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Festival de rap no Rio tem denúncias de trabalho abusivo e falta de higiene

Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro - Sergio Dias/Divulgação
Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro Imagem: Sergio Dias/Divulgação

Valmir Moratelli

Colaboração para o TAB, no Rio

20/02/2022 04h00

Enquanto grandes nomes do rap apresentavam suas composições de forte crítica social no palco principal do Rep Festival, a realidade dos trabalhadores nos bastidores do evento era bem complicada.

A festa organizada nos dias 12 e 13 de fevereiro, na Barra da Tijuca, área nobre do Rio, contou com artistas como Xamã, Baco Exu do Blues, Anitta, L7nnon, Poesia Acústica, entre outros. Ao longo da semana seguinte, brotaram nas redes sociais denúncias de más condições de trabalho, além de críticas dos frequentadores sobre conduta abusiva na oferta de comida em condições duvidosas para consumo.

Um post de uma frequentadora identificada como Livia Navy dá o teor daquele final de semana: "Desigualdade social grita! Quem vê o evento grande desse jeito, cheio de playboy morador da Barra da Tijuca e adjacências se divertindo, nem imagina como estava a galera nos bastidores trabalhando (vigilantes, garçons, limpeza etc). 36 horas direto, sem dormir, sem mal se alimentar, tendo que fingir desmaio para conseguir uma água, o mínimo! Uma água! Lugar para comer não cabia nem metade dos trabalhadores. Por 160 reais, galera indo embora machucada, com o olho preto de olheira. Um evento de rap, estilo musical que teve início denunciando a realidade nas comunidades e os problemas sociais escancarados pelo povo preto, e o povo preto que estava lá trabalhando, todos sendo esculachados", dizia a publicação.

Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro - Sergio Dias/Divulgação - Sergio Dias/Divulgação
Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro
Imagem: Sergio Dias/Divulgação

Jornada de 14h e falta de higiene

Como já ocorrido em outros eventos de grande alcance de público, mais uma vez houve registro de funcionários dormindo em pedaços de papelão pelos cantos das estruturas montadas. Neste quesito, o Rep Festival, apesar da "pegada" engajada de seus artistas, se equipara a eventos de outros gêneros musicais. Na edição de 2019 do Rock in Rio, por exemplo, foram constatadas irregularidades no controle de horário dos trabalhadores. Também em 2019, o Lollapalooza, em São Paulo, foi acusado de contratar por R$ 50,00 pessoas em situação de rua, para montagem de palcos em jornadas de 12 horas.

Victor*, 23, trabalhou nos dois dias de Rep Festival, na área de alimentação. Ele foi um dos que precisou dormir num papelão, enquanto aguardava o pagamento, após longo expediente. O funcionário terceirizado narrou ao TAB que as equipes foram divididas em dois turnos de trabalho: de meio-dia às 2h da manhã, e das 17h às 7h do dia seguinte. Por cada dia, recebeu R$ 120,00.

"Terminei às 2h e me falaram que eu receberia com o restante do pessoal, após o próximo expediente. Arrumei um canto e fiquei até as 7h lá. Moro em São Gonçalo, peguei três conduções para chegar, não é fácil".

Um outro prestador de serviços da área de alimentos, que pediu para não ser identificado, reforça que vários colegas do turno anterior precisaram dormir no chão e que houve problemas graves de higiene. "Falta de fiscalização total nos banheiros, a nossa cozinha era atrás dos banheiros químicos! As pessoas ficavam urinando no chão, atrás de uma cozinha!", diz.

Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro - Sergio Dias/Divulgação - Sergio Dias/Divulgação
Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro
Imagem: Sergio Dias/Divulgação

'Só sigo ordens'

Também houve reclamação pela falta de água gelada. Lucia*, que trabalhou como atendente, conta que precisou pagar para matar a sede. "Até tinha água num bebedouro do espaço interno, mas acabava cedo, ninguém repôs. E não era gelada. Naquele calor que fez no Rio, e a gente tendo que beber água quente! Impossível não passar mal", diz.

Os prestadores de serviço contam que foram forçados a adulterar os lanches vendidos. O cachorro quente simples custava R$ 15,00 e o "megadog" (com duas salsichas e um pão maior) saía por R$20,00. "Como teve muita saída do megadog, a responsável pelo setor pediu para que a gente só colocasse uma salsicha em cada pão. Falei que muita gente ia reclamar, porque estava pagando pelo sanduiche completo. Foi um imenso transtorno. As pessoas se sentiram lesadas, houve muita reclamação", diz Victor. No segundo dia, ele ainda tentou argumentar com os supervisores. Em vão. "Me falaram pra repetir: 'Eu só sigo ordens, estou trabalhando. Por favor, entenda meu lado'".

Outro problema foi a qualidade do pão fornecido nos lanches. Muitos clientes reclamaram que estava duro. Procurado, o IVISA (Instituto Municipal de Vigilância Sanitária) informou à reportagem que "realizou ação de fiscalização nos serviços de alimentação e saúde do Rep Festival e que nenhuma irregularidade foi encontrada".

Fila de uma hora

Eram cerca de 25 pessoas trabalhando em cada um dos três pontos de lanchonetes. Longas filas se formavam. Uma frequentadora postou: "Festival ridículo, mal feito, uma hora pra fazer um pagamento pra comer um lanche caro e mixuruca, chão todo esburacado sem nenhum gramado decente".

No local onde se vendia cachorro-quente, por exemplo, estava com sinalização errada: "Hamburguer". Mais estresse. Após o tempo de espera, o cliente interessado em comprar hamburguer percebia que estava no local errado.

O estudante Henrique Melquizedek conta que a diversão virou estresse. "Fiquei uma hora na fila para comprar um megadog, só com uma salsicha! Eram poucas pessoas atendendo, a forma de preparo toda errada, era tudo meio jogado... Fui comprar um refrigerante, estava quente, reclamei e não adiantou nada", diz.

Responsável pela gestão do setor de alimentação, uma pessoa identificada como Tico assim justificou ao TAB: "O público que está acostumado a ir a grandes festivais sabe que qualquer lanchonete demora a atender, em média, uns quinze minutos. Lá tinha uma filinha de dez minutos para pegar o lanche. E não era cobrado preço acima do correto, até porque era tabelado".

Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro - Sergio Dias/Divulgação - Sergio Dias/Divulgação
Rep Festival 2022 - Rio de Janeiro
Imagem: Sergio Dias/Divulgação

Sem hora extra

A má gestão de pessoas em grandes eventos é uma prática recorrente no país. Com altos índices de desemprego, é grande a oferta de mão de obra diante de salários minguados.

No âmbito jurídico, o advogado Ricardo Brajterman explica que a responsabilidade recai sobre as empresas terceirizadas, que contratam pessoal para os festivais. "Elas têm que ser devidamente fiscalizadas, porque muitas não garantem encargos trabalhistas previstos em lei. É um problema sério não só dos grandes eventos, é algo que já acontece em diversas áreas produtivas no país, devido à precarização da mão de obra de garçons, faxineiros, motoristas etc", diz.

Basta uma rápida conversa com quem trabalha nesses festivais para ouvir relatos abusivos. "Trabalhei num show do Wesley Safadão que tinha open food (oferta liberada de comida). Foi uma bagunça! Por falta de seguranças, as pessoas começaram a se aglomerar e não respeitar a fila de distribuição de lanches. A grade de divisão do público caiu. Uma menina do meu lado teve crise de ansiedade, eu tive que ir para a enfermaria, machuquei a perna, fui agredido", recorda Victor, que vê nesses bicos uma forma de pagar as contas do mês.

Lucia complementa. "A gente é chamada para trabalhar até as 4h, aí o artista atrasa no palco e termina o show às 7h. Alguém paga um extra? Claro que não! A gente fica lá trabalhando e tendo que ouvir desaforo. Ninguém quer saber o que a gente passa".

O que dizem os artistas

Adriano Stoor, produtor de artistas como L7nnon, Cone Crew Diretoria e Papatinho, que se apresentaram no Parque dos Atletas, não tomou conhecimento dos bastidores. "Em relação à estrutura de palco estava animal, bem grande, com infra adequada a tudo que um grande evento exige. [Sobre o restante] não sei dizer, porque a gente fica no backstage. No palco principal, não vimos nada", diz.

A rapper Clara Lima, que traz em suas músicas a luta por visibilidade às mulheres pretas e LGBTQIA+, não teve a mesma sorte. "Uma produtora informou, pouco tempo antes da minha apresentação, que não teria direito a camarim. Minha apresentação estava marcada para às 2h10 do segundo dia, como anunciado pelo festival. Depois do atraso de 20 minutos por parte do evento, não me deixaram subir ao palco", afirma.

Ao saber dos bastidores, ela se indigna. "O rap não é só música, é responsabilidade social. É lamentável usar o nome da nossa cultura e negligenciar questões tão fundamentais. É preciso lidar com os grandes eventos como extensão do movimento hip-hop, prezando pela luta por inclusão social e dignidade por meio da cultura, independentemente do porte do evento", continua.

O rap (sigla em inglês para rhythm and poetry, ou "ritmo e poesia") surgiu nas periferias, marcado pelo ritmo intenso e forte crítica à desigualdade social. Em seus versos de denúncia, por exemplo, Poesia Acústica canta: "Proibido proibir, falar de racismo/ Mimimi é de quem chama de vitimismo... Nem tudo que é escravo, é liberto". Nada mais real do que a rotina dos trabalhadores atrás dos balcões dos grandes eventos do país.

Procurada pelo TAB, a assessoria do Rep Festival não se manifestou até o fechamento da reportagem. O texto será atualizado caso a organização do evento responda às tentativas de contato.

*A identidade dos trabalhadores foi preservada a pedido dos entrevistados.