'Negrão pra conseguir alguma coisa é f*da', diz músico Roberto Di Melo
Roberto Di Melo entende da arte de não morrer. Fora dos holofotes por décadas, o músico pernambucano de 72 anos foi dado como morto na década de 90. Na época, sofreu um grave acidente de moto, que quase o fez perder os movimentos do corpo, e sumiu por um tempo. O artista batia cartão em diversos cantos de São Paulo, principalmente nas lojas de discos, mas num estilo tão "low profile" que seu paradeiro era desconhecido até pela família no Recife.
O "milagre da ressurreição" começou a acontecer via Orkut, após um jornalista pernambucano (de identidade desconhecida) encontrar o enteado do artista na extinta rede social. Com o primeiro contato feito, ele viajou a São Paulo para saber se era realmente o verdadeiro Di Melo. Era. Em 2009, o artista se apresentou no 19º Festival de Inverno de Garanhuns e, aproveitando a viagem para Pernambuco, reencontrou os familiares.
A prova de vida também foi confirmada pelo Paulão DJ, um dos responsáveis por colocá-lo novamente nos trilhos da música. A redescoberta do músico causou uma corrida entre jornalistas para escrever sobre a novidade e promotores com a intenção de contratar seus shows.
Conhecido como "imorrível", Di Melo está mais vivo do que nunca. Apesar de uma dor no joelho, ele chega todo sorridente para uma entrevista ao TAB numa manhã fria de domingo, em sua casa, em um pequeno condomínio em Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo. Diz-se admirado pelos jovens que aos poucos estão descobrindo o trabalho dele.
Exemplo disso é o recente projeto "Podível e Impodível", que tem releituras de algumas músicas do seu primeiro álbum, de 1975, feitas por Júlia Mestre, Josyara, Arthur Nogueira, Felipe El, Theo Bial e Dora Marelenbaum. Na pandemia, Di Melo foi convidado para interpretar "Careca Velha" no álbum "Onze", composto por músicas inéditas de Adoniran Barbosa. "Esse disco tem a presença de Elza Soares, Zeca Baleiro, Barro, Luê... uma série de figuras e eu no meio, o que eu tô fazendo ali eu não sei".
Jacaré que batalha
A obra de Di Melo é admirada desde o final dos anos de 1990. Começou fora do Brasil, depois que DJs ingleses disseminaram pelos clubes londrinos a música "A vida em seus métodos diz calma".
O disco de estreia, intitulado "Di Melo", vale ouro entre colecionadores. O vinil de 1975 pode ultrapassar a casa dos R$ 3 mil reais, segundo o site especializado Discogs, sendo que algumas reprensagens podem variar entre R$ 300 e pouco mais de R$ 900. O próprio artista não tinha o vinil original, que só conseguiu adquirir recentemente, por R$ 2 mil.
Neste ano, o disco ganhou uma edição limitada produzida pela Fatiado Discos com a reprodução do encarte original, fotos de arquivo e ficha técnica completa. Ainda na pré-venda, todas as 120 peças se esgotaram. Devido à alta procura, o selo pretende fazer mais duas edições até o final do ano: uma com vinil transparente e outra para o mercado externo.
Redescoberto agora, Di Melo teve a vida transformada. Retomou de vez a carreira musical, deixando os bicos de lado, inclusive as pinturas. Foi na passagem por Garanhuns que o documentário "Imorrível", que retrata a trajetória de Di Melo, começou a ser rodado por Alan Oliveira e Rubens Pássaro. Com dificuldade financeira e sem receber pelos direitos de suas músicas (por falta de repasse da sua antiga editora musical), mas impulsionado pelo sucesso do filme, Di Melo fez seu segundo álbum oficial, "O Imorrível". Tentou patrocínio, mas não teve sucesso.
"Negrão pra conseguir alguma coisa é muito f*da", enfatiza Di Melo, com indignação. "Mas estamos aí, jacaré que não batalha vira bolsa de madame ou boot de burguês. Estamos fazendo tudo, do nada."
Apesar de estar fora do mainstream da indústria, Di Melo acertou músicas para trilhas sonoras de filmes, samples, dois discos inéditos, um livro ("A mini-crônica da mulher instrumento e do bicho voador") e mais um documentário a caminho. O último, "Atemporal", foi feito em 2019 em parceria com a banda francesa Cotonete - todo o processo de produção foi bancado pelos franceses, incluindo uma turnê na França. Pelo rumo que a carreira tomou, ele agradece pelo "sucesso" tardio: "O bom da vida é quando você faz o seu trabalho, acredita nele e ele lhe proporciona você se sustentar dele. Hoje, vivemos razoavelmente bem."
Homem de família
Juvenilza Abade dos Santos, a Jô, a companheira de Di Melo há mais de 20 anos, é a responsável por gerir a carreira do cantor. Da produção de shows à negociação de contratos, autorizações e recolhimento de direitos, ela aprendeu fazendo. "Di Melo não recebia nada pelas músicas. Quando eu o conheci, não acreditava que um cara com todo o potencial dele fosse tratado de qualquer jeito", observa.
O encontro inusitado dos dois aconteceu na passagem do bloco "Vai Quem Quer" pela Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, no carnaval de 2000. Dias antes de se encontrarem, Jô viu no horóscopo que encontraria o grande amor da sua vida, um príncipe, mas ele não viria à cavalo.
"Não queria saber de carnaval. Mas fui lá ver. Olho e ele já estava sorrindo e fazendo vários sinais pra mim. E eu ria muito com as presepadas dele", lembra ela, hoje aos 54 anos. "Ele se aproximou, tirou um CD do bolso e já veio dizendo: 'Você é mito de beleza, humildade e simplicidade. Se Di Cavalcante estivesse passando aqui nesse momento seria a mais bela obra de arte de toda a sua vida'."
A poesia conquistou o coração de Jô. A previsão do horóscopo parecia estar certa, porém, nada aconteceu da noite para o dia, até Di Melo convidar-se para morar na casa dela. Chegou sem avisar com todas suas coisas dentro de uma Kombi. Arruaceiro, homem dos rolos, perdido, sem família por perto e nenhum dinheiro no bolso, ele teve o acolhimento de Jô. Mas a transformação só aconteceu de fato com o nascimento da filha, Gabriela. "Ela é a grande luz da nossa vida", declara.
A paternidade virou a chave do estilo vivido por Di Melo, que abandonou os vícios para se dedicar à família e à arte. Aos 15 anos, Gabi Di Abade segue a veia musical dele, que por diversas vezes insistiu para que ela mostrasse sua voz doce e marcante (que pode ser ouvida na música "Canto da Yara", do disco "Atemporal"), interpretando "Back To Black", da Amy Winehouse, e "La Via En Rose", de Louis Armstrong.
"Gabi está cantando músicas de negros norte-americanos, em inglês e francês. E é surpreendente o quanto ela consegue ser criativa e inventiva. É uma princesa que eu amo", diz ele com brilho nos olhos.
No auge do sucesso
Jô diz que o real reconhecimento da carreira de mais de 50 anos do marido (especialmente pelo mercado da música e a grande mídia) só acontecerá quando a morte de fato chegar, como sempre acontece. Mas não reclama. "A gente não está querendo ficar milionário. Não é pelo dinheiro. É mais por darem valor ao potencial que ele tem."
De uma geração de legendários da black music brasileira, como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo e Tony Tornado, compositor de canções interpretadas por Wando e Jair Rodrigues, e um músico de calibre, tendo gravado um disco com a banda do Belchior, Roberto de Melo Santos (o Di Melo) foi relegado pela indústria musical nos anos 1970.
Di Melo ganhou certa projeção, mas financeiramente não rendeu. Brigou, rescindiu o contrato com a gravadora Odeon e seguiu por caminhos tortuosos. Teve de ser consagrado no exterior para ser valorizado no Brasil. Hoje, vê a procura frenética por seus discos (pelos fãs e selos europeus interessados em reproduzi-los) e o interesse constante pelos pormenores da sua jornada.
"Di Melo está bombando, [mas] não no sentido de muita gente estar procurando pra fazer alguma coisa", pondera Jô. "A gente está no auge do sucesso, porque pra mim sucesso é você estar bem, ter liberdade, não estar passando fome, ter uma casa, ter um carrinho pra andar... Se eu quisesse tinha um carrão chique aqui, mas quero é um Fusca. Sucesso é isso."
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