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Deputado 'ex-homossexual' que quer criminalizar a palavra 'Bíblia' recua

Pastor Isidório (ao centro), do Avante-BA, durante sessão de posse dos deputados federaise, 2019 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Pastor Isidório (ao centro), do Avante-BA, durante sessão de posse dos deputados federaise, 2019 Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

João de Mari

Colaboração para o TAB, em São Paulo

16/03/2022 04h00

Sentado no chão com pernas cruzadas e vestindo apenas bermuda, o Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), o deputado federal mais votado da Bahia, brinca com três de seus netos debaixo de uma cascata de águas termais. Ele estava em Cipó, município no sertão do estado, no último domingo (13). "A Deus toda glória, para sempre, amém", canta com voz rouca, em um vídeo publicado no Instagram após ser promovido a capitão da Polícia Militar — ele está aposentado desde 2019.

"Mesmo hoje sendo capitão da PM, continuarei sendo soldado da Bahia. A história da estrela, não me envaideço sobre isso, porque a estrela maravilhosa é a do céu, criada por Deus. Mas tenho orgulho sim, de na fileira da PM ter o posto de oficial intermediário", completa ele, antes de limpar o rosto com uma das mãos.

Quem o vê assim nem sequer o associa à imagem do homem que assumiu uma cadeira em Brasília pelo partido Avante, em 2019, com trajes militares, um porrete na mão e a Bíblia na outra. O pastor chegou à Câmara empolgado e com várias ideias para colocar em prática.

Tão logo assumiu sua nova missão, no entanto, ele se irritou: soube da confecção de um livro que pretendia reeditar trechos homofóbicos da tradicional Bíblia cristã, a chamada "Bíblia gay". Uma delas é o livro "Bíblia sem preconceitos", escrita pelo pastor Marcos Gladstone, fundador da Igreja Cristã Contemporânea, que está na terceira edição. A outra é a "Queen James Bible", em referência ao nome "King James Bible", uma versão tradicional da Bíblia nos Estados Unidos. Ambos querem provar que os versos que condenam relações homossexuais são "erros de interpretação".

Ele decidiu, então, redigir o PL (projeto de lei) 2/2019, que criminaliza o uso da palavra "Bíblia" ou "Bíblia Sagrada" em outros contextos. A punição para os infratores: pena de até 5 anos de detenção. O texto entrou na pauta da Câmara dos Deputados na última quinta-feira (10).

A notícia surpreendeu. O próprio deputado, por telefone, fez questão de dizer ao TAB que desistiu da ideia de criminalizar a palavra "Bíblia", apesar de seu texto estar tramitando com urgência na Câmara — ou seja, mesmo ainda não tendo sido apreciado no plenário, o projeto pode ser votado a qualquer momento. Não há necessidade que ele passe por outras comissões.

"Eu estava com raiva", disse. "Parei para pensar no significado da palavra e me arrependi. Não quero mais que esse projeto vá para frente, porque entendi que proibindo o uso da palavra 'Bíblia' eu estaria excluindo livros que pretendem ser um 'manual', como uma 'Bíblia do engenheiro', 'Bíblia do jornalista', e assim por diante."

Outra surpresa é que o requerimento para colocar o projeto em votação foi assinado por partidos tanto de direita quanto de esquerda. O documento que pedia urgência na tramitação foi assinado em dezembro pelas bancadas do Avante, MDB, Patriota, PSC, PTB, PL, Solidariedade, PSB, PSD, PT, PCdoB, Republicanos, PSDB, Podemos, PP, DEM e PSL.

O deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul, Bohn Gass, foi um deles — apesar de a pauta levantada pelo pastor não representar seus ideais. Ao TAB, ele disse que "assinar para que o projeto tramitasse em regime de urgência foi um equívoco".

"Por conta disso, já encaminhei pedido para a retirada da assinatura que, embora eu saiba que não tem o condão de modificar o status do trâmite, marca de forma mais nítida minha posição. Votarei contra o projeto", afirmou.

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A assessoria de comunicação de Alice Portugal, do PCdoB, chegou a dizer à reportagem que o voto a favor do requerimento aconteceu para que a proposta "seja derrubada no plenário". Ou seja: ela votou para ser apreciada pelos colegas e derrubada no argumento.

Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP (Universidade de São Paulo), se disse surpreso com o resultado do requerimento. "O sargento propôs essa maluquice de proibir a 'Bíblia gay' e alguns deputados assinaram o documento sem ler ou sem prestar atenção", avaliou ele, que pesquisa a movimentação de cristãos nas redes sociais.

Ao TAB, Isidório garantiu que os partidos que assinaram o requerimento de urgência não sabiam que estavam assinando também o projeto sobre uma suposta "Bíblia gay".

Sargento pastor Isidório, candidato a prefeito de Salvador - Divulgação Avante - Divulgação Avante
Imagem: Divulgação Avante

Equívocos na tramitação

O projeto em tramitação na Câmara ainda tem um bônus: o PL 4606/2019, que pretende "tombar" o livro sagrado, proibindo qualquer alteração, edição ou supressão aos textos da Bíblia. É esse projeto que o pastor-sargento defende com unhas e dentes.

"Ninguém pode remover Gênesis, Apocalipse, assim como um livro antigo do mestre da engenharia não pode ser mudado", argumentou Isidório. "Existem nações em que a Bíblia não pode entrar. Eu sou pastor, acredito na palavra de Deus, e eu acho que esse projeto é para proteger que isso também aconteça no Brasil", disse à reportagem, sem esclarecer suas referências.

Acontece que, pelo regulamento da Câmara, o projeto que criminaliza o uso da palavra "Bíblia" (PL 02/2019) está apensado, ou seja, anexado, ao PL 4606, o que quer "tombar" o livro sagrado. O deputado afirmou que não conseguiu engavetar o primeiro.

"Já foi comprovado que houve equívoco na tramitação do projeto [02/2019]. Só que não posso desapensar agora, nem pode pedir a troca, porque senão eu perco as assinaturas. Vamos ter que ir com ele, e o relator escolhido vai fazer a cirurgia", explicou. Do jeito que está, portanto, poderiam ser aprovados os dois. E eu não quero isso".

deputado - Divulgação - Divulgação
O deputado federal Pastor Sargento Isidório e a esposa, Dona Elza
Imagem: Divulgação

O fenômeno do deputado ex-homossexual

Manoel Isidório de Santana Junior é um fenômeno eleitoral na Bahia. Com 343 mil votos, teve quase o dobro do segundo deputado mais votado, Otto Alencar Filho, do PSD (185 mil votos). Além de garantir sua cadeira na Câmara Federal, o pastor-sargento ajudou a eleger seu filho, João Isidório, para uma vaga de deputado estadual na Bahia. João morreu afogado, aos 29 anos, em novembro do ano passado na praia de Loreto, na Bahia.

Isidório costuma dizer que é um "ex-homossexual" convertido pelo Evangelho, conforme afirmou em entrevista à revista piauí em 2018. No entanto, temas sobre sexualidade e identidade de gênero, sobretudo nas escolas, ganham o repúdio do pastor, que recorrentemente defende a "preservação dos valores da família".

Apesar de não querer comentar sobre a "Bíblia gay" ou derivados do livro sagrado, Isidório não escondeu que já ouviu falar de duas publicações que versam contra o que consideram uma "manipulação" homofóbica da Bíblia. Na prática, se aprovado o projeto que pretende "tombar" o livro sagrado, alterações de trechos seriam proibidas.

Enquanto aguarda ansioso pela tramitação dos projetos de lei 4606/2019 e 02/2019 -- que podem ser votados na Câmara a qualquer momento --, Isidório publica vídeos e fotos nas redes sociais pregando aos fiéis. Ele reúne quase 50 mil seguidores só no Instagram.

"Houve um equívoco, mas o tombamento da Bíblia, esse sim, independe de religião, por a Bíblia ser sagrada e, se Deus quiser, será aprovado."