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'Eu sei, mas não lembro': defasados, estudantes voltam às aulas em SP

Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP) - Fernando Moraes/UOL
Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP) Imagem: Fernando Moraes/UOL

Claudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, em São Paulo

24/02/2022 04h00

Vestindo boné e camiseta com um grande jacaré verde bordado, brinco na orelha e tênis de molas, Mateus Sampaio, 15, entra tímido na sala de aula. "É o estilo Mandrake. Aquele que aparece no [canal de funk] KondZilla, conhece?".

Mateus participa da primeira aula de recuperação paralela para alunos do 9º ano na Escola Municipal Sylvia Martin Pires, localizada na Zona Sul de São Paulo. Mais de 660 alunos voltaram a circular por lá desde o dia 7 de fevereiro, data que marcou o início do ano letivo presencial e obrigatório no ensino público. A recuperação paralela começou 10 dias depois — mas poucos aparecem na primeira aula. Segundo a escola, a participação depende da autorização dos pais.

Quando o TAB acompanhou a aula, quatro alunos compareceram: Mateus, Jessica, Jennifer e Lady, todos do 9º ano. Parece pouco para uma lista de presença com quinze nomes confirmados somente naquela sala. "Até que tem bastante gente", observa Elaine Martins, 42, professora de Ciências, segurando a lista de chamada.

Elaine explica que trazer os alunos de volta também é um desafio. "Todos precisam de aulas de reforço", diz. Se não a aula paralela, 4h horas semanais a mais, pelo menos a recuperação contínua indicada para todos os alunos.

A modalidade de recuperação paralela é uma atividade complementar que acontece duas vezes por semana, no horário do almoço. Participam estudantes que não apresentaram bons resultados na Prova São Paulo, exame realizado pela Secretaria Municipal de Educação, com 380 mil alunos da rede pública.

A avaliação foi dividida em quatro níveis: abaixo do básico, básico, adequado e avançado. Os resultados mostram um aumento enorme da defasagem de estudantes do ensino público municipal em relação a 2019.

"Mano, Ciências é uma coisa pancada pra mim. História e Matemática eu mando melhor", conta Mateus. Em Ciências, 94% dos alunos do 9º ano apresentaram nível de aprendizado abaixo do adequado para a série. Em Matemática, apenas 7% conseguiram resolver problemas de probabilidade. Cerca de 56% dos alunos avaliados ficaram "abaixo do básico"; em 2019, eram 36%.

O 9º ano foi um dos mais impactados pela pandemia. Em Língua Portuguesa, apenas 10% conseguiram escrever e interpretar um texto corretamente. "Abaixo do básico" estão 52% deles; em 2019, eram 25%.

Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP) - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP)
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Como é que diz mesmo?'

Os quatro alunos presentes não só deixaram de aprender nesses dois anos. Eles também esqueceram o que sabiam.

Na lousa da sala, há uma pergunta: "O que eu lembro da disciplina da Ciências?". Sem respostas, a professora quer saber se lembram mais ou se lembram menos. "Mais pra menos", brinca Mateus. Ele sussurra que "lembra do movimento dos planetas" — conteúdo que aprendeu no 6º ano —, enquanto Jennifer lembra o nome de órgãos do corpo humano.

É como se todos compartilhassem a mesma sensação: sabem do que se trata, mas não lembram o nome. "Como é que diz mesmo?" é uma pergunta comum entre eles. Quietos e concentrados em tudo o que Elaine fala, os alunos tentam encontrar na memória o nome do processo realizado pelas plantas para a produção de energia, a fotossíntese.

Elaine explica o que é uma célula e usa um ovo para ilustrar o funcionamento. O equipamento de projeção da escola já não está mais lá. Diante do silêncio, a professora reduz o ritmo das perguntas e avisa que o objetivo não é correr, mas relembrar. É também um passo atrás que os professores estão dando nas exigências.

Ela então questiona sobre os órgãos do corpo. Mateus menciona o coração, Jessica cita o útero, "parte do sistema reprodutor". A lógica da professora, que partiu da menor unidade estrutural do ser vivo, fica clara. "Células formam os tecidos que formam os órgãos. Os órgãos formam os sistemas, e todos esses sistemas vão formar o indivíduo pluricelular".

Volta às aulas na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP) - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Volta às aulas na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP)
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Rotina de atleta

Na escola, a quadra de esportes é o espaço que Mateus mais gosta. "O futebol é o que eu quero levar pra vida", diz. Para chegar lá, é preciso descer duas escadas, cruzar o refeitório e desviar de um menino de seis anos que tenta subir os degraus fazendo pose de super-herói enquanto carrega, num braço só, a mochila de rodinhas quase do seu tamanho. Ele não aceita ajuda.

Em fila, uma turma de crianças barulhentas leva bronca da professora. Mateus observa a cena. "Passei muito tempo com o Yago", conta, referindo-se ao irmão de três anos que tinha pouco mais de um ano quando a pandemia começou. Yago aprendeu a andar com Mateus. "Pegava um shorts meu, colocava cada perninha dele num buraco e levantava o shorts. Daí saía andando com ele pela casa, até que ele aprendeu a andar", descreve.

Na quadra de futebol vazia, Mateus conta que Lionel Messi é seu jogador preferido. "A comunicação é muito importante em tempos de redes sociais. Meu pai sempre diz. Para os atletas também, quando dão entrevistas após as partidas", explica.

A rotina do garoto começa às 6h e o período regular de aulas vai até as 12h. As tardes de segundas, terças e quintas são ocupadas pelos treinos de futebol na escola do Santos. As tardes de quartas e sextas, agora, são dedicadas ao reforço paralelo.

Durante a pandemia, Mateus e Ryan, 17, o irmão mais velho, começaram a trabalhar juntos numa hamburgueria onde "fazem de tudo um pouco".

Ele entra às 16h e fica até à noite no serviço, que termina em fevereiro. "Muito esforçado, nunca teve problema em ir pra escola", diz a mãe, Bruna Sousa de Sampaio, 34, que foi mãe aos 16 anos. Casada há 19 anos com Tiago Sampaio, segurança, ela mais três meninos além de Mateus: Ryan, 17, Felipe, 12, e Yago, 3.

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Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP)
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'A gente não dá conta'

A família de Mateus mora num apartamento de 50m na Vila das Mercedes. São dois quartos — num deles, dormem os quatro filhos. Com tanta gente em casa, Bruna teve dificuldade com as aulas online. "A gente não dá conta 100%".

O fechamento da escola, observa a mãe, prejudicou o português do filho. Mateus concorda. "Preciso me comunicar melhor", fala em voz baixa.

O jovem garante que fez todas as lições de casa durante a pandemia, mas desistiu das aulas online. Os resultados da Prova São Paulo também são um indicativo de que o ensino à distância fracassou na cidade. Sobre a carreira no futebol, o casal apoia. "Agora é daqui pra frente", acredita a mãe.

Mateus já namorou e na pandemia pensou em se casar. "Se eu conseguir carreira no futebol, pode atrapalhar. Preciso ficar concentrado", reflete. Com sua vaga compreensão do tempo, não se aprofunda sobre os prejuízos acumulados nos dois últimos anos. "Minha alimentação piorou, mas aprendi a tomar mais água na pandemia".

O garoto também não menciona momentos ruins, mas informa que todos na sua casa foram vítimas de covid-19. Vacinado com duas doses e "aguardando já pela terceira", Mateus cita a história de Neymar, identificado por um olheiro na escolinha do Santos, como referência de que seu sonho é possível. Foi por causa da história da atual estrela do PSG que ele escolheu treinar na escolinha do Santos.

Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP) - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Mateus Sampaio, 15, na Escola Municipal Sylvia Martin Pires (SP)
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'A fila está andando'

A legislação nacional estabelece que as matrículas na rede pública nos anos iniciais do ensino fundamental são de responsabilidade conjunta de estados e municípios.

Com dificuldade para encontrar vagas nas escolas, muitas famílias movimentaram-se nos últimos dias. O grupo de WhatsApp com pais que procuram vagas também silenciou sobre o assunto.

A rede municipal conta com 1.081 milhão de estudantes matriculados, dos quais 48.068 integram o 9º ano.

Procurado pelo TAB, o Estado informou que a movimentação de matrículas e pedidos de transferência acontece durante o primeiro bimestre. "Em três dias (16, 17 e 18 de fevereiro) a rede pública da capital recebeu 636 novas intenções de matrículas para o 1º Ano do Ensino Fundamental, além das 333 que restaram na última terça-feira (15). Nesta segunda-feira (21), mais de 40 pedidos de matrícula foram recebidos. O total de vagas aguardando alocação é de 318".

Em 2023, se der tudo certo, Mateus vai para o ensino médio.