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Scanner facial abre alas e ninguém mais se perde no Carnaval (e fora dele)

Marcos Vinícius de Jesus Neri foi flagrado por uma câmera chinesa da Huawei no Carnaval de Salvador e preso - Arte/TAB
Marcos Vinícius de Jesus Neri foi flagrado por uma câmera chinesa da Huawei no Carnaval de Salvador e preso Imagem: Arte/TAB

Fernanda Távora, Gabrielle Araújo e Jordan Sousa*

Do agência data_labe, no Rio

11/03/2019 04h01

São Paulo se esforça, Recife e Olinda são históricas, mas Rio e Salvador ditam as tendências carnavalescas no Brasil. Em 2019 não foi diferente, mas não apenas pela festa em si: as duas cidades viraram laboratório para a tecnologia de reconhecimento facial nas ruas. Milhões de foliões foram identificados pelas câmeras chinesas instaladas pelas polícias. Sem saber, os que festejaram mascarados escaparam das lentes que vieram para ficar no país.

Nos cinco dias (oficiais) de Carnaval, cinco pessoas foram presas por meio do escaneamento do rosto. No Rio, foram quatro. Em Salvador, só um foragido foi preso, mas o caso foi emblemático. Fantasiado de melindrosa de cabaré e com uma metralhadora colorida de brinquedo na mão, Marcos Vinícius de Jesus Neri havia sido condenado por homicídio com arma de fogo. Ele foi reconhecido pela câmera da marca Huawei quando acessava o circuito Barra-Ondina, pronto para participar do bloco As Muquiranas.

Apesar da polêmica em torno da proteção de dados, o uso de softwares de reconhecimento facial na segurança pública foi defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante a campanha eleitoral e acabou anunciado como evolução no combate à criminalidade pelos governadores do Rio, Wilson Witzel (PSC), e da Bahia, Rui Costa (PT).

No Rio, desde janeiro de 2019 a Polícia Militar, a Polícia Civil e a empresa de telefonia Oi tem trabalhado em conjunto para espalhar essa tecnologia pelas ruas. O projeto, que já conta com 28 câmeras instaladas na orla de Copacabana, foi criado pela empresa chinesa Huawei, famosa por distribuir 1,3 milhão de lentes em Shenze, onde fica sua sede - quem atravessa a rua fora da faixa nessa cidade é identificado no instante e recebe multa em 20 segundos em seu celular graças a esse mesmo aparato.

O objetivo do sistema, segundo as autoridades, é reconhecer criminosos em meio a multidões. A inteligência identifica o rosto de pessoas que já cometeram crime a partir de uma base de dados. No caso do Rio de Janeiro, essa missão fica com o Instituto Félix Pacheco (IIFP), responsável pelo registro criminológico do Estado e submetido a Polícia Civil.

Fora as quatro pessoas presas, no Rio foi apreendido um menor que estaria cumprindo medida sócio educativa, além da recuperação de um carro roubado (placas também são identificadas pelas lentes). A operação seguiu para a segunda etapa de teste até o dia 11 de março. Ou seja, quem andou pelas ruas de Copacabana durante as últimas semanas teve seu percurso rastreado pelas câmeras do CICC (Centro de Integrado de Comando e Controle da Polícia Civil), localizado na Cidade Nova, a oito quilômetros do bairro cartão postal.

É possível antecipar um crime?

"O resultado que a gente busca não é quantificável. É a prevenção do crime. O resultado é que o sistema auxilie a corporação na prevenção de delitos", diz o coronel e coordenador de Comunicação da Polícia Militar do Rio, Mauro Fliess. O militar afirma que tudo ainda é um "projeto piloto" e sem custos para o governo do Estado - segundo ele, tudo é bancado pela Oi.

Mas como prender alguém que não cometeu nenhum crime em flagrante? Para que as prisões dentro desse sistema fossem efetuadas sem nenhum abuso legal, Fliess conta que a PM usou um princípio jurídico chamado "presunção de legitimidade". Esse mecanismo é utilizado em casos onde as provas jurídicas - no caso os registros do IIFP - são suficientes para que a responsabilidade de provar o contrário fique a cargo do acusado.

Se para o coronel Fliess tudo está nos conformes, há quem considere que as coisas não são tão simples. Para o professor e pesquisador Eduardo Ribeiro, do Observatório de Análises da Violência da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a medida é problemática. "Você pode monitorar a pessoa, mas prender um indivíduo antes de ele cometer o crime, baseado em seu histórico, é muito grave". Segundo Ribeiro, a medida vai de encontro com a presunção de inocência garantida pela Constituição Federal. "Esse termo é sequestrado do direito internacional, muito parecido com os mecanismos utilizados contra o terrorismo", completa.

As câmeras podem, em longo prazo, passar uma sensação de segurança para a população, mas não significa que vão impedir ações criminosas. "Talvez fosse mais útil simplesmente o policiamento ostensivo nas praias, com policiais à paisana, do que de fato o algoritmo de reconhecimento facial. A tecnologia serve para algumas coisas, não para tudo que se pretende", afirma Ribeiro.

Apesar de muito discutido, aspectos ligados a privacidade e segurança dos dados do projeto ainda são questões nebulosas. A Oi, responsável pela tecnologia, não respondeu aos questionamentos da imprensa e nem passou informações detalhadas sobre como os dados vão ser armazenados, quem vai gerenciar essas informações e por quanto tempo elas serão guardadas. Em nota, a empresa afirma apenas que "a operação da plataforma é feita exclusivamente pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro".

Por trás das câmeras

O TAB esteve presente na sala de controle durante o primeiro dia de operação do sistema de monitoramento do CICC. De um lado, as baias dos 88 policiais treinados para operar o sistema durante 24 horas, nas quais se liam plaquinhas com logos da Oi e da Huawei. Do outro, uma parede coberta de telas com imagens em alta resolução das ruas de Copacabana. Um funcionário da empresa de telecomunicações observava as equipes de reportagem. Todos os pedidos de entrevista ao representante da Oi foram negados pelo assessor da secretaria da Polícia Militar.

É possível afirmar que a recusa da Oi em fornecer detalhes da operação tem amparo legal. Isso porque o sistema de reconhecimento facial se aproveita de uma brecha na Lei Geral de Dados, promulgada em 2018, e que entra em vigor em 2020. A empresa se apoia em uma cláusula que diz que dados coletados não estão sujeitos a lei se forem usados para fins de segurança pública.

Segundo o advogado Danilo Doneda, doutor em Direito Civil pela UERJ e especialista em proteção de dados e privacidade, o que deveria ser feito seria uma lei específica para esses casos. "Os direitos e os princípios de proteção de dados têm que ser levados em conta, mesmo neste caso. Não se pode abdicar completamente da transparência e, na medida do possível, respeitar os direitos de quem está cedendo esses dados É preciso informar que tipo de dados são tratados, por quem, para quem, que tipos de medidas de segurança estão sendo tomadas para isso", afirma.

Dados públicos versus pessoais

A venda de equipamentos de vigilância e segurança para governos está se tornando um novo nicho de mercado para as empresas de telefonia. Enquanto essas perdem receita para aplicativos como o WhatsApp, os governos seguem a pagar fortunas por tecnologias de coleta de dados. Segundo Yasodara Córdova, pesquisadora da Kennedy School, consultora da Open Knowledge Brasil e colunista do TAB, as empresas não têm incentivo para serem transparentes nas suas ações, seja pela vantagem competitiva, seja para blindar a imagem da empresa para críticas. "A definição de quais dados são públicos, quais são privados e quais são os pessoais que deveriam estar em sigilo é uma discussão do que a autoridade nacional de dados, que ainda não foi definida no Brasil, vai considerar", afirma.

Para Yasodara, apenas aprovar a Lei Geral de Dados não garante que ações como o projeto de monitoramento facial seja um sistema seguro para a coleta de dados da população. Questões como a filmagem de câmeras de segurança, dados associados ao CPF e dados ligados a concessionárias que prestam serviços públicos são pontos polêmicos na lei. "Enquanto isso não acontece, as empresas continuam coletando dados pessoais. Existe essa mistura de dado público e dado pessoal. Teremos que fazer um esforço jurídico e julgar caso a caso para aplicar a lei", explica.

Além disso, a discussão sobre privacidade, por ser nova, ainda tem seu alcance restrito, ao contrário dos sucessivos avanços tecnológicos dos sistemas de vigilância. Isso acaba deixando o cidadão menos informado mais vulnerável em situações como essa. "Difícil usar o argumento de que é ruim para sociedade que todo mundo saiba onde todo mundo está o tempo todo, quando a gente tem uma sociedade onde a segurança pública não tem sido prioridade, onde as pessoas fariam qualquer coisa para melhorar a sensação de segurança delas na rua", afirma Yasodara Córdova.

Enquanto isso, nas ruas...

Se o que importa é a sensação de segurança, quem passasse pela orla de Copacabana durante o Carnaval não podia reclamar: a cada esquina da Avenida Atlântica pelo menos um carro da polícia era visto. Segundo a secretaria da PM, houve um aumento de 5% do efetivo policial nas ruas da cidade durante o evento em comparação com 2018.

Com o trânsito parcialmente fechado, os foliões circulavam livremente pela orla, onde a maioria das câmeras estão posicionadas. No calor abafado da cidade, eram poucos os que usavam máscaras - adereço que poderia dificultar o reconhecimento facial. Acompanhando os blocos que passaram por lá, um carro da guarda municipal, um carro da RioTur e um grupo de policiais militares dividiam o caminho com os foliões.

"A gente se sente mais seguro. Quando a gente para um pouco para descansar, buscamos sempre um carro da polícia", disse Leonardo Soares, 29. Ele e o grupo de amigos saíram de Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio, para curtir a festa. Do outro lado da calçada, mais perto da praia, dois policiais montavam guarda observando a movimentação. Sobre as câmeras de reconhecimento, Leonardo não sabia que o sistema já estava em funcionamento, mas a opinião foi favorável: "É mais segurança, menos preocupação com assaltos", concluiu.

Máscaras de Carnaval vendidas em Copacabana eram uma forma para escapar das câmeras de reconhecimento facial - Jordan Sousa/data_labe - Jordan Sousa/data_labe
Imagem: Jordan Sousa/data_labe

Em outras partes da cidade, não é costume a polícia fazer um acompanhamento tão próximo dos blocos quanto foi observado em Copacabana. Moradora do bairro, Kelly Palares, 45, observou que o policiamento não é assim durante os outros dias do ano. Sobre o sistema de reconhecimento facial, acha uma "boa medida", mas com ressalvas. "Se você parar para pensar, as pessoas vão se sentir vigiadas. Vai evitar crime porque vai identificar o bandido, mas é uma invasão de privacidade", afirma. Para ela, o clima de violência colabora para que só se veja os pontos positivos. "Se fosse há dois anos, eu veria isso pelo lado negativo", admite.

A escolha de Copacabana pela Secretaria da Polícia Militar não foi apenas pelas taxas de criminalidade do local. Segundo a assessoria da PM, o planejamento preferiu o bairro da Zona Sul ao Centro por conta da dinâmica das pessoas que circulam por ali. O centro tem uma população mais flutuante, passa um bloco e, logo depois, as ruas ficam vazias. Copacabana mantém uma dinâmica de circulação quase que 24 horas por dia, o que oferece condições para o funcionamento pleno da tecnologia.

Moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Tátila Moreno, 21, acompanhava um dos blocos da Avenida Atlântica junto com outras amigas. As três estavam vendendo água enquanto curtiam a folia da Zona Sul, prática comum para quem quer se manter no Carnaval sem gastar muito e ainda faturar. Nenhuma delas sabia que as câmeras de reconhecimento facial estavam funcionando naquele dia. "Acho que o sistema pode ajudar a polícia, mas é arriscado porque as pessoas não estão sendo informadas sobre o que está acontecendo, sobre como funciona", disse Tátila. Quando questionadas sobre o policiamento do Carnaval de 2019, as três tiveram a sensação de maior presença da polícia pelo bairro "Aqui em Copacabana tem mais gente circulando, mas também é uma área onde tem gente com mais dinheiro. Em Caxias não tem preocupação com segurança desse jeito", criticou.

Se por um lado os sistemas de inteligência artificial podem apresentar propostas para otimizar o trabalho da polícia, por outro podem aprofundar ainda mais essas diferenças territoriais e alguns preconceitos. Tátila não é a única a pensar assim. Doneda também fala sobre como as dinâmicas de segurança podem ser alteradas com o uso dessa nova tecnologia. "O que pode acontecer é aumentar o policiamento nessas áreas já delimitadas e que a preocupação seja muito maior com delitos menores. Enquanto isso, outros tipos de crimes, que muitas vezes não entram no radar estatisticamente, migram para outros lugares. Por exemplo, os crimes de violência sexual, que já são subnotificados", afirma o advogado.

Mesmo com todas essas questões, o objetivo da PM-RJ é aplicar o sistema em outras partes da cidade. O governo do Estado do Rio, por sua vez, já sinalizou que no futuro o sistema vai operar em uma parceria público-privada. Na Bahia, o governador anunciou que até junho a identificação facial será instalada em aeroporto, estações de metrô e shoppings. Outros Estados planejam usar essa mesma tecnologia. A partir de agora, vai ficar difícil desaparecer por aí no Carnaval e fora dele.

*Colaborou Pedro Lira