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'Humanizar o desumanizado': escritor retrata parte ignorada de Porto Alegre

O escritor José Falero nasceu e foi criado na Vila Sapo, bairro pertencente à Lomba do Pinheiro, Zona Leste de Porto Alegre. - Josemar Afrovulto/UOL
O escritor José Falero nasceu e foi criado na Vila Sapo, bairro pertencente à Lomba do Pinheiro, Zona Leste de Porto Alegre.
Imagem: Josemar Afrovulto/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

17/02/2022 04h00

"Posso fumar?", pergunta o escritor José Falero, 35, assim que aparece na tela do computador. Está sem camiseta, algo compreensível para quem conhece o calor úmido, abafado e impiedoso de Porto Alegre, famoso por despertar reclamações até de senegaleses e congoleses que vivem na cidade.

O escritor, autor do romance "Os Supridores" e do livro de crônicas "Mas em que mundo tu vive?", ambos lançados pela editora Todavia, não fez comentários sobre sua escolha de conversar descamisado. No entanto, dias depois da entrevista, um contato de sua editora comentou que a escolha por dispensar a vestimenta em entrevistas veio após Falero receber um "toque" de um jornalista, para quem não seria educado falar com a imprensa sem camiseta.

Pode parecer birra, mas depois de quase duas horas de conversa, mesmo mediada por uma tela, é fácil perceber que o escritor não é de fazer pose nem de ter caprichos. De certa forma, já está calejado por perguntas inconvenientes relacionadas a seu romance. Por isso responde no mesmo tom, de forma direta.

É uma forma de se comunicar que lembra "Os Supridores", em que gírias da periferia porto-alegrense se mesclam a descrições eruditas da cidade e personagens complexos, cada qual com seu próprio universo em crise.

As ruas e as curvas da capital gaúcha são descritas em minúcias, especialmente as favelas, conhecidas como "vilas", de onde grande parte da população se desloca durante o dia para trabalhar em lojas, supermercados, casas de classe média ou classe média alta e em outras funções que fazem a cidade funcionar.

O romance conta a história de Pedro e Marques, funcionários de um supermercado, que encontram uma oportunidade de negócio durante um período de seca na venda de maconha em seus respectivos bairros. Notando a alta demanda de pessoas querendo fumar e nenhum traficante interessado em vender, os amigos armam um esquema, passam a ganhar dinheiro e descobrem como a vida se desenrola quando o dinheiro entra no bolso.

"Muita gente pergunta se meu livro é autobiográfico, ou se eu sou o Pedro", comenta Falero mencionando um dos protagonistas, ávido leitor e marxista apaixonado. "Uma repórter perguntou de forma mais direta para mim se eu era bandido", conta. "O livro não é autobiográfico, e achar que sou um dos personagens é desqualificar minha obra", afirma.

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Falero escreve sobre parte ignorada de Porto Alegre
Imagem: Josemar Afrovulto/UOL

'Só fui ficar puto mais velho'

Falero é nascido e criado na Vila Sapo, parte da Lomba do Pinheiro, bairro da Zona Leste de Porto Alegre. No terreno em que sua família vive há algumas gerações, a única coisa nova é a casa, cuja versão antiga foi demolida. De resto, tudo é familiar. "Nasci onde estou, no mesmo bairro, na mesma vila e no mesmo pátio", conta.

Dos cinco aos 12 anos de idade, porém, Falero viveu longe do bairro de nascença. Por conta do emprego de zelador do pai, a família se mudou para a Cidade Baixa, bairro de classe média na região central da cidade. Lá, perdeu a liberdade de brincar na rua o dia inteiro, ganhando em troca tardes monótonas trancafiado no apartamento em que morava. Aos finais de semana, quando ia com os pais até a Lomba do Pinheiro para visitar a família, fazia manha para não ter de voltar para a Cidade Baixa.

Havia diferenças gritantes entre a amada Vila Sapo e a monótona Cidade Baixa, mas nem tudo era desvantagem. "Esse período foi essencial para a formação da minha subjetividade", conta. "Porque era um bairro com infraestrutura. Tinha parque, teatro, escola. Na Vila Sapo nem asfalto tem".

O escritor tinha certa birra com os livros quando era moleque — ou "piá", para usar o termo mais adequado. Frequentar a escola pública na Cidade Baixa já era suficiente para sentir que ele não fazia parte daquele lugar. "Eu me vestia diferente e falava diferente por causa do meu contexto social", relembra. "Era sempre o filho do zelador".

Esse olhar ficou pairando na cabeça do escritor quando criança, mas ele só foi entender o que significavam esses contrastes sociais anos depois, já com a cara enterrada em livros. "Só fui ficar puto com isso bem mais velho", comenta.

Pela falta de conexão com as pessoas ao seu redor, estudar e ler parecia uma punição, um fardo. Preferia assistir a desenhos animados japoneses na TV Manchete, jogar videogame ou ler histórias em quadrinhos. A paixão pelo mangá e anime, no entanto, permaneceu até a fase adulta. Um dos livros favoritos do gaúcho conta a história do espadachim e samurai ronin Miyamoto Musashi, eternizada na obra homônima Eiji Yoshikawa que também inspirou a série de mangá "Vagabond", publicada no final dos anos 1990.

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Na mesma casa em que nasceu, se apaixonou pelo hábito de ler e nunca mais parou
Imagem: Josemar Afrovulto/UOL

'Me apaixonei pelo hábito de ler'

Como muita gente que conhecia, Falero não concluiu os estudos. Apesar de morar em um dos maiores bairros da cidade em extensão, tinha de enfrentar no mínimo uma hora de ônibus para frequentar uma escola que oferecesse o ensino médio. A sorte veio pela irmã mais velha, que ficou no pé, insistindo para que ele lesse algum livro.

Naquela época, ele achava o ato de ler uma perda de tempo. Em comparação a filmes, videogames e quadrinhos, ler parecia uma forma incompleta de conhecer uma história. Vencido pelo cansaço, aceitou ler um livro inteiro — "Besta Fera", de Jack Woods. Para sua surpresa, devorou as páginas em questão de horas.

"Me apaixonei pelo hábito de ler", resume. Depois disso, foi catando os livros a que tinha acesso, não importando quais. "Na minha casa tinha alguns livros que até hoje eu não sei explicar como estavam ali, porque ninguém lia, exceto minha irmã, que não morava com a gente". Sabendo da paixão do jovem, os vizinhos da vila levavam até ele os livros que tinham encostados em casa.

Escrever foi algo natural e óbvio para Falero. "Não entendo quando me perguntam por que eu escrevo", diz. "Pergunto por que as pessoas não escrevem, porque me parece algo muito óbvio de se fazer. Não consigo ouvir música porque, logo que começo, já fico querendo compor e produzir minhas próprias músicas".

Atualmente ele vive das palavras, mas sabe que não é um ganha-pão fácil de se manter no país. Há não muito tempo se formou no colégio e tem planos de fazer uma graduação. Um plano B na hora do aperto. Enquanto isso, tenta manter uma rotina para produzir. "Se pudesse, escreveria de madrugada e dormiria de dia", conta. "Mas é impossível".

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Além de escrever, também compõe músicas. 'Prefiro mais produzir minhas próprias coisas do que consumir', conta
Imagem: Josemar Afrovulto/UOL

Porto invisível

Falero vem de uma cidade que produziu uma leva enorme de artistas e escritores, mas pouco teve contato com o que chamam de "cena literária" de Porto Alegre. Sua trajetória é inversa, andando pelas ruas da Vila Sapo e trabalhando como servente de pedreiro na construção civil. Depois, se sustentou abastecendo prateleiras de supermercados aos 20 e poucos anos.

Nos supermercados hiperorganizados de Porto Alegre, uma característica marcante de praticamente todas as redes da cidade, Falero passava horas arrumando prateleiras sem parar. Ganhava pouco, é claro. "Abastecer prateleira é foda", relembra. "A organização que tu enxerga ali reflete o tanto de trabalho e cobrança para manter as coisas em ordem".

Suas experiências do mundo e as de tantos outros amigos, parentes, conhecidos, vizinhos ou anônimos que passam horas em ônibus velhos para trabalhar em cargos invisíveis nem sempre vão para o impresso. Há exemplos notáveis disso no trabalho de João Antônio, Rubem Fonseca e outros autores, mas ainda não são o suficiente para atrair uma multidão de leitores.

Para o escritor, pouca gente no Brasil se interessa pela leitura porque não encontra nas obras algo que desperte um mínimo de reconhecimento. Ele mesmo constatou isso ao perceber que, nas obras literárias brasileiras, seu ambiente e sua classe social eram retratados de uma forma distante de seu cotidiano.

Falero diz que em Porto Alegre há uma cegueira quase coletiva, em que não se enxerga além do núcleo dos bairros mais elitizados. "É o fenômeno de uma cidade que não se enxerga. As pessoas moram aqui e não sabem que existe favela, que existem dezenas de bairros precarizados em torno de onde eles moram", conta.

Mas mesmo que a Vila Sapo e outras vilas — como a Planetário e a Lupicínio Rodrigues, que Falero conhece como a palma da mão — estejam fielmente representadas em sua ficção, não é intenção do autor escrever um livro temático. "Meu livro não fala de periferias, fala de pessoas. Rotular o livro assim é reduzir todo seu valor estético, é como se eu não tivesse feito nada".

Nas páginas de "Os supridores", aparecem funcionários de mercado, seguranças, traficantes e membros de uma das maiores facções do Rio Grande do Sul, os Bala na Cara. Em vez de retratar essas pessoas como meros bandidos sanguinários ou trabalhadores ignorantes, Falero demonstra como mesmo os sujeitos mais temidos também seguem um conjunto de valores morais e éticos que se impõem em diversas situações.

"No fundo, faço uma tentativa de humanizar o desumanizado", resume.