vivemos um contexto sociopolítico que nos faz céticos (ainda que não menos nostálgicos) quanto à tecnologia e a potencialidade humana.

André Cáceres e Nelson de Oliveira acreditam que hoje Asimov certamente estaria escrevendo contos e romances provocativos sobre o aquecimento global e a engenharia genética, bem como a inteligência artificial, mas sempre com seu tom otimista, em que a verdade e a justiça triunfam. "Tenho certeza que Asimov estaria empolgado com os desdobramentos da ciência para os próximos anos, a despeito dos retrocessos sociais que ele, por certo, rechaçaria", opina Cáceres.

É 2020. Já deu tempo de a Terceira Guerra Mundial virar meme e o medo agora é a insurgência do coronavírus chinês. Hoje, fica difícil acreditar que a humanidade vai desenvolver cérebros positrônicos capazes de criar uma verdadeira inteligência artificial, e que essas máquinas não irão se voltar contra nós.

No entanto, o que Oliveira sentiu ao reler Asimov, depois de conhecer sua obra durante a adolescência, foi a permanência do fascínio. O otimismo do escritor não só envelheceu bem como é sobretudo necessário. "A verdade e a justiça humanista sempre triunfam no final. Essa sempre foi sua postura. Mesmo quando escrevia distopias, no final o Bem sempre derrotava o Mal, a inteligência tecnocientífica sempre vencia a ignorância e o obscurantismo", defende.

A visão positiva de um futuro, que vem de Asimov, está presente na literatura produzida por novos autores de ficção científica, que propõem com o solarpunk ou o greenpunk uma possibilidade de se pensar um futuro sustentável, em contraponto aos céus de televisão dessintonizada dos anos 1980. Talvez a humanidade esteja sedenta de histórias mais otimistas, que proponham um futuro mais agradável do que o que conseguimos visualizar — mais narrativas asimovianas para nos blindar de uma realidade que consegue ser mais distópica do que a ficção.

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