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Tarantino entra na onda da glamourização de crimes reais e chocantes

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Imagem: Divulgação

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, em colaboração para o TAB, de São Paulo

15/08/2019 04h01

Filme dirigido por Quentin Tarantino: automaticamente vem a sua cabeça muito sangue, pancadaria explícita e uns toques de humor com temas pesados. Tarantino fez fama estetizando a violência ao máximo e coreografando matanças. A diferença em "Era Uma Vez em Hollywood", lançado no Brasil nesta quinta-feira, 15, é que se trata de uma trama baseada em um crime chocante com personagens reais.

A história da atriz Sharon Tate, interpretada no longa por Margot Robbie, é adaptada em diversos pontos, criando uma mistura entre o real e o ficcional sobre um dos assassinatos mais memoráveis de Hollywood. Tate, que era casada com o diretor Roman Polanski, foi assassinada grávida há 50 anos, em agosto de 1969, por seguidores de Charles Manson.

Ao adaptar um crime real à sua estética, Tarantino adere a uma fórmula que vem ganhando força no mundo do entretenimento. Desde programas no estilo Investigação Discovery, que abordam crimes com tom documental, até séries como "American Crime Story", superprodução da Fox que apresenta crimes que repercutiram internacionalmente em narrativas ficcionais, a lista de personagens de crimes reais resgatados para as telas é longa. Adnan Syed (do podcast Serial), Steven Avery (Making a Murderer), Wallace Souza (Bandidos na TV), Amanda Knox e Michael Peterson (The Staircase) são só mais alguns exemplos.

Debater assassinatos reais e especular sobre os culpados é muito atraente, e sempre foi, reflete Thiago Soares, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). "Há um fascínio em torno dessa figura que é deslocada da normalidade. É algo que interessa do ponto de vista narrativo. Desde a contação de histórias no passado, o terror sempre esteve presente", afirma Soares, que comanda um grupo de pesquisa em mídia, entretenimento e cultura pop.

Não há levantamentos para afirmar se há um aumento de produções desse tipo nos últimos tempos, mas Soares pondera que momentos de extrema polarização contribuem para criar no mercado do entretenimento a demanda por produtos que ajudem a refletir sobre essa disfunção. "A cultura pop e o entretenimento também são formas de entender o mundo. Em um momento de discursos de ódio, é propício para entender como isso nasce, quais são as forças que estão em jogo", avalia.

Irmã de Sharon Tate elogia Margot Robbie em Era Uma Vez em Hollywood -  -

Bruno Leal, professor do Departamento de comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), observa que a narrativa de crime costuma ser caracterizada por um padrão. "Você tem um elemento que distorce e incomoda a realidade, e em seguida há um movimento para restaurar a normalidade. Há o elemento de ruptura e o elemento de pacificação", pondera.

Leal, que tem trabalhos publicados sobre narrativas audiovisuais e a relação com a morte, lembra que muitas vezes os produtos de entretenimento se servem das histórias reais. "Isso implica em dizer que elas são tratadas a partir de parâmetros estéticos e narrativos típicos de quem o faz. No caso do Tarantino, a estética da violência é clara." Para o pesquisador, o podcast Serial, produzido pela NPR, rede pública de rádio dos Estados Unidos, é um dos poucos produtos que não apresentam a história real a serviço da estética.

"O Serial se beneficiou de toda uma tradição de liberdade da NPR. Ainda que seja seriado, tem picos de tensão, mas consegue fazer isso sem tratar o crime a partir de um protocolo narrativo", explica. Sucesso de público, foi o podcast que chegou mais rápido à marca de 5 milhões de downloads na história, em novembro de 2014, segundo a Apple.

Interesse mórbido?

Se você é um grande apreciador de "true crimes", como é conhecido esse tipo de produção, provavelmente tem uma lista de argumentos sobre a culpa ou inocência dos acusados. A resposta positiva dos espectadores, ouvintes e leitores é o que move o mercado a produzir mais narrativas desse tipo, e isso não tem nada de novo, ressaltam os pesquisadores consultados pelo TAB.

"Um crime grave é um ato que instaura uma ruptura tão profunda com o laço social que muitas vezes é insuportável encará-lo de frente. Acabamos, para isso, nos valendo de mecanismos defensivos que operam no sentido de diminuir o mal-estar derivado dele", diz o psicólogo Gustavo Mano, pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Lidar com algo tão chocante de uma maneira mais distanciada ajudaria, portanto, a encarar as barbáries da realidade.

Era Uma Vez em Hollywood - Divulgação / Sony Pictures - Divulgação / Sony Pictures
Imagem: Divulgação / Sony Pictures

"São modos de retornar à cena, mas desde um outro lugar, eventualmente com a esperança de que se possa produzir uma história que retroaja sobre a original", completa Mano, que estuda psicanálise e cultura pop.

Leal, da UFMG, avalia que falar de crimes reais no entretenimento pode ser até mesmo uma maneira de lidar com esse tema tabu no mundo ocidental. Antigamente, explica o professor, os rituais ligados à morte eram públicos - pense, por exemplo, nos enforcamentos. "À medida que você vai desenvolvendo uma sociedade mais produtiva, voltada para o trabalho, você reorganiza esses rituais, e a morte passa a ser privada - no quarto, no hospital." Para o pesquisador, as narrativas midiáticas são uma forma de vivenciar a morte.

Se há consumo, há mercado

A onda de produções de "true crime" pela indústria do entretenimento também chegou ao Brasil. Um exemplo é o filme "A Menina que Matou os Pais", sobre Suzane Von Richthofen. Já em produção, o longa-metragem levará às telas a história real de um dos crimes recentes que marcaram o país. A série "Bandidos na TV", da Netflix, também trata de um caso de polícia real sob a lente do entretenimento, apesar de se aproximar mais de um documentário.

"Você tem um país enorme não narrado", diz Leal. "Há demanda, há casos e histórias com realidades ainda não contempladas pela mídia regular. E há pesquisadores que ressaltam que uma das melhores coisas que o Brasil pode fazer é pensar sobre sua própria realidade", completa.

Além disso, histórias de crimes atiçam a curiosidade e, consequentemente, vendem. Thiago Soares lembra, por exemplo, dos Dearly Departed Tours em Los Angeles, que levam os turistas para conhecer as histórias da morte de celebridades. A promessa é explorar "casos como Manson, Janis, Whitney e Michael, além de celebridades menos conhecidas com partidas ainda mais espetaculares". Visitas a túmulos, fotos das cenas dos crimes e até mesmo ligações ao serviço de emergências 911 fazem parte dos pacotes.

Feridas alheias

Para quem está envolvido de alguma forma nos crimes dramatizados em filmes e séries, essas produções podem passar longe do entretenimento. O psicólogo Gustavo Mano recomenda cautela extra nas produções que resgatem histórias reais de crimes. "Do ponto de vista das vítimas diretas e indiretas, pode acabar reabrindo feridas mal cicatrizadas, interditando a elaboração do luto, reacendendo traumas, expondo pessoas que buscaram seguir em frente", explica.

A segunda temporada de American Crime Story, que dramatizou a morte do estilista Gianni Versace, gerou mal-estar para a família do italiano. Em um comunicado poucas horas antes da estreia, a família alertou que não autorizou o livro no qual a série foi parcialmente baseada e nem participou da criação do roteiro. "Essa série deve ser considerada apenas como um trabalho de ficção", dizia o comunicado.

Questionado em Cannes, no lançamento do filme, se pensou duas vezes antes de retratar a história trágica de Tate no filme, Tarantino foi lacônico e respondeu, apenas, "não." O foco do filme é a história do ator frustrado Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e de seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt), mas o retrato ficcional dos últimos meses de vida da atriz faz parte da trama. Se a gente te contar mais do que isso, perde a graça.

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