Números que chocam

Para especialistas, restos mortais sem identificação no Brasil são problema 'terrível' e dupla violência

Saulo Pereira Guimarães Do UOL, no Rio teste

O número de 26 mil restos mortais não identificados no Brasil representa um problema "terrível" e a quantidade de 201 vítimas encontradas em 41 valas clandestinas desde 2016, no Rio e em São Paulo, é "muito preocupante", na opinião de especialistas estrangeiros que acompanham o tema. Os dados foram revelados por investigação do TAB.

"Ter 26 mil corpos sem identificação é terrível. Não deveria haver nem um. São famílias que não sabem que seu ente querido não está desaparecido, mas sim nas mãos do Estado", diz May-ek Querales Mendoza, doutora em antropologia e integrante do Giasf (Grupo de Investigações em Antropologia Social e Forense), do México.

O país se tornou um dos principais casos de estudo sobre o assunto no mundo pelo aumento do número de valas clandestinas descobertas a partir dos anos 2000. Para especialistas, o fenômeno é fruto do crescimento das atividades de grupos ligados ao tráfico de drogas na região.

"O número [de vítimas em valas clandestinas do Rio e de São Paulo] é grande e muito preocupante", afirma Angélica Martinez, professora associada de ciência política e diretora de estudos globais da Universidade de Massachusetts Lowell, nos Estados Unidos, especializada em violência criminal e tráfico de drogas na América Latina.

Para Daniel Bustamante, investigador da EAAF (Equipe Argentina de Antropologia Forense), a existência de um órgão que reúna informações sobre valas clandestinas é importante para a resolução do problema. Hoje, o Brasil não conta com nenhuma instância do tipo.

Segundo ele, na Argentina, esse papel cabe à Justiça e ao Ministério Público, responsáveis por preservar os locais de sepultamento clandestino, evitando sua remoção ou alteração. No Brasil, algumas valas clandestinas encontradas não são preservadas.

Em um dos casos identificados pelo UOL, um delegado da Polícia Civil de São Paulo divulgou o endereço de um local de ocultação de cadáveres no YouTube, obtendo milhões de visualizações, e só iniciou as escavações 54 dias depois, o que comprometeu a investigação.

VIOLÊNCIA DUPLA

"A não identificação é uma segunda violência com o corpo morto que foi ocultado", afirma Alejandra Guillén, jornalista independente e docente na Universidade de Guadalajara, no México.

Já o argentino Bustamante destaca que a existência de redes integradas de dados genéticos, impressões digitais e outras informações é decisiva para a redução do número de restos mortais não identificados.

As iniciativas do tipo ainda estão em fase inicial no Brasil. A Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos tem apenas 6.087 amostras de familiares de desaparecidos. Esse tipo de perfil pode ser decisivo para a identificação de restos mortais, mas perde eficácia pelo volume pequeno de dados, em comparação à quantidade de cadáveres não identificados.

O mesmo acontece em relação aos bancos de impressões digitais usados nas investigações ligadas a desaparecidos. Por serem estaduais e não estarem totalmente unificados, os acervos se tornam menos úteis.

"Se você não tiver um universo para confrontar dados genéticos e outras informações dos restos mortais, as comparações nunca levarão a um resultado", explica Bustamante.

Na Argentina, o Sistema Federal de Busca de Pessoas Desaparecidas e Extraviadas existe desde 2016 e reúne dados de 30.786 cidadãos com localização desconhecida. Além disso, o órgão tem outras funções — como facilitar a interlocução entre agentes públicos durante investigações e capacitar pessoal para atuar na área.

Um documento produzido pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos do Brasil e obtido pelo UOL apontou a escassez de "pessoal técnico qualificado" como uma das razões para o alto número de restos mortais não identificados no país.

Já no México, a Comissão Nacional de Buscas contabiliza cerca de 100 mil desaparecidos e há mais de 52 mil restos mortais não identificados, segundo o Movimento Nacional pelos Nossos Desaparecidos.

Desde 2017, o país conta com o Sistema Nacional de Buscas, criado para desenvolver e avaliar ações voltadas para procura, localização e identificação de desaparecidos — assim como prevenção e investigação de sumiços.

Só esta estrutura conta com o apoio de 89 funcionários públicos. Nos 32 estados mexicanos, há também comissões locais, que fazem a busca ativa de desaparecidos.

Para comparação, o Núcleo de Antropologia do Instituto Médico Legal de São Paulo, que analisa a maior parte dos corpos encontrados em valas clandestinas no estado, tem apenas três médicos legistas.

"O problema não é apenas encontrar quem foi morto, mas aumentar a capacidade de o Estado identificar essas pessoas, que é muito baixa", diz a pesquisadora Angélica.

O Brasil, por sua vez, não sabe quantas pessoas estão desaparecidas. Apuração do UOL revelou falhas na investigação de casos de desaparecimento, inclusive quando há indícios de que as pessoas tenham sido vítimas de crime, como sequestro, cárcere privado, homicídio e ocultação de cadáver.

'CRIMES AUTORIZADOS'

May-ek vê semelhanças entre os casos de valas clandestinas e descarte de cadáveres em áreas alagadas, revelados pelo UOL, e outras formas de ocultação de corpos já verificadas na América Latina.

A mexicana cita como exemplo os voos da morte na Argentina (em que aviões das Forças Armadas jogavam pessoas no rio da Prata ou no mar, durante a ditadura militar argentina) e um episódio ocorrido no México em 2020, em que restos mortais eram dados de comida a crocodilos.

"Os criminosos fazem cálculos para se desfazer de evidências e o papel dos especialistas é investigar para entender como isso está sendo feito", diz. Para ela, a omissão do Estado e a impunidade dos atores envolvidos fazem com que os desaparecimentos realizados por grupos armados funcionem como uma espécie de "crime autorizado".

Angélica aponta ainda o passado ditatorial da América Latina, marcado por torturas, sequestros e execuções, como outro fator para que o problema das valas clandestinas seja acompanhado com mais atenção na região.

"O que estes casos mostram é que o conhecimento das técnicas de desaparecimento nunca some. São aprendizados transmitidos entre os grupos violentos", diz ela.

Na opinião de May-ek, a mobilização das famílias de desaparecidos é decisiva para a visibilidade do tema na América Latina, maior do que em outras partes do planeta.

São casos como o da família Muñoz, que teve oito de seus integrantes levados ao ser atacada por homens com uniforme da Polícia Federal mexicana durante uma festa, em 21 de junho de 2011.

Quase 11 anos depois, o episódio segue sem solução, mas a matriarca Emma, seu genro Albino e outros membros da família continuam tentando esclarecer os desaparecimentos.

"Não há uma resposta completa para a questão das valas clandestinas na América Latina, mas uma série de perguntas que precisam ser feitas em conjunto", resume Alejandra.

MÉXICO: QUASE 3.000 CORPOS, 2.000 VALAS

Um levantamento feito no México pelo coletivo de jornalistas A Dónde Van los Desaparecidos, publicado em 2018, revelou que 2.884 corpos foram localizados no país em 1.978 valas clandestinas, entre 2006 e 2016. Além disso, foram encontrados 324 crânios e 217 esqueletos — entre outros tipos de restos mortais, como fragmentos ósseos.

"Encontramos o caos. Cada autoridade registrava as valas clandestinas de um jeito. Várias mentiam nas respostas. O mais difícil foi organizar todas essas informações", afirma Alejandra, que participou da reportagem.

Apenas na região conhecida como Colinas de Santa Fe, no município de Veracruz, foram achados 22.079 vestígios ósseos. Uma das valas encontradas no local abrigava até roupas de recém-nascidos, como calças, gorros e moletons.

Segundo Alejandra, 1.738 vítimas foram identificadas no período analisado pelo levantamento. Isso dá metade dos corpos, crânios e ossadas encontrados, mas o número total de vítimas pode ser maior, já que também foram achados diversos fragmentos de ossos.

Já no Brasil, de acordo com o levantamento do UOL, apenas 38% das vítimas achadas em valas clandestinas em São Paulo tiveram a identidade descoberta; no Rio, somente 16%.

Para Paula Napolião, pesquisadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), a questão dos desaparecimentos é invisibilizada no Brasil hoje.

"A ausência de dados e de interlocução entre instituições que trabalham com o tema não permite sequer que tenhamos a dimensão do problema", afirma.

Paula entende como grave a ação limitada do estado em relação ao tema.

"É urgente que o poder público mobilize esforços para garantir o acesso a direitos a esses familiares", defende.

A maior parte dos identificados no México eram jovens pobres, com pouco acesso a estudo e oportunidades de trabalho, que viviam em áreas dominadas pelo crime. Algo parecido acontece no Brasil, onde as valas clandestinas identificadas pelo UOL ficam, sobretudo, em bairros da periferia de São Paulo e Rio de Janeiro.

"É o mesmo fenômeno e o mesmo perfil de vítima verificado no Brasil. Temos um sistema que está gerando mecanismos de descarte de pessoas em nossos países", resume ela.

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