Mostra revela como a inteligência artificial vai criar o cinema do futuro
O mundo mudou muito desde que o Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, o File, abriu pela primeira vez suas portas em São Paulo em 2000. Naquela época, os artistas enviavam os trabalhos em disquetes para o festival e ainda experimentavam novas mídias por meio de HTMLs elaboradíssimos.
Vinte anos depois, o futuro chegou e até a série "Black Mirror" parece não surpreender mais diante de tudo que a tecnologia já provou ser capaz. Mas o maior evento de arte e tecnologia da América Latina chega a sua 20ª edição nesta quarta (26), em São Paulo, buscando pistas na forma como todo esse avanço tecnológico é apropriado e resignificado por artistas.
As obras interativas estão garantidas no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, e prometem proporcionar experiências inéditas e selfies especiais. Vai ser difícil bater a concorrência de peso logo na entrada da exposição, com a instalação gigantesca "A Sense of Gravity", do holandês Teun Vonk, que permite que o visitante desafie a gravidade e suspenda do chão. Mas o mergulho no File é mais profundo quando a inteligência artificial entra no jogo, como é o caso da animação "Sunshowers", do inglês Sam Twidale e da sérvia Marija Avramovic, inspirada no filme "Sonhos", de Akira Kurosawa.
Dotados de inteligências próprias, os personagens funcionam dentro de um sistema de redes neurais que os permitem decidir, em tempo real, as ações e caminhos no roteiro, levando a história a desfechos diferentes. "Os personagens são programados com uma série de parâmetros de emoção e um gráfico de conexões que define como eles são afetados emocionalmente pelas ações de outros personagens e pelo mundo ao seu redor", explica Twidale, no Brasil para a abertura da exposição. "Quando eles interagem, seus parâmetros de emoção mudam e, por sua vez, reagem com uma animação mais apropriada ao seu estado emocional."
A câmara semiautônoma mostra sempre o mesmo ambiente, mas com ângulos e cenas novas e imprevisíveis -- até mesmo para seus criadores. "Não temos como saber exatamente como os personagens decidirão contar a história", conta Avramovic. "Isso nos dá a possibilidade de questionar ideias de autonomia dos personagens no mundo virtual."
Ainda que a animação não tenha diálogos e visual lapidado, a dupla aposta que a tecnologia poderá, em breve, mudar os rumos das narrativas em muitos campos da arte.
"Personagens não jogáveis já estão se tornando muito sofisticados em videogames e isso adiciona um elemento imersivo realmente valioso à narrativa. Isso leva a possibilidades de narrativas muito mais livres. Talvez essas técnicas também possam ser usadas durante o processo criativo de fazer cinema ou teatro para abrir novas possibilidades de narrativas", observa Avramovic.
Para o fundador e curador do File, Ricardo Barreto, é a prova de que a programação pode ser tudo, menos algo frio e inumano. "As pessoas têm uma ideia que tudo que está programado está fechado. A inteligência artificial dá medo nas pessoas porque ela tem o poder de escolha, pode ser randômica ou por aprendizado", explica.
Bem ao lado de "Sunshowers", o espanhol Nicolás Alcalá eleva a experiência ao propor uma narrativa reativa no curta-metragem "Melita". Através de sensores, a obra capta a linguagem corporal do espectador para definir os próximos passos da história -- um passo além do que foi feito em "Bandersnatch", episódio interativo da série "Black Mirror", em que o espectador faz as escolhas no lugar do protagonista. "Aqui, a narrativa será diferente se a pessoa estiver assustada, entediada ou com medo. É como se você assistisse a um filme exclusivo", explica a curadora Paula Perissinotto.
"Esse é o cinema do futuro que está surgindo", observa Ricardo Barreto. "Veja as telenovelas, que são desenvolvidas por estatísticas, que buscam responder qual personagem é melhor, com que história o público se engaja mais. Aqui a máquina vai resolver para você."
Dando vida a Jesus
A tecnologia também possibilita dar vida a uma imagem clássica da história da arte. Especialista em dar movimento a personagens de pinturas de grandes mestres do Renascimento e do Simbolismo, o italiano Rino Stefano Tagliafierro propõe no File uma viagem pela "A Última Ceia", um dos afrescos mais fascinantes da história da arte.
"É colocar vida na pintura, nos personagens, no movimento e na interação", explica Tagliafierro, que se baseou nas sugestões de movimento que Leonardo da Vinci usou no pincel. "Há movimentos sutis, cada um com velocidades diferentes para passar a sensação certa dessa narrativa."
A obra ficou conhecida como "A Última Ceia Viva" e está na programação para comemorar os 500 anos da morte de Da Vinci, mas o inventor e pintor não é o único homenageado do evento. O centenário da Bauhaus, escola mais famosa e inovadora da história da arte, é romanceado em uma dança em realidade virtual, produzida pelo grupo alemão Interactive Media Foundation & Artificial Rome.
O mesmo coletivo foi da Alemanha vanguardista direto para a Amazônia na obra "Inside Tumucumaque", que propõe inédita interação em tempo real dentro de uma área de preservação ambiental da Floresta Amazônica, recriado com esmero dentro do ambiente virtual. Com óculos, é possível acessar a clareira na mata e experimentar o ecossistema de forma única: enxergando com os olhos de um morcego-vampiro, um jacaré preto, uma aranha e um sapo venenoso.
Uma experiência sensorial diferente que fez coçar a cabeça até mesmo da curadora Paula Perissinotto, que estava lá em 2000 recebendo os trabalhos em disquete. "Juntar inteligência artificial com realidade virtual, você já imaginou? São duas coisas que estão indo em paralelo, mas a gente sabe que se juntar não tem volta", observa.
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