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Vendedora de balas cria escolinha em ocupação em Franco da Rocha

Ivani Regiane, 46, em Franco da Rocha (SP) - Gabriela Di Bella/UOL
Ivani Regiane, 46, em Franco da Rocha (SP) Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

Manuela Azenha

Colaboração para o TAB, em São Paulo

13/03/2022 04h00

A ideia de criar uma escola na ocupação foi de Stella da Silva, uma menina de 11 anos, moradora de um coletivo em Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo. Aconteceu em abril de 2020, em meio à pandemia de covid-19, quando as escolas estavam fechadas, e, assim como Stella, as crianças da vizinhança passavam o dia brincando na rua.

"Muitos dos meus amigos não sabiam ler e escrever ainda, então pensei que poderia ensinar a eles", conta ao TAB, enquanto caminha na rua de terra que leva à casa de madeirite onde mora com a mãe, Ivani Regiane, 46, e o irmão mais novo, de 10. "Falei para minha mãe e ela topou fazer uma escolinha na nossa casa", continua. O projeto social leva seu nome: "Stella - Deus é conosco".

Regiane, como gosta de ser chamada, é mãe solo de 4 filhos e atualmente vende bala no trem cuja linha passa poucos metros à frente de sua casa. Trabalha das 4h às 9h da manhã -- quando não é impedida por seguranças. Se isso acontece, ela permanece nos vagões para contar aos passageiros da escolinha e pedir doações.

Foi com esse dinheiro, somado ao que consegue com as vendas de bala e a ajuda dos vizinhos, que Regiane manteve o projeto em sua casa por mais de um ano. Depois, ela construiu um espaço de madeirite ao lado -- onde antes era um ponto de venda de drogas do bairro.

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A escolinha Stella - Deus é conosco em Franco da Rocha (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

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Ivani Regiane, 46, e a filha, Stella, 11, em Franco da Rocha (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

'Eu quero a história aqui'

"No início a gente criou a escolinha simplesmente para tirar as crianças da rua, porque aqui não tem absolutamente nada para elas fazerem. Então começaram a passar o dia aqui, tendo aulas e brincando. Cada hora a gente inventa alguma atividade", conta Regiane, que estudou até o 5º ano do ensino fundamental e, agora, quer voltar para a escola.

A mãe de Stella sabe ler e aprendeu a escrever "um pouco" aos 12 anos, enquanto esteve presa por cinco meses na então Febem, hoje Fundação Casa. "Eu estava morando na rua e um caminhão do conselho tutelar passou e me levou", relata. Aos 13, começou a trabalhar de doméstica numa casa onde também morava.

Regiane não perde uma oportunidade para divulgar a escolinha. Quando foi pegar a primeira parcela do auxílio emergencial, por exemplo, em maio de 2020, contou sobre o projeto ao gerente da Caixa Econômica. "No começo foi muito difícil, não tinha lanche para dar. Só comíamos pipoca todo dia. Dei o endereço para o Reginaldo e ele apareceu com o carro cheio de comida pra gente", conta.

Depois veio Oscar, um oficial de justiça que conheceu a escolinha quando foi à ocupação entregar uma ocorrência. Na época, um pano estendido fazia as vezes de telhado para garantir alguma sombra; tampouco havia porta. O oficial apareceu dias mais tarde com doações.

Regiane conta que uma conhecida, formada em pedagogia, quis levar as crianças para que tivessem aulas numa escola dentro de uma igreja evangélica em outro bairro. "De fato a sala é linda, com mais suporte. Mas eu não quis porque é aqui que precisa de um lugar assim, eu quero que a história seja aqui", afirma ao TAB.

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A escolinha Stella - Deus é conosco em Franco da Rocha (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Bala de revólver

A pequena Stella foi a primeira professora a dar aulas no espaço. Ainda ensina a dois meninos, das 8h até 11h, antes de ir, ela mesma, à escola. O material didático utilizado é o que Regiane usou quando criança, e que guardou com carinho por mais de 30 anos.

A estante da sala de aula está cheia de livros doados ou coletados do lixo -- como apostilas do ensino fundamental do Governo de São Paulo e um livro infantil sobre Nelson Mandela. "Apesar de gostar de ensinar as crianças na escolinha, eu quero ser advogada na área do divórcio. Ainda não entendo muito bem sobre essas coisas, mas é o que eu quero ser", conta Stella.

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O material didático que Regiane usou quando criança
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Como todo trabalho é voluntário, a maior parte dos colaboradores vêm e vão. Mas há duas professoras desde o início do projeto, Irmã Ana e Irmã Neuda, que conheceram Regiane quando trabalharam juntas na distribuição de folhetos de candidatos na última eleição.

O professor de música, Ricardo Gonçalves da Penha, 53, também participa faz tempo. Estudante de licenciatura em música, no ano passado deu aulas de coral e percussão, e voltará a ensinar as crianças a partir de março. Se conseguir doações de instrumentos musicais, este ano pretende dar iniciação em flauta doce e violão.

As aulas de português e matemática acontecem às segundas e terças-feiras, com turmas de manhã e à tarde. Agora que as escolas reabriram, o espaço funciona como um reforço, especialmente para aqueles que sentem dificuldade em acompanhar o ensino.

Há oito alunos na turma da tarde de terça-feira: sete crianças entre 6 e 10 anos de idade, além de Marisa da Silva, 45. Atualmente desempregada, ela resolveu aproveitar o tempo livre para aprender a ler e a escrever.

Os alunos recebem cadernos e lápis para as tarefas, que cumprem com atenção, enquanto as professoras passam de um em um para acompanhar. Um dos meninos brinca com uma bala de revólver na mão enquanto aguarda a sua vez de mostrar a lição.

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A escolinha Stella - Deus é conosco em Franco da Rocha (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Deslizamentos e sobrevivência

Com a divulgação feita no boca a boca nos trens e na vizinhança, o projeto de Regiane foi recebendo maiores doações: caixas de comida para servir de marmita aos alunos, uma lousa, carteiras, assim como o madeirite, as telhas e o piso com que construiu o espaço. Mais recentemente, instalou internet na escola e recebeu dois computadores, para os quais ainda faltam os devidos cabos para serem instalados.

Gilcimar Fernandes da Silva, 33, técnico de enfermagem e segurança, dará aulas semanais de informática, e também de tingimento de tecidos, no estilo tie-dye.

Os moradores da vizinhança ainda vivem o trauma do desmoronamento a cerca de 500 metros dali, no dia 30 de janeiro, que deixou 18 mortos. Gilcimar passou dias escavando e procurando pessoas soterradas. Encontrou três corpos.

Um dos mortos no deslizamento foi José Ailton Vitor Silva, 30, que dava aulas de jiu-jitsu na escola. Ele foi encontrado abraçado à mulher, Adriana da Silva Santos, 33, e o bebê Oziel Vitor, de 2, todos sem vida.

Regiane também encontrou um corpo, no primeiro dia, antes dos bombeiros chegarem. "Estava escavando com as mãos mesmo e senti um cabelo. Não tive coragem de tirar mais terra e avisei que tinha alguém ali", conta. "Está vendo essa casa aqui?", aponta para uma construção na base do morro. "Mandaram todo mundo sair dela porque tem risco de deslizamento. Três alunas minhas moravam aqui".

Além das crianças que vivem no próprio bairro, Regiane também traz as que vivem numa comunidade a 40 minutos caminhando.

Os desafios para manter o projeto são diários, já que as doações são inconstantes. "A Belinha, uma aluna minha, chegou hoje falando que queria comida. Só tinha arroz e ovo, sem mistura, mas ela comeu com vontade", conta. "Apesar das dificuldades, a gente continua aqui porque nunca vou fechar a porta para uma das crianças".

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Ivani Regiane, 46, em Franco da Rocha (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL