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Repórter passa um dia consumindo arte feita por robôs: "Nada faz sentido"

Toby Melville/Reuters
Imagem: Toby Melville/Reuters

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

12/12/2019 04h01

Robôs me telefonam, comentam meus posts e falam comigo quando passo uma cancela de shopping. Não tenho dinheiro para ter um robô que aspire minha casa nem que invista em ações da Bolsa por mim. Mas decidi dar uma chance para eles me mostrarem seus dotes artísticos. Fiquei um dia consumindo obras feitas por inteligência artificiais. Conclusão da maratona: esses autômatos podem ser bem nonsense.

Justo eu que estou escutando música criada por algoritmo, patenteado por neurocientistas e que promete concentrar qualquer um em 15 minutos, para escrever esse texto. Sem nome e sem rosto, esse compositor é uma inteligência artificial (IA) desenvolvida por uma startup chamada Brain.fm.

Cético, porém desesperado, resolvi testá-lo nove meses atrás. Aqui estou mais uma vez escrevendo ao som do algoritmo milagroso que me cobra o dobro do Spotify e que me acompanha ao menos cinco horas por dia.

Como é o som dessa IA? Às vezes é um piano, às vezes é uma batida eletrônica ou mesmo algo que lembra uma trilha sonora do Hans Zimmer. O som é sempre parecido, mas nunca é igual. E é muito maluco pensar que sempre estou ouvindo uma música "ao vivo" feita só para mim e que nunca ouvirei aquele exato som novamente.

Retrato de Rembrandt robótico - Patricia Brandstatter - Patricia Brandstatter
Imagem: Patricia Brandstatter

Isso porque o software usa melodias compostas por humanos e as remixa para seu corpo não se acostumar. Além disso, a música é sempre modulada de forma que o cérebro consiga entender padrões e, com isso, liberá-lo para se concentrar na atividade que você quer realizar.

Aí vem o grande questionamento: se me tornei fã de um algoritmo músico, será que um dia poderei também estar consumindo mais livros, filmes e pinturas criadas por máquinas impessoais, mas capazes de calcular exatamente o que quero? Em busca da resposta, fui consumir o que as IAs já estão criando.

Computadores fazem arte?

Já tem IA escrevendo notícias de trânsito, clima e esporte. Mas não é o caso dessa reportagem. O que está por trás dessas criações é a chamada rede neural artificial. Antes que você ache que me tornei uma máquina, vamos lá: essa rede é basicamente um modelo computacional que reconhece padrões e consegue fazer a máquina imitar (com uma série de limitações) sistemas nervosos de um cérebro e, consequentemente, aprender coisas.

Quando o software está criando música ao vivo, por exemplo, na verdade ele está reconhecendo melodias e "aprendendo" a compor novas músicas com base em padrões que reconhece.

É possível também jogar algumas palavras e, ao reconhecer os padrões, a IA criará novas histórias. É justamente com isso que o site Literai, criado há três anos brinca. Nele, qualquer pessoa pode, em apenas alguns passos, treinar seu computador para criar uma história nova.

Mão robótica passa maçã para humano no evento Streetwise Robots - Andy Rain/EFE - Andy Rain/EFE
Imagem: Andy Rain/EFE

"Geralmente a escrita dessas redes neurais não é muito boa, mas pode ser extremamente esclarecedora sobre os padrões e estilos que ela é ensinada a imitar", reconhecem os criadores da página."O Literai é a casa para a ficção escrita por computadores, e nosso objetivo é encorajar a criação cuidadosa de histórias de entretenimento nessa nova forma de arte", completa a descrição do site.

Opa! Colocar ficção escrita por robôs como nova forma de arte? Será que, em breve, poderemos encontrar uma área dedicada ao gênero de autores artificiais? Um breve passeio nos contos postados no Literai me deixam em dúvida.

O primeiro postado no site se chama "De choro e capitães" e se propõe a criar uma história como se fosse escrita por Jane Austen com uma pitada de Mary Shelley. "Estou tão feliz com esse trabalho. É a maior peça de ficção que já pude criar. Embora às vezes se atrapalhe, o trabalho realmente parece com uma novela de Austen, o que eu realmente acho impressionante", escreve Isadora Lamego, que criou o modelo computacional para a máquina seguir. É curioso ela dizer que está orgulhosa de algo que criou, quando a história na verdade foi escrita por uma máquina que imita Jane Austen. Como ficariam os direitos autorais desse livro? A autoria seria de Austen, da programadora ou de ninguém?

De qualquer forma, eis um dos parágrafos mais compreensíveis que encontrei no conto:

É uma festa, e você deve ser meu dia futuro, e então para meu pobre mês. Quando lhe dei o estado das boas maneiras e da mulher de fazer outras palavras de sua vida. E que tivemos uma boa à noite. E os viajantes da maior consciência das montanhas e os estranhos no país, que era conhecida pela arte de uma pessoa que é espécie das festas da empresa.

Não sou nenhum grande conhecedor de Jane Austen, mas acho que ficou sem pé nem cabeça. Acho que, mais do que razão e sensibilidade, faltou certa coerência na história contada pela IA.

Enquanto isso, tem gente vendendo livros físicos criados por IAs. É o caso do Booksby.ai, que pretende ser uma livraria online só com textos escritos por robôs. No caso, todas as obras são ficções científicas — porque as máquinas só foram treinadas com esse gênero. "Nenhuma das histórias, títulos, descrições, capas ou resenhas relacionados aos livros daqui foram gerados ou escritos por humanos", avisa a página discretamente. Antes disso, encontrei vários elogios aos livros. Só depois descobri que as críticas também foram geradas por robôs. Até mesmo os preços foram sugeridos por um software.

Velázquez robótico - Patrícia Brandstatter - Patrícia Brandstatter
Imagem: Patrícia Brandstatter

Infelizmente, US$ 11 é caro e não quero gastar dinheiro, conquistado com meu trabalho humano, em algo como esse conto esquisito da Jane Austen. Então resolvi tentar outra opção: Talk to Transformer, um site que completa minhas frases utilizando a IA desenvolvida pela OpenAi — uma ONG bancada por Elon Musk e outros empreendedores do Vale do Silício para estudar os limites éticos da IA.

Para começar a brincadeira, inseri o início da música "Space Oddity", de David Bowie. Confira abaixo o resultado. O primeiro parágrafo é autoria de Bowie (que apenas traduzi) e o resto é trabalho da máquina. Apenas traduzi do inglês para o português:

Aqui é o Major Tom para a base de controle. Estou atravessando a porta
E flutuando de um jeito muito peculiar
E as estrelas parecem bem diferentes hoje
Pois aqui estou eu, sentado nesta lata
Bem acima do mundo
O planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer...

.Nessa pura escuridão
Aqui está minha passagem para as estrelas
E o coração de minhas centenas de músicas
Te darei uma que começa assim:
'O que mais há para fazer
Além de encarar o céu eterno?'

OK. Dessa vez deu certo. E muito! Esse segundo parágrafo realmente poderia ter sido escrito por Bowie. Me sinto até herege em falar isso sobre uma de minhas canções favoritas. Será que o próximo Bowie será mesmo uma IA?

Sonhando com ovelhas elétricas

Bateu a fome e é hora de comer. Como estou no escritório em um sábado à noite, peço comida por algum aplicativo. Quem me entrega é um motociclista, que ainda não foi completamente substituído por um robô. A comida, no entanto, vem de um restaurante que só funciona por delivery em aplicativos e vendendo qualquer peça de comida japonesa por R$ 1. O segredo pelo baixo preço e a entrega em 15 minutos? Os pratos são quase todos montados por máquinas.

Para aproveitar a refeição, vamos com um filminho. "Sunspring", filme escrito por "Benjamin", uma inteligência artificial treinada com dezenas de roteiros de ficção científica. A ideia veio do diretor Oscar Sharp e do pesquisador de IA na Universidade de Nova York, Ross Goodwin. Eles chamaram atores para tentar dar sentido ao roteiro e interpretar livremente as falas. O resultado vocês podem conferir abaixo (em inglês):

Ao que tudo indica, está rolando um triângulo amoroso em uma espaçonave, que rapidamente escala para algo psicodélico com direito a assassinatos. Há uma premissa na fala inicial ("em um futuro com desemprego em massa, as pessoas têm que vender seu sangue para sobreviver") e depois se somam várias falas aleatórias.

O mais bacana do filme é que ele sempre vai para caminhos completamente inesperados — como quando tudo sugere que vai acabar em porradaria, mas acaba com um "eu não sei". Parece até algo que David Lynch faria. Como um todo, a produção não faz sentido — mas chega perto e é divertido.

Os responsáveis pelo curta claramente se divertiram muito fazendo. Exemplo disso é o comportamento deles no Sci-Fi London, festival no qual o filme foi inscrito. Na hora da votação popular, usaram robôs para inflar as aprovações. Ora: se a produção foi criada por uma máquina, por que não pode ser chancelada por outras? Obviamente o argumento não colou e a disputa foi cancelada.

Na estreia de "Sunspring", muitos críticos afirmaram (com razão) que o mérito do filme é mais dos humanos do que da máquina. São os atores e diretores que conseguiram identificar e adicionar nuances, como trocas de olhares, toques corporais e emoções nas vozes, que dão sentido ao roteiro.

Incomodados com a crítica, Sharp e Goodwin foram além e resolveram dar ainda mais controle criativo para a IA. A nova brincadeira foi permitir que a máquina controlasse a edição, cenas, vozes e tudo mais. Para isso, eles alimentaram a rede neural artificial com filmes antigos de ficção científica e gravaram atores interpretando cenas e falas aleatórias em um fundo neutro. Usando técnicas de deepfake, a IA misturou tudo e o resultado foi "Zone Out", que você vê abaixo. Spoiler: esse é ainda mais esquisito e não faz sentido algum.

Humanos, apesar de tudo

Alan Turing, pioneiro na computação, propõe um paradigma que ficou conhecido como "Teste de Turing". Em vez de questionar se um robô é capaz de pensar, questiona-se se um robô pode se passar por humano.

Olhando para os trabalhos criativos feitos pelas máquinas, a conclusão óbvia é que os robôs ainda estão longe de se passar por humanos. Por outro lado, o que estão criando é incrível e obedece a uma outra ideia famosa no mundo da tecnologia, a terceira lei do escritor de Arthur C. Clarke: "Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia".

A verdade é que, por trás desse barulho todo, os robôs não estão criando nada. Estão mais para um liquidificador misturando referências — que são obras humanas. Se o liquidificador está bem configurado e os ingredientes são bons, o batidão que sai é bom. Musicalmente o resultado é o melhor. Em cinema e literatura ainda não é bom, afinal, falta linearidade nas narrativas.

O futuro não é dos robôs, mas dos ciborgues culturais. Isso é: humanos usando máquinas como ferramentas criativa. Combinar redes neurais artificiais e sinapses de Homo sapiens poderá resultar em uma explosão criativa que ainda não conseguimos imaginar, mas algum robô sim.