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'Sou como o tango: negra e teimosa': uma cantora brasileira em Buenos Aires

Shirlene Oliveira, a brasileira que canta tango em Buenos Aires - Amanda Cotrim/UOL
Shirlene Oliveira, a brasileira que canta tango em Buenos Aires
Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Amanda Cotrim

Colaboração para o TAB, de Buenos Aires

04/07/2021 04h01

Ela caminhou por linhas tortuosas do mapa da América Latina. Saiu da periferia de Guarulhos, atravessou o Caribe para estudar artes visuais em Cuba, reencontrou-se na Bolívia, fixou-se na Argentina. Ela queria conhecer o mundo, atingir corações, fazer sorrir e chorar. Shirlene Oliveira nasceu para o tango.

Morando desde 2012 em Buenos Aires, a mulher de 35 anos canta com um castelhano invejável, mas o país parece não lhe escutar a ousadia, surdo para os sons dos povos originários e afrodescendentes, cujo DNA não veio em um barco europeu.

Quem a vê de longe pensa em uma mulher tímida, de estatura pequena, corpo magro e pele negra. Ela tem um tom de voz baixo até sair a primeira gargalhada. Empresta ao tango sua voz e suas expressões faciais que lembram caras e bocas de Elis Regina. "Sou uma mulher negra, marginal, brasileira, estrangeira, que canta tango em Buenos Aires. Cantar é deixar as pessoas mais felizes e, ao mesmo tempo, pensativas sobre o próprio estranhamento delas em ver uma mulher negra, no palco portenho, cantando tango. Eu posso. O tango é como eu, teimoso."

Shirlene conheceu o tango com uma amiga boliviana ainda em Cuba, mas foi o contato com a morte que a fez nascer como cantora. Sua lembrança mais marcante foi em La Paz, em 2008, quando cantou um tango no velório da mãe da amiga, responsável por apresentar-lhe o gênero e incentivá-la a cantar. Um desvio que o tempo armou para colocá-la no rumo do seu próximo destino: Buenos Aires.

A brasileira Shirlene Oliveira, cantora de tango em Buenos Aires - Amanda Cotrim/UOL - Amanda Cotrim/UOL
Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Racismo invisível

A reportagem acompanhou Shirlene numa apresentação musical, onde ela cantaria pela primeira vez após a flexibilização das restrições em função da pandemia.

Ainda em sua casa, um edifício antigo com pé-direito alto no bairro de Balvanera, no centro de Buenos Aires, ela parecia estar segura, mas seu semblante havia sido capturado por um estado de silêncio, quebrado apenas no momento em que começou a tocar o piano para fazer aquecimento vocal.

"Quando vim viver na Argentina, tive aula de canto com uma professora que sempre questionava minha escolha pelo tango, por ser negra e brasileira, como se eu não pudesse me dedicar a esse gênero musical", contou à reportagem.

O estranhamento relatado não é detalhe. Shirlene tem consciência de que muitos argentinos não reconhecem o berço indígena e preto que existiu e existe no país. "O que disse Alberto Fernandez [presidente argentino], infelizmente, reflete muito a mentalidade aqui."

Durante o show, Shirlene cantava como se perguntasse o que queremos quando imigramos. Ela poderia dedicar-se ao samba, tão marginal quanto o tango, mas foi mapeando-se na América Latina, procurando um furo no tempo e na história, que conheceu algo dela ainda não reconhecido.

"A primeira vez que a vi cantando, me apaixonei e fiz o convite", conta o dono do bar Je Suis Lacan Gustavo Marinelli, aberto há 5 meses no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, onde Shirlene se apresenta pela primeira vez, após as flexibilizações do isolamento social na cidade. A voz da artista faz juntar gente.

Shirlene Oliveira: a cantora vive em um apartamento antigo de Buenos Aires - Amanda Cotrim/UOL - Amanda Cotrim/UOL
Shirlene Oliveira: a cantora vive em um apartamento antigo de Buenos Aires
Imagem: Amanda Cotrim/UOL

"Ela é uma mulher linda, tem castelhano perfeito, mas se percebe que não é argentina.". Por quê, pergunto. "Não sei." Pensa um pouco. "Talvez pelo sotaque. Achei que fosse cubana."

Ainda no bar, enquanto se prepara para cantar, o amigo e músico que acompanha Shirlene no violão mexe em seu cabelo e faz uma brincadeira sobre o volume dos cachos da artista. Eu a percebo incomodada e tentando dizer, de forma serena e amigável, que ela não gosta quando ele faz isso. Talvez Shirlene tenha entendido que algumas mudanças só acontecem pelo enfrentamento, como quando foi interpelada antes de cantar na milonga. Outras podem ser construídas com afeto, o mesmo que demonstra ter para com o amigo.

Shirlene Oliveira se arruma para apresentação de milonga em Buenos Aires - Amanda Cotrim/UOL - Amanda Cotrim/UOL
Shirlene Oliveira se arruma para apresentação de milonga em Buenos Aires
Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Origens marginais

Shirlene caminha por espaços diversos, de milongas a turnês pela Europa. Ela relata que o racismo se manifesta de formas diferentes em cada lugar. Uma vez, parou no meio da pista e um homem, branco, já de idade, perguntou em tom de voz alto se eu estava lá para sambar para eles. "Foi terrível, porque a galera riu e eu estava a ponto de cantar. Precisei reagir energicamente. Segurei a emoção, porque a gente, quando é negro, segura muitas vezes a emoção, e respondi: 'Eu vim aqui cantar tango'."

As raízes do tango se construíram em encontros da comunidade de origem negra do Rio da Prata, região que depois se tornaria Buenos Aires e Montevidéu, de pessoas escravizadas que vieram de Angola, República do Congo, República Democrática do Congo e Guiné Equatorial, escreve Shirlene em um artigo jornalístico.

O gênero musical é noturno, inquieto, forte e sonhador. No século 18, foi rechaçado e proibido pela elite branca e pela Igreja Católica, emergindo em bairros pobres, cabarés e portos de Buenos Aires, onde estavam os imigrantes e a população descendentes dos povos indígenas e africanos.

A brasileira Shirlene Oliveira, cantora de tango em Buenos Aires - Amanda Cotrim/UOL - Amanda Cotrim/UOL
Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Quem é você?

Shirlene já cantou tango ao lado de uma polonesa, estrangeira como ela, mas branca e loira. As pessoas parabenizaram a ela. À brasileira, perguntaram por que eu queria cantar tango e não samba ou outro gênero do país. "Aí você percebe que o fato de ser negra te desautoriza a ser dona do seu desejo. Por que eu tenho que responder a isso? A curiosidade não é porque eu sou estrangeira, afinal minha amiga também era e ninguém quis saber as razões pelas quais ela não se dedicou a algum estilo europeu."

É muito comum na Argentina escutar expressões como "quilombo" para designar confusão, bagunça; "trabalho negro", para falar sobre trabalho informal, "negro de merda", para ofender a alguém. São marcas, segundo Shirlene, de um micro-racismo que ocorre o tempo inteiro no país e, principalmente na capital. "Aqui a palavra quilombo é usada de forma preconceituosa, como se não tivesse existido pessoas negras escravizadas, ou seja, como se aqui não tivesse existido quilombo. Nós, pessoas negras que moramos na Argentina e temos consciência desse racismo, tentamos inverter o sentido. Quilombo não é confusão, é resistência."

Muitos argentinos justificam a origem do termo "quilombo" por causa das casas de prostituição e alegam que a palavra não tem "nada a ver com ser negro". Esquecem, diz Shirlene, que os cabarés, as casas de prostituição, estavam repletas de mulheres afrodescendentes e descendentes de indígenas, marginalizadas, em situações de vulnerabilidade social. "A negação de que existem negros e índios é o racismo mais brutal", opina.

Racismo e machismo

O fato de a mulher ser negra surge como uma espécie de licença para que "te apertem mais", conta Shirlene. A artista passou por uma situação que a marcou profundamente. Em uma milonga, um homem, branco, de idade, que dançava com ela, se excitou e fez questão de usar o seu desejo para oprimir Shirlene. "Foi horrível. Ele era meu companheiro de baile. Não consegui reagir. Fui embora dessa casa de tango e nunca mais voltei. Tinha pavor de reencontrá-lo."

Para ela, o racismo na Argentina se dá na forma como os negros são observados. "Existe esse lugar da objetificação, de questionamento, um olhar observador e ao mesmo tempo um ocultamento, um lugar de marginalidade, que com o tempo você entende que é racismo."

Shirlene quer mais do que construir carreira em um país estrangeiro. Ela quer que as pessoas saibam que o tango é marginal, negro e periférico, assim como ela, contrariando todos os estereótipos da indústria do entretenimento e turismo argentinos, que associam o tango a uma certa elite europeia, seja pelos instrumentos musicais utilizados, como o violino, seja pelos modelos, sempre brancos, que estampam os catálogos de eventos turísticos. É arte, mas também é luta.