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Colonialismo de dados ameaça liberdade e dá gás à 'Guerra Fria' EUA x China

Arte/TAB
Imagem: Arte/TAB

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

27/05/2019 04h00

Todos os momentos de nossas vidas estão sendo explorados por governos e empresas que possuem meios para transformar cada interação humana em dados com valor financeiro. Esse processo de extrair riquezas de muitos para o ganho de poucos é milenar, mas na escala e intensidade da era digital está criando um novo tipo de exploração, que o pesquisador britânico Nick Couldry chama de colonialismo de dados.

Couldry esteve na USP (Universidade de São Paulo) em maio para apresentar suas novas teorias sobre o momento que vivemos. Sociólogo e pesquisador da London School of Economics, ele faz o paralelo entre as explorações europeias durante as grandes navegações e seu consequente colonialismo histórico com a sociedade da hiperconexão e seu colonialismo de dados - Couldry vê esse movimento recente capaz de criar uma ordem social tão poderosa que o conceito de liberdade estará definitivamente ameaçado.

China e Estados Unidos entram nesse cenário de disputa com visões distintas. Do lado ocidental, o colonialismo é feito por empresas americanas privadas, como Google e Facebook, que segundo Couldry e outros especialistas mantêm um discurso considerado hipócrita de respeito à liberdade. No leste, governos como o chinês assumem que exploram os dados dos cidadãos em nome de uma suposta ordem e desenvolvimento social planejado.

Confira abaixo trechos da entrevista de Nick Couldry ao TAB:

TAB: O que define o colonialismo de dados e o colonialismo histórico? Quais são suas diferenças e semelhanças?

Nick Couldry: Acabei de escrever um livro com Ulises Mejias, que sai em agosto [de 2019] e é chamado "The Costs of Connection" ("Os Custos da Conexão", em tradução livre para o português). Nele, dizemos que algo muito grande está acontecendo na sociedade. As pessoas pensam que é algo sobre a expansão do capitalismo - o que, obviamente, é verdade - mas nos perguntamos se não seria algo maior. Acreditamos que há um novo colonialismo, baseado em explorar os seres humanos para transformar todos os aspectos de nossas vidas em valor econômico por meio dos dados.

A princípio você pode estranhar chamar isso de colonialismo. Então vamos ver o que era o colonialismo em sua essência. Há boas razões para lembrarmos dele por suas ferramentas: a terrível violência usada para alcançar o que os colonizadores desejavam e o racismo social que foi criado para justificar tudo.

Não estamos dizendo que isso está acontecendo com nossos dados hoje, mas a função essencial do colonialismo em longo prazo não era a violência ou o racismo, mas sim apropriar-se de recursos alheios. Isso mudou a história radicalmente e criou os mundos sociais que conhecemos.

Mas há outros aspectos do colonialismo histórico, como o fato de ter criado novas relações sociais entre as populações subjugadas e as populações colonizadoras. Houve extração de riquezas em tal escala que beneficiou toda a Europa e possibilitou o surgimento do capitalismo industrial. Essa era a ideologia do colonialismo: uma ideia de civilização que justificava tudo aquilo.

Esses foram os aspectos fundamentais do colonialismo histórico. O estranho é que conseguimos ver paralelos com o que está acontecendo com os dados hoje. O mais importante é a captura em massa de bens alheios. Colonizadores pegam dados que constituem o fluxo de nossas vidas e são obtidos por aplicativos, relógios, sistemas de logística, vigilância no trabalho e outros.

Essa obtenção de dados não é apenas um modelo de negócio, mas sim a ordem social da próxima era. Por isso, acredito que essas mudanças são tão profundas e de longo prazo que merecem ser chamadas de colonialismo. Apenas o colonialismo histórico promoveu mudança em tal escala na história humana.

Há também a diferença de não ser apenas um grupo específico de colonizados. Todos os cidadãos conectados no mundo estão dando seus dados. E os colonizadores hoje não são só governos, mas empresas - principalmente no Ocidente.

Sim, você está certo. Estamos em um momento da história muito diferente de 500 anos atrás quando o colonialismo histórico aconteceu. Isso promove algumas diferenças importantes.

A primeira é que, como o colonialismo aconteceu antes mesmo de o capitalismo existir, ele envolvia tomar o ouro e outros recursos de seres humanos com os quais os conquistadores não tinham relação alguma. Isso permitia a violência. Agora, o novo colonialismo acontece em um mundo em que as sociedades já estão organizadas em torno de relações capitalistas. As ferramentas estão aí e não há necessidade de violência para que a dominação seja eficiente.

Outra diferença é a distribuição geográfica. Antes o colonialismo acontecia de forma de tirar recursos de um lado do planeta e levar para a Europa. Agora os recursos são os dados, que estão sendo gerados em todos os cantos e por todos. Isso significa que o colonialismo pode operar tanto externamente, com populações distantes, quanto internamente no próprio país.

E ainda há dois polos do colonialismo: os Estados Unidos, que são muito poderosos historicamente nesse campo, e a China, que está tentando competir com os EUA. A China quer dominar a inteligência artificial até 2030 em uma escala global. Estamos vendo a batalha da Huawei com o governo norte-americano. Estamos só no começo de uma batalha imensa pela colonização, assim como já houve uma entre Portugal e Espanha no passado [da primeira era colonial].

Nick Couldry - Reprodução/Arquivo pessoal - Reprodução/Arquivo pessoal
Pesquisador Nick Couldry, da London School of Economics
Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

Você acredita que é possível falarmos que há uma espécie de "Guerra Fria" entre essas duas visões de mundo, da China e Estados Unidos, em relação à exploração dos dados?

Sim. Como você diz, há diferenças entre valores entre China e Estados Unidos. A primeira pode ser mais honesta ao afirmar que não pretende desenvolver liberdade. Ela fala sobre desenvolvimento de mercado, ordem social e econômica. O objetivo da China é criar uma sociedade mais estável e, ao mesmo tempo, gerar mais lucro com o crescimento econômico da sociedade. É fundamentalmente sobre ordem, não sobre liberdade...

Ambos os modelos, porém, independentemente do discurso, são uma ameaça à liberdade?

Sim, ambos ameaçam a liberdade. Há dois problemas fundamentais com essa nova ordem dos dados. Um é que ela é baseada no rastreamento constante das pessoas. É daí que vêm os dados. Quando clicamos em "Eu Aceito" sempre que baixamos um novo aplicativo, estamos concordando em dar informações. Essa é a base das relações e não temos muitas escolhas se não concordar.

Outra questão interessante que mudou é a relação entre corporações e governos. Se você olhar 30, 40 anos atrás, o conhecimento social era garantido às companhias pelos governos. Hoje, as empresas têm muito mais dados do que os próprios governos, que estão dependentes das corporações.

É claro que isso também aconteceu no colonialismo histórico. O Império espanhol criou uma companhia para explorar a riqueza da América Latina, assim como o governo britânico criou a Companhia Britânica das Índias Orientais para explorar a riqueza da Índia.

Mas agora podemos dizer que o equilíbrio de poder está mais a favor das corporações do que esteve no passado, quando os governos poderiam controlar os processos de colonialismo.

Essas ameaças à liberdade também afetam nossos comportamentos?

Sim. São três ameaças.

A primeira é o rastreamento. Até hoje, sempre acreditamos que estar sob constante vigilância, com alguém vendo nossos pensamentos, é um dano fundamental a nossa liberdade. E ainda é, mas agora chamamos isso de conveniência. A captura de dados para anúncios mais personalizados é conveniente, mas ainda é vigilância e, portanto, um dano à liberdade.

Há ainda uma segunda ameaça que acontece quando os dados são usados para tomar decisões que podem levar à discriminação. Ou não entendemos como são esses processos ou eles não são transparentes o suficiente. Com isso, temos decisões de corporações que fogem da nossa compreensão.*

*Nota do Editor: Há vários casos em que algoritmos tomam decisões consideradas racistas ou sexistas. Em parte, isso acontece porque os modelos estatísticos repetem padrões pré-existentes na sociedade. Os engenheiros nem sempre sabem explicar como os dados levam as máquinas a tais decisões. Já discutimos isso em um TAB, veja aqui.

A galeria ShanghART, em Cingapura, realiza a exposição ''A Cara do Facebook'', do pintor chinês Zhu Jia. Na mostra, o artista e mais de 50 colaboradores retratam o rosto de Mark Zuckerberg, criador da rede social. No material de divulgação, a galeria afirma que o ''projeto aparentemente é uma substituição de sua conta no Facebook'', site proibido na China. Os ''seguidores'' de Jia seriam seus colaboradores, que contribuíram com a produção de imagens (elas são bem parecidas, pois a repetição é uma marca no trabalho do pintor). A mostra vai até 9 de dezembro - How Hwee Young/EFE - How Hwee Young/EFE
Imagem: How Hwee Young/EFE

A terceira é muito mais profunda e sutil. É sobre como nos organizamos enquanto sociedade. Acredito que essa nova ordem social será menos transparente, com menos espaço para justiça, porque os dados estarão fechados entre empresas, não abertos com governos.

Discriminação e desigualdade serão percebidas apenas pelas empresas donas dos dados. E isso é muito perigoso, em longo prazo, para a política e para a democracia. Porque a democracia surge quando as pessoas veem as injustiças e podem denunciá-las. Quando elas sofrem e não conseguem explicar o que está acontecendo, fica mais difícil protestar contra. Por isso há muita preocupação sobre o futuro da democracia.

Como você conecta esse colonialismo de dados às crises democráticas que vivemos hoje?

Algumas dessas crises, como no Brasil, estão ligadas a aspectos mais específicos. Acredito, porém, que em longo prazo o colonialismo de dados vai contribuir para esses problemas, porque está mudando a natureza do conhecimento social e, consequentemente, o que é possível na política.

Em curto prazo, acredito que os acontecimentos no Brasil, Índia, Filipinas e outros países, nos quais a ideia de democracia está sendo desestabilizada pelo WhatsApp, estão relacionados a um problema mais geral que é sobre como nós estamos nos conectando.

Estamos conectados em qualquer lugar o tempo todo, com as pessoas nos seguindo. É conveniente e dependemos disso. Mas ainda não pensamos quais são as consequências para a estabilidade da sociedade. Quando qualquer pessoa pode mandar qualquer coisa para qualquer um, incluindo imagens violentas, ou a de um homem abusando de uma mulher, de uma gangue atacando pessoas, de abusos racistas ou políticos? me pergunto se estamos prontos para pensar quais são as consequências disso para a estabilidade da sociedade.

Há um problema fundamental de design social que está relacionado com a infraestrutura básica de internet, às plataformas de mídias sociais e aos tipos de conectividade construídos sobre isso. Esse fenômeno também está relacionado ao colonialismo de dados, mas é um ponto mais inicial. E acredito que esse problema está relacionado a uma questão mais fundamental, que é se as sociedades podem sobreviver conectadas de forma tão intensa. E eu não tenho tanta certeza de que podem.

Você diz que estamos apenas no começo e que ainda há tempo de resistir. Mas, muito em breve, teremos o 5G permitindo a Internet das Coisas com uma conexão ainda mais intensa. Isso te preocupa?

Há muitas preocupações com o 5G no campo político. Estamos vendo as batalhas entre Estados Unidos e China para serem os líderes do colonialismo de dados, que acontece num nível político mais alto com a guerra comercial. Isso claramente é muito importante, mas também há outras preocupações, como a discussão sobre radiação que é necessária para o 5G suportar essa conectividade tão intensa e que pode oferecer riscos de saúde.

Mas há também as preocupações do 5G relacionadas ao colonialismo de dados. A Internet das Coisas nos oferece um mundo muito conveniente. Quando eu cheguei a São Paulo na última quinta-feira, vi anúncios da Samsung, com frigideiras e máquinas de lavar - cada um dizendo "sempre conectado". Eles vendem isso para que o produto possa extrair mais dados nossos e gerar mais dados para os profissionais de marketing, mesmo quando nós pagamos pelo produto.

O problema é que isso soa como uma conveniência porque significa que nossa máquina de lavar será consertada mesmo que a gente não saiba que ela precisava de reparos. O problema será resolvido antes de aparecer.

Mas que mundo está sendo construído por esses dados? É um mundo no qual continuamos nos submetendo à influência do marketing mesmo quando já finalizamos uma transação econômica. Nós já pagamos pela máquina de lavar, pela geladeira, pela televisão e ainda assim estamos gerando valor com nossas vidas.

Temos que perguntar à comunidade de marketing se eles têm certeza que as pessoas estão prontas para isso, se os cidadãos realmente concordam que as empresas deveriam ter esse poder de influenciar nosso comportamento em tal escala. Não é o caso. Os cidadãos não foram questionados sobre isso ainda. Eles não tiveram a chance de dizer sim ou não. Na verdade, uma pesquisa publicada pelo "Wall Street Journal" no início de abril disse que mais de metade das pessoas nos Estados Unidos não estão felizes com a quantidade de dados que estão sendo coletados deles. As pessoas precisam ser questionadas, nós precisamos desse debate.

Como regulações como GDPR [Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, aprovada pela Comissão Europeia] podem afetar esse cenário?

Teremos que esperar para ver. Mas a princípio a GDPR é muito importante porque desafiou a ideologia do colonialismo de dados pela primeira vez com instituições legais ao redor do mundo. A Comissão Europeia passou uma lei que não aceitava a afirmação que ouvimos repetidamente das empresas americanas de que o único caminho aceitável é mais conexão e mais captura de dados.

A GDPR diz que a coleta de dados pessoais levanta questões fundamentais sobre direitos humanos. Está absolutamente correto. O que nós não sabemos é quão efetiva a lei será porque quer que corporações consigam o consentimento dos usuários. Mas isso tudo depende se as pessoas realmente têm escolha sobre consentir ou não. Porque normalmente não há muitas opções para se recusar a dar seus dados.

Sei que o Brasil também aprovou uma lei de privacidade muito importante no ano passado [ele se refere à Lei de Proteção de Dados], inspirada no Marco Civil. Temos que esperar e ver se isso tudo será suficiente.

A legislação claramente é um caminho, mas não pode ser o único. Ainda é necessário movimentos sociais se unirem e pressionarem por tais leis. É uma ordem social que está sendo construída.

Como podemos resistir? O que é possível fazer enquanto indivíduos e sociedade?

O colonialismo de dados é uma mudança muito fundamental e certamente acontecerá em longo prazo. Não há apenas uma única coisa a se fazer e, certamente, enquanto indivíduos não temos poder de mudar as direções da história.

Mas há algumas coisas que temos que pensar seriamente. Precisamos nos unir para imaginar um mundo diferente desse que dizem ser inevitável. Falam que esse processo [o colonialismo de dados] não pode ser interrompido. É mentira. Se você voltar 15, 20 anos, isso tudo não existia. Deve ser possível o capitalismo funcionar sem ser na base da conexão contínua.

Essa é a primeira coisa: lembrar de compartilhar o conhecimento e usar nossa imaginação para insistir que há futuros alternativos.

A segunda ação é pensar em ajustes práticos. Ninguém vai negar que estar conectado constantemente é muito conveniente. Famílias inteiras se comunicam por WhatsApp e Facebook. Muitas pessoas dependem desses aplicativos para trabalhar e não há nada de errado com isso. A questão são as consequências de tudo. Precisamos de um debate sério sobre como podemos nos ajudar a nos manter conectados, mas com uma base diferente, com outras condições e termos.