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Treino de jogadores de eSports envolve concentração e questões pessoais

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Imagem: Divulgação

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB

26/02/2020 04h00

Treino. Geralmente a palavra remete a atletas correndo, fazendo aquecimento, se alongando. Mas dentro das salas de treinamento das equipes de eSports, a cena pode ser um pouco diferente.

Sim, jogadores profissionais de League of Legends (LoL), Counter Strike: Global Offensive (CS: GO) e outros games também suam e precisam cuidar do corpo, mas boa parte das oito horas diárias de trabalho é mental. Concentração é essencial para uma boa performance nos campeonatos, que já se estabeleceram no circuito mundial e chegam a pagar prêmios de mais de US$ 30 milhões.

Se boa parte do esforço está na mente (além das mãos ágeis, claro), nada mais natural que cuidar dela. Mas muitos jogadores ainda sabem pouco do trabalho da psicologia focada em eSports. Airini Bruna é um dos maiores nomes na área aqui no Brasil e falou sobre sua atuação durante o painel Games e Neurociência no evento Brainspace, em São Paulo, no final de 2019. Depois da apresentação, ela conversou com exclusividade com o TAB.

Ela conta que foi apenas a partir de 2018 que a modalidade passou a ter mais investimento, com uma comissão técnica para dar conta do suporte dos atletas brasileiros. "Com a presença dos psicólogos nos times de LoL, houve melhores resultados e viram que talvez a figura do psicólogo fosse essencial para um bom desenvolvimento", conta a psicóloga.

Airini Bruna faz contratos anuais com as equipes e trabalha com sessões em grupo, individuais e acompanhamento de treinos e competições. O objetivo principal, conta ela, é melhorar a performance do time, mas cada equipe apresenta suas particularidades. Pode haver um problema de coesão, dificuldades individuais de concentração, disfunções como pensamento negativo, entre outras questões que a psicóloga consegue apontar, ao estudar o funcionamento da equipe. Ela costuma dividir o trabalho em dois dias da semana — em um, faz atendimento individual e observação de treino; em outro, realiza sessões em grupo.

Categoria de base

Treinar o psicológico de um time de eSports tem diversas semelhanças com o trabalho em modalidades mais tradicionais, como futebol ou basquete, conta a psicóloga, que começou a carreira atuando em esportes, e depois fez a transição para os eSports quando começou a se interessar mais por LoL.

Ela compara o treinamento com uma equipe de categoria de base, já que os jogadores dos games costumam ser esportistas iniciantes. "Eles vêm cheios de 'vícios'. Em casa eles jogavam no horário deles, com a mãe trazendo comida na mesa, sem pausa? E dentro de uma organização é totalmente diferente, porque você tem horários, você tem uma regra a ser cumprida", explica. "Por conta disso, a figura do psicólogo ajuda bastante no sentido de trazer essa consciência e a mentalidade de um profissional."

Transformar o que costuma ser uma atividade de diversão em trabalho exige disciplina. Ao contrário do que muitos atletas iniciantes imaginam, jogar games o dia todo pode se tornar cansativo e até mudar a relação do jogador com o hobby. " A maior parte deles tem outros jogos para jogar na pausa. Muitos deles dizem 'não aguento mais ver esse jogo na minha frente', porque são oito horas voltadas para ele", relata a profissional. Para outros, não tem jeito: o game continua fazendo parte da diversão, mas longe das obrigações. "Alguns gostam e jogam nas horas vagas, para poder jogar com os amigos. Porque eles treinam só com o time", explica Airini Bruna.

Jogo é trabalho sério

Além do foco no treino, a psicóloga conta que trabalha questões pessoais que podem interferir no desempenho. "Tem desde atleta que não sabem lidar muito bem com a falta de apoio dos pais, que não aceitam muito bem a profissão, até problemas de 'briguei em casa e minha cabeça está lá, não sei separar as coisas', ou 'fico nervoso com a torcida'", relata.

A boa notícia é que concentração pode ser aprendida e treinada. Dráulio Araújo, neurocientista e professor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), falou também durante o Brainspace sobre o "flow", estado de concentração total, mas sem esforço. Atletas de alta performance e músicos, entre outros, relatam atingir esse estado quando têm ótimos resultados, sem precisar pensar em cada movimento.

"Quando aprendemos a dirigir um carro, num primeiro momento eu penso: tem que botar o pé na embreagem, tem que passar a primeira, apertar o acelerador, tirar o pé da embreagem? Até que, com o tempo, aquele movimento de dirigir o carro passa a ser cada vez mais automático e você ocupa seu cérebro com outras coisas que talvez naquele momento sejam mais importantes. E esse estado de flow talvez seja o extremo disso", analisou Araújo, durante o painel Esportes e Foco.

Psicologia, neurociência e esporte se unem para tentar entender como melhorar a performance dos atletas, mas as consequências positivas vão bem além da competição, afirma o neurocientista Rogério Panizzutti, professor na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em psiquiatria. Games que estimulam o cérebro podem ajudar até a envelhecer com mais saúde.

"Temos gerações novas que estão treinando o cérebro de uma forma diferente das gerações anteriores. Talvez não por acaso tem sido relatado que nos últimos 20 anos a incidência de demência nos Estados Unidos está decaindo entre a população que chegou pelo menos ao Ensino Médio", disse Panizzutti. Fatores como o avanço na medicina também têm grande peso nessa melhora, observa ele, mas os games podem ter uma parcela de responsabilidade.