Boom da ficção anticientífica escancara ódio e sectarismo do mundo atual
"Medicina traz morte". A frase está escrita em vermelho na casa de número 128 onde deveria funcionar o posto de saúde em um vilarejo do Pantanal, onde três médicos são recebidos a paus e pedras quando chegam para vacinar a população.
As cenas iniciais de "O Escolhido", série brasileira da Netflix, mostram que a vida não está fácil para os cientistas em um mundo mediado por desinformação, gurus e fundamentalismos. Na série, um líder que se diz enviado de Deus tenta a todo custo, inclusive os meios mais violentos, evitar que a sua comunidade tenha contato com os valores do mundo exterior.
Quem zapeia pela Netflix pode encontrar produções similares, como "Mindhunter", "Wild, Wild Country" e, em breve, "Clube dos Canibais", filme brasileiro que estreia em outubro sobre uma dupla de ricaços que devora os próprios funcionários. No cinema o sangue espirra na tela em filmes como "Era uma vez em Hollywood" e "Midsommar".
Seria uma epidemia?
Diferentemente de produções contemporâneas com pegada futurista, que desenham um amanhã sombrio a partir de elementos tecnológicos já existentes ou a caminho, o passado nebuloso é a marca de filmes e séries que conseguiram discutir o nó civilizatório da segunda década do século 21 com a chave do suspense e do terror.
Se séries aclamadas como "Black Mirror" e "Years and Years", e filmes como "Bacurau" e "Divino Amor", flertam com a ficção científica para falar de nosso tempo, essas produções com DNA macabro jogam luz a uma realidade obscura por um outro olhar, o de uma espécie de ficção anticientífica - ou realidade anticientífica, no caso dos documentários.
Nelas o pacto civilizatório está esgarçado, e a violência é a resposta (anti)natural de enfrentamento em um mundo que já não é mediada pelas instituições, pela norma constitucional, pela prática democrática. O resultado é um estado permanente de paranoia e loucura, vendo inimigos por todos os lados. E sangue, claro. Muito sangue.
Exemplo disso é o último longa-metragem de Quentin Tarantino. Se, em filmes anteriores, o diretor criou alegorias sobre o nazismo e a escravidão nos EUA, o ponto central desta vez é a ação de uma seita encabeçada por Charles Manson, que na vida real sonhou em "acelerar" uma suposta guerra racial que estaria em curso no fim dos anos 1960, promovendo assassinatos falsamente atribuídos a afro-americanos.
Ele prometia proteção aos seguidores e dizia que se tornaria um messias ao fim da guerra. Com o assassinato da atriz Sharon Tate, seus seguidores mudaram para sempre história da Hollywood que Tarantino busca reconstituir.
Manson ressurge também em "Mindhunter". Na série dirigida por David Fincher (dos ensanguentados "Clube da Luta", "Zodíaco" e "Seven"), é a ciência que tenta alcançar, pela psicologia e a sociologia, a mente embaralhada a aparentemente irracional dos criminosos.
Nada diz mais sobre o mundo atual do que o encanto produzido por líderes, seitas e símbolos do passado, como os que proliferam em "Midsommer", sobre o envolvimento de turistas americanos em um ritual macabro na Suécia que remete ao século 12.
Fundamentalismo, ontem e hoje
Esse futuro de glórias que tentam reerguer os novos templários, muitos armados por signos medievais do tipo "Deus Vult" (Deus quer), não comporta algumas pedras angulares da contemporaneidade, como a ciência e a diversidade.
O pano de fundo, na tela e na vida real, é o sectarismo. "Essas questões surgem a partir de chaves genéricas muito diferentes: o terror psicológico, o thriller metacinematográfico do Tarantino, o documentário seriado e o drama criminal de arco longo. São gêneros e formatos narrativos diferentes que buscam encenar essa questão dentro da chave do entretenimento", diz Marcel Vieira Barreto Silva, professor-adjunto de cinema da Universidade Federal da Paraíba.
Segundo ele, "é preciso ter cuidado para não observar esses filmes e séries como um 'estímulo à violência', mas compreender as condições históricas e os procedimentos estéticos a que se recorre para não glamourizar essas figuras tão complexas e fascinantes quanto assustadoras e terríveis".
Autor de um estudo intitulado "Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade", Barreto Silva cita Charles Manson e Ma Anand Sheela (a fanática adoradora do líder Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho, em "Wild, Wild Country") como exemplos reais desse "terror fascinante".
"Estamos, sim, vivendo uma era de desinformação, ligada a um anticientificismo vulgar e ao apego a lógicas discursivas binárias que buscam oferecer segurança ao desamparo e verdades a um mundo destituído de grandes narrativas totalizantes. A televisão e o cinema se ocupam disso claramente. Tivemos, num mesmo ano no Brasil, filmes como 'Divino Amor', 'Bacurau' e 'No coração do mundo', que representam um país recortado pela insegurança e pela violência, em chaves bem diferentes. As plataformas de vídeos on demand querem estar conectadas com o presente."
De acordo com a pesquisadora Ana Camila Esteves, mestre em comunicação pela Universidade Federal da Bahia e autora de um artigo sobre a experiência ficcional nos filmes baseados em fatos reais, há um interesse crescente entre público e realizadores por esse tipo produção hoje.
"O senso comum diz: quem quer entender a mente de um serial killer? Só queremos puni-lo. Mas de algum modo existe uma curiosidade pelo bizarro, pelo que não alcançamos, pelas atrocidades - queremos explicação pra tudo, o que é um outro problema. Em 'Mindhunter', conhecer os assassinos se constrói como desafio para aqueles dois homens, com personalidades, trajetórias e motivações distintas, e sinto que a série não se preocupa necessariamente em humanizar 'monstros', mas oferecer um olhar mais distanciado sobre um fenômeno, como dever ser uma boa pesquisa", analisa.
Outro exemplo citado por ela é a série "Unbelievable", sobre um estuprador em série que aprendeu a não deixar rastros, mas que é encontrado por uma dupla de investigadoras que seguem seu raciocínio. "Há, naturalmente, uma narrativa de condenação do estupro, lógico, mas ao mesmo tempo senti que a série também se constrói em cima de uma curiosidade, de um 'preciso entender por que esse cara é assim, qual o problema dele', e é uma demanda construída pela série e que ela entrega. 'Mindhunter' também entrega."
Segundo ela, porém, é muito fácil para um filme ou série, ao querer "alertar sobre fundamentalismos" seja ele mesmo fundamentalista. "O audiovisual é uma linguagem complexa, sempre foi, muitos movimentos das histórias do cinema entenderam isso bem rápido e usaram a linguagem para contestar, fazer perguntas, apontar para outros futuros possíveis. É importante acolher a complexidade do mundo nas formas de narrar, ou será apenas um estímulo a binarismos, uma resposta impotente diante do mundo que estamos vivendo agora", diz a pesquisadora.
A onda de produções sobre seitas e criminosos seriais coincide com a ascensão de grupos de ódio, dentro e fora da chamada deep web - o esperado "Coringa", com Joaquin Phoenix, vai pela mesma onda. "Todo mundo está tentando explicar o movimento de ódio, porque ele cresce em todo mundo. E, ao mesmo tempo, está todo mundo tentando reagir a isso. Alguns reagem assistindo, para tentar entender. A arte tenta explicar, responder ou explodir o momento histórico", afirma a antropóloga da Unicamp Adriana Abreu Magalhães Dias, uma das pesquisadoras pioneiras de grupos neonazistas do país.
"Vivemos em um momento em que a estética da violência está sendo discutida. Em 'Era uma vez Hollywood' há elementos que tentam explicar, embora seja inexplicável, o surgimento do serial killer. A psicopatologia faz parte da humanidade", diz.
A vulgaridade do mal
Em um famoso artigo escrito para o Le Monde em 1975, o jornalista Alain Woodrow questionava como jovens franceses bem formados e com nível superior aderiram a seitas como a dirigida pelo reverendo Moon, multimilionário coreano autoproclamado "messias".
Adriana Dias lembra que a questão não tem a ver com inteligência. "A Alemanha era o país com mais pessoas com doutorado na época do nazismo." O que falta, diz, é informação. E, no caso do nazismo, não havia espaço para discordâncias, já que os adversários eram perseguidos e mortos."
Ela começou a estudar movimentos brasileiros que negavam o holocausto no início dos anos 2000 e até hoje se questiona como é possível que tanta gente ainda compre livros como "Mein Kampf", de Adolf Hitler. "Hitler nem bom estrategista era. 'Mein Kampf' é uma infinidade de tonterias e teorias absurdas."
Segundo ela, o encanto por líderes com ideias autoritárias ou esdrúxulas, atualmente, se dá em razão do assombro de uma geração que não acompanhou as mudanças trazidas pelas novas tecnologias. "Muitos estão assustados em serem substituídas por algoritmos. O computador e a internet ainda são um mistério mágico para as pessoas. Enquanto algumas pessoas têm um conhecimento super-aprimorado, outros estão entregues à caça às bruxas, ao encantamento do mundo, à magia, aos cultos. Lembram 'Salem' em alguns momentos."
Dias conta que, em sua dissertação de mestrado, usou o termo "paranoia construída socialmente" para entender movimentos que ela vê agora emergir e que compara a "vidros refratários" à informação. Um exemplo desse movimento refratário, diz, é o terraplanista, icônico dos tempos atuais.
A crença de que, na verdade, a terra é plana mobiliza diversas pessoas pelo mundo, como mostra outra série da Netflix. Recentemente, o guru do clã Bolsonaro, Olavo de Carvalho, se manifestou dizendo que não tinha certeza se a Terra era redonda. Nas palavras de um ex-seguidor, o músico Lobão, o terraplanismo do astrólogo é "criacionista". Ele acusa o ex-amigo de ter criado uma seita que força seus fieis a defendê-lo a qualquer custo. Muitos estão em postos de poder no palácio do Planalto e nos ministérios.
Segundo Adriana Dias, o momento exige que se repense como aconteceram as guerras religiosas porque a História se repete. "Muitas pessoas estão imersas no obscuro."
O recrudescimento de grupos de ódio também foi abordado pelo psicanalista Jurandir Freire da Costa em uma edição recente do Café Filosófico da TV Cultura. Ele relaciona o "dezenraizamento" proporcionado pelo mundo atual, marcado por rápidas transformações tecnológicas e sociais, à crise de identidade e desorientação de indivíduos. Os fóruns de ódio, neste sentido, funcionariam como espaços de desconstrução de identidade, de onde se alimentam atiradores que não suportam a experiência da rejeição.
O problema, disse o psicanalista no programa, é que a vida contemporânea é dinâmica, e os anseios estão o tempo todo sub judice. Um exemplo é a questão do desemprego em um mundo onde os valores foram criados em torno da força de trabalho. "Se desenraizar é saber que você não pode contar com o que você tem pra sobreviver, se exprimir de modo criativo, com o respeito e a admiração do filho, da mulher, dos vizinhos, do outro. De repente isso é retirado com a desenvoltura de quem troca de camisa. Isso cria uma massa de ressentidos, que facilmente vão escolher um líder demagogo, autoritário e retrógrado que prometa a eles resolver essa situação."
Ele comparou o demagogo contemporâneo aos cruzados medievais. "É alguém que diz 'aqui você tem lugar, eu vou te ouvir'. Todos nós, postos nesta situação, temos chances de entrar neste barco. Somos humanos e queremos o amor do outro. A gente precisa do pertencimento. Se não tem no lugar A, vai ser no lugar B. E o lugar B pode ser o fundo do poço."
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