Topo

Ucranianos em fuga escrevem 'tem criança' no carro para evitar ataques

Nadeja Kolesnikova (com bebê no colo) e seu marido Grigory Kolesnikov (à dir.) fugiram da Ucrânia apenas com os passaportes  - Arquivo pessoal
Nadeja Kolesnikova (com bebê no colo) e seu marido Grigory Kolesnikov (à dir.) fugiram da Ucrânia apenas com os passaportes Imagem: Arquivo pessoal

Douglas Maia

Colaboração para o TAB, em Curitiba

15/03/2022 04h00

Na madrugada do dia 23 para o dia 24 de fevereiro, o cantor lírico e arquiteto Victor Cordeiro dos Santos, 25, acordou com a notícia de que os bombardeios haviam começado na Ucrânia. Ele e sua família, em Curitiba, já acompanhavam apreensivos a escalada do conflito na fronteira.

O neto de ucranianos correu em busca de notícias dos parentes que ainda vivem na Ucrânia. "Eles moram em Stryi, a oeste, próximo à Polônia, então ainda estão por lá. Mas a cidade já emitiu um alerta para que todos fiquem com documentos a postos, com carro abastecido e que estoquem comida."

A família ucraniana do curitibano tenta tranquilizar os parentes do outro lado do oceano, enquanto convive com sirenes de ataques aéreos e abrigos antibomba.

A invasão da Ucrânia pelo exército russo certamente vai ficar marcada como a primeira guerra transmitida em tempo real pelas redes sociais. A todo momento, circula um volume gigantesco de imagens, relatos e notícias sobre a guerra, sem trégua. Para descendentes de ucranianos que moram no Brasil, acompanhar o noticiário é tanto uma bênção quanto uma maldição.

"À 1h da manhã os grupos já estavam cheios de mensagens sobre os primeiros bombardeios. Parecia um pesadelo, eu não conseguia nem responder", lembra Solange Oresten, 62, cujos pais imigraram da Ucrânia para o Paraná ainda jovens. "E hoje eu vivo assim: quero me desligar, mas entre trabalhar e fazer uma coisa ou outra eu fico acompanhando e torcendo. Vivemos nessa apreensão."

Fotos enviadas pela família de Ederson Carvalho e Mariia Romanets - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fotos enviadas pela família de Ederson Carvalho e Mariia Romanets
Imagem: Arquivo pessoal

Resgate à distância

Para quem tenta, à distância, socorrer os familiares que estão em zona de conflito, a busca por informações também é contínua e, por vezes, frustrante. "É difícil a gente filtrar o que é verdade e o que não é, o que deixa a gente ainda mais preocupada", conta a brasileira Raíssa Ulhôa Kolesnikova. Ela e o esposo ucraniano, Sergii Kolesnikov, conseguiram nos últimos dias auxiliar a família a escapar da capital, Kiev.

De Belo Horizonte, onde moram, acompanharam virtualmente a viagem de cinco familiares. Os pais de Sergii cruzaram de carro a fronteira com a Moldávia, junto com a irmã dele e os dois sobrinhos (um de nove e outro de dois anos). "Eles estavam com muito medo, porque os russos estavam atirando em carros de civis que estavam fugindo", diz Sergii. "Por isso, cinco dias depois, quando finalmente decidiram ir para a fronteira, escreveram 'TEM CRIANÇAS' no vidro do carro."

Enquanto os familiares ainda estavam em Kiev, os brasileiros e os ucranianos ainda conseguiam se falar por chamadas de vídeo. "Quando os ataques começaram, eles foram para uma vila a 100 km da capital e a comunicação se tornou mais difícil. Quando já estavam próximos da fronteira, ficamos mais de 12 horas sem notícias", lembra Raíssa.

Hoje, a família aguarda uma resolução na Bulgária, de onde Raíssa e Sergii pretendem trazê-los para o Brasil. O irmão e o cunhado de Sergii ficaram, devido à restrição imposta pelo governo ucraniano à saída de homens de 18 a 60 anos. A família está receosa de vir para o Brasil sem eles.

O Brasil publicou no início de março uma Portaria Interministerial que concede visto humanitário a ucranianos deslocados pela invasão russa. Mas há ainda uma última barreira para trazer os refugiados ucranianos: a exigência do comprovante de vacinação contra a covid-19 para a entrada de estrangeiros no país. "Eles saíram só com o passaporte, não estão com o certificado de vacinação", conta Raíssa.

A família de Sergii. A irmã Natália Trubetskaya, a sobrinha Veronika Trubetskaya, o sobrinho Timur Trubetskoy e o cunhado Nikita Trubetskoy, que teve que ficar na Ucrânia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A família de Sergii. A irmã Natália Trubetskaya, a sobrinha Veronika Trubetskaya, o sobrinho Timur Trubetskoy e o cunhado Nikita Trubetskoy, que teve que ficar na Ucrânia
Imagem: Arquivo pessoal

No mesmo dia em que foi publicada a portaria, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) publicou uma nota técnica em que reconhece "a situação excepcional fundada em notória situação humanitária decorrente de estado de guerra em curso" e recomenda a suspensão da exigência do passaporte sanitário para os refugiados da guerra. No entanto, a decisão ainda não foi oficializada pelo governo -- o que deve ocorrer nos próximos dias.

Até lá, Raíssa e Sergii fazem uma "vaquinha" online para tentar enviar dinheiro para que os parentes comprem roupas e alimentos.

O irmão de Sergii, Andrii Kolesnikov, a mãe Nadeja Kolesnikova, Sergii, Raíssa e o pai, Grigory Kolesnikov - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O irmão de Sergii, Andrii Kolesnikov, a mãe Nadeja Kolesnikova, Sergii, Raíssa e o pai, Grigory Kolesnikov
Imagem: Arquivo pessoal

Sobrevivência no bunker

Segundo a Representação Central Ucraniano-Brasileira, ainda são muitos os brasileiros que tentam tirar familiares das regiões em conflito, embora não haja números oficiais.

Desde o início dos ataques ordenados pelo presidente russo Vladimir Putin, surgiram nas redes sociais dezenas de pedidos de ajuda de brasileiros em busca de uma informação ou carona que pudesse levar familiares a regiões mais seguras.

Entre essas pessoas está Ederson Carvalho, brasileiro casado há dois anos com a ucraniana Mariia Romanets. Os dois tentam, há duas semanas, resgatar a mãe e a irmã de Mariia, que têm 68 e 37 anos, respectivamente. As duas estavam no apartamento onde moravam em Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana, quando uma das bombas atiradas durante os ataques aéreos russos atingiu o prédio.

Durante sete dias, elas ficaram abrigadas em um bunker, conseguindo depois uma carona para chegar à estação de trem e ir até Lviv, cidade no oeste do país. Na estação, elas tiveram que se separar do irmão de Mariia, que não pode deixar o país devido à lei marcial.

Mariia Romanets, casada com o brasileiro Ederson Carvalho, e a mãe Valentina Romanets - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mariia Romanets, casada com o brasileiro Ederson Carvalho, e a mãe Valentina Romanets
Imagem: Arquivo pessoal

Agora, Mariia e Ederson buscam ajuda para que as mulheres da família cruzem a fronteira com a Polônia, de onde o casal pretende comprar passagens que as tragam até o Brasil. "Algumas pessoas estão nos ajudando com milhas e doações, porque as passagens são bastante caras", conta Ederson. "Como refugiadas, elas poderiam ir para outros países da Europa, mas decidiram recomeçar a vida aqui no Brasil, com nosso apoio".

O casal conta, ainda, que a guerra entre Rússia e Ucrânia levantou uma barreira comunicacional entre os países, onde lados diferentes da fronteira recebem informações completamente diferentes sobre o conflito. "Quando avisei uma das minhas irmãs, que mora na Rússia, que traria nossa mãe ao Brasil, ela perguntou: 'Mas por que a mãe não vem até Moscou para pegar o avião?'". A mídia estatal russa sequer tem utilizado a palavra "guerra" para descrever os ataques.

Para quem, assim como Mariia e Ederson, espera se reencontrar com familiares longe das áreas de conflito, as negociações entre Ucrânia e Rússia pela criação de corredores humanitários têm sido uma esperança. Nesta segunda-feira (14), dez corredores livres de ataques foram criados para que civis ucranianos possam ser evacuados. As conversas entre os países, no entanto, têm sido permeadas por desconfianças desde o início, com acusações mútuas de descumprimento do cessar-fogo nessas áreas, que incluem relatos de famílias atacadas enquanto fugiam.

A mãe de Mariia, Valentina Romanets, 68, e a filha Oksana Ardabieva, 37 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A mãe de Mariia, Valentina Romanets, 68, e a filha Oksana Ardabieva, 37
Imagem: Arquivo pessoal

Comunidade ucraniano-brasileira mobilizada

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados calcula em mais de 2,8 milhões o número de pessoas que já fugiram do território ucraniano desde o dia 23 de fevereiro. O número segue crescendo à medida que os conflitos se tornam mais violentos e se espalham por mais cidades ucranianas. A União Europeia e outros países da comunidade internacional se mobilizam para receber os refugiados e prestar ajuda humanitária.

Organizações da comunidade ucraniana no Brasil, entretanto, têm considerado a atuação do governo brasileiro errática. "O Governo Federal está indo a reboque, aos trancos e barrancos", avalia o presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, Vitório Sorotiuk. "Temos hoje o apoio de dois governos estaduais -- de São Paulo e Paraná -- para a recepção dos ucranianos. O Itamaraty vai bem, é uma instituição de prestígio, mas temos uma situação meio esquizofrênica com o Palácio do Planalto", comenta Sorotiuk, que tem pressionado o governo para que assuma oficialmente um papel na ajuda humanitária ao povo ucraniano.

Na segunda-feira (07), um avião da FAB decolou de Brasília com destino a Varsóvia, na Polônia, onde resgatou 42 cidadãos brasileiros, 20 ucranianos, cinco argentinos e um colombiano. A aeronave levou ainda 11,5 toneladas de alimentos e medicamentos doados por voluntários brasileiros.

Representantes da comunidade de ucranianos e descendentes também estão organizados para prestar apoio às vítimas da invasão. O grupo Humanitas Brasil-Ucrânia, movimento nacional organizado na última semana em Curitiba, reúne diversas entidades civis e religiosas e se prepara para acolher ucranianos no país, além de coletar doações a serem enviadas ao país europeu.