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Os 'europeus da América' e 'gaúchos livres': como é o racismo na Argentina

Mulher argentina protesta em Buenos Aires contra a violência policial, após a morte de George Floyd, nos EUA - Muhammed Emin Canik/Anadolu Agency via Getty Images
Mulher argentina protesta em Buenos Aires contra a violência policial, após a morte de George Floyd, nos EUA Imagem: Muhammed Emin Canik/Anadolu Agency via Getty Images

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

20/06/2021 04h01

"Os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros da selva, e nós, chegamos em barcos [?] que vinham da Europa." Desastradamente racista, a declaração do presidente argentino Alberto Fernández, proferida em um encontro com o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez no último dia 9, expõe uma ferida aberta: o mito eurocêntrico da formação dos argentinos, perpetrado a partir da primeira metade do século 19.

A fala de Fernández não foi uma broma -- ou piadinha de tiozão -- original. Em 1982, o roqueiro argentino Litto Nebbia lançou o álbum "Llegamos de Los Barcos". Na canção-título, ele canta os versos: "Os brasileiros saem da selva, os mexicanos vêm dos índios, mas nós, os argentinos, chegamos de barcos".

A canção de Nebbia, contudo, não pode ser tachada de libelo racista. Está mais para ironia fina sobre a própria maneira com que a historiografia argentina acabou consagrando a questão. O compositor exalta a diversidade. "Queria escrever um samba que falasse de nós e desta terra que amamos -- e que é uma mistura de todos", dizem versos seguintes.

"Esse embate sobre o 'quem somos' na história da Argentina vira e mexe é alimentado, como nessa declaração tosca do presidente. Mas bebe numa tradição, numa ideia muito presente no país", comenta ao TAB o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Uema (Universidade Estadual do Maranhão).

Há uma frase semelhante à do roqueiro atribuída ao poeta e diplomata mexicano Octavio Paz (1914-1998), Nobel de Literatura de 1990, em uma tentativa de contextualizar a formação do povo argentino. "Os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos, dos incas, e os argentinos, dos barcos", teria dito Paz.

O presidente argentino Alberto Fernández, durante visita do primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez à Casa Rosada, em Buenos Aires - Matias Baglietto/NurPhoto via Getty Images - Matias Baglietto/NurPhoto via Getty Images
O presidente argentino Alberto Fernández, durante visita do primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez à Casa Rosada, em Buenos Aires
Imagem: Matias Baglietto/NurPhoto via Getty Images

Como a Argentina foi formada? Embora celebre como sua independência a Revolução de Maio, ocorrida em 1810, não foi de uma hora para a outra que o antigo vice-reino do Rio da Prata se converteu em nação. "A primeira Constituição argentina é de 1853, mesmo assim com resistências", contextualiza Galves. "Nesse contexto de construção de um país, de um projeto de Argentina, há um autor fundamental para o pensamento argentino, Domingos Faustino Sarmiento [(1811-1888)]." Ele publicou, em 1845, um livro chamado "Civilização e Barbárie", em que o europeu está no primeiro extremo -- e o indígena, no segundo. "Para ele, o argentino é um europeu nascido na América", explica o historiador. "Não tem essa questão de incorporação de populações ameríndias nem africanas."

E a imigração? Em 1868, Sarmiento se tornou presidente da Argentina. Passou a promover uma intensa política de imigração europeia. "A ideia dele era um país que, em duas décadas, equivaleria aos EUA do ponto de vista de uma população branca. Para ele, somente uma população de matriz europeia seria capaz de promover o progresso", diz Galves. "Ele potencializa a imigração."

Não havia indígenas ali? Antes da onda imigratória europeia iniciada na segunda metade do século 19, a formação étnica do povo argentino era resultado da política colonial. Como se tratava de uma área menos relevante economicamente -- excetuando o porto de Buenos Aires, a região não tinha clima adequado para culturas como cana-de-açúcar nem a fartura de minerais encontrados pelos espanhóis em outros pontos da América Latina. "Por consequência, não teve uma grande capacidade de investimento na mão-de-obra escravizada", afirma ao TAB Tomaz Paoliello, professor de relações internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Qual era a proporção? Enquanto se estima que pelo menos 4,8 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil, calcula-se que tenham sido pouco mais de 200 mil os que foram levados às colônias hispânicas do sul do continente. Como o número de habitantes no que é hoje é a Argentina era pequeno, dada a pouca relevância econômica, a proporção de negros na formação da população chegou a ser grande. "Há relatos de uma presença importante de africanos em algumas cidades e províncias argentinas no período colonial, em alguns casos chegando a 50%", diz Paoliello. Isso muda consideravelmente com a intensa chegada de imigrantes europeus entre o fim do século 19 e início do século 20 -- foram cerca de 7 milhões, sobretudo italianos e espanhóis.

Partitura da canção 'De La Vida Milonguera' - LLC/CORBIS/Corbis via Getty Images - LLC/CORBIS/Corbis via Getty Images
Partitura da canção 'De La Vida Milonguera'
Imagem: LLC/CORBIS/Corbis via Getty Images

Apagamento histórico. Com o branqueamento resultante da chegada dessas levas de europeus, a historiografia oficial encarregou-se de consolidar a autoimagem argentina, relegando os não-brancos a segundo plano. "Na busca de se criar uma identidade para o país, os livros silenciaram quanto à presença de escravos, a presença afro", diz ao TAB o historiador Sérgio Ribeiro Santos, coordenador do curso de História da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Eles sempre estiveram lá entre o povo, na periferia, mas não nos canais oficiais de comunicação e nos livros de história. Tornaram-se invisíveis para a mídia, para a população. E isso, esse silêncio deliberado [quanto aos outros povos] criou a ideia de país europeu."

Outro lado. Sempre houve contrapontos teóricos e práticos a essa ideia de Argentina europeia. Em 1872, o poeta e jornalista José Hernández (1834-1886) publicou "Martín Fierro", no qual defendia que o povo argentino era na verdade o gaúcho, o indígena livre dos pampas, que vivia nas campanhas. O ápice dessa "disputa" de versões ocorreu quando Juan Domingo Perón (1895-1974) chegou ao poder, na metade do século 20. "Sua massa eleitoral era formada por esses gaúchos empobrecidos que vieram para Buenos Aires trabalhar nas indústrias", contextualiza Galves. "Perón proibiu o livro de Sarmiento, porque entendia que era um livro de traição sobre quem seria o verdadeiro argentino."

E o êxodo rural? A partir dos anos 1930, com a industrialização, muitos trabalhadores de origem indígena migram para Buenos Aires em busca de emprego, instalando-se na periferia. Pejorativamente, ganham a alcunha de "cabecitas negras". Acabou se transformando em arma política: como o operariado se tornou a base de apoio dos peronistas, os antiperonistas passaram a utilizar o termo de modo ofensivo, ressaltando que eles, a elite, eram brancos. "Eles eram os migrantes internos, em oposição aos imigrantes europeus. Tornaram-se a população da periferia em oposição às classes média e alta", contextualiza o historiador Santos. "O apagamento cultural [das origens indígenas] passa a ocorrer na tentativa de se construir uma identidade, a de um país de origem europeia. Isso se faz a partir do silenciamento e da interdição do outro."

Soy latino-americano? Paoliello analisa que na Argentina há, por exemplo, um sentimento de identidade e pertencimento latino-americanos muito mais forte que no Brasil. "Soma-se a isso um apagamento histórico da ancestralidade e origem africana e indígena. Os sobrenomes são europeus, as línguas são europeias, a religião é europeia? De maneira geral, diria que esse apagamento foi ainda mais profundo na Argentina. Mas a presença de africanos e indígenas na formação social e cultural argentina se demonstra em expressões no idioma, na música, culinária, cultos e crenças." Em 2010, pela primeira vez, o censo da Argentina perguntou se as pessoas tinham ascendência africana — apenas 0,4% declararam que sim. Pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em 2008, a partir de análise genética, constatou que 9% dos argentinos atuais são afrodescendentes e 31% têm origem indígena.