Thay Magalhães e Mayara Lima: a rotina de rainha e princesa da Tuiuti
Longe de ser um enredo de escola de samba, a polêmica atual do Carnaval carioca caberia num enredo folhetinesco, digno do horário nobre. De um lado, a dentista Thay Magalhães, 31, moradora de um condomínio de luxo da Barra da Tijuca e rainha de bateria da Paraíso do Tuiuti; de outro, a princesa da mesma bateria e professora de dança Mayara Lima, 24, cria da comunidade do Tuiuti, em São Cristóvão, zona norte do Rio.
Tudo começou quando um vídeo de Mayara sambando à frente dos 250 ritmistas de Mestre Marcão, numa coreografia em total sincronia com as paradinhas, viralizou. Foi assim que muitos descobriram que ela não é a rainha, apenas a princesa da Paraíso do Tuiuti. No cobiçado posto da agremiação, Thay aparece em outro vídeo, sem conseguir sambar no mesmo ritmo que seus súditos. Pra completar, o enredo "Ka Ríba Tí Ye - Que nossos caminhos se abram" é uma homenagem à cultura negra, o que destoa da pele clara e dos cabelos loiros de Thay.
"Me sinto parte desse enredo. Fala de Zumbi, de Mandela, abre os caminhos. É história de luta, sabedoria e resistência negra. Com todo respeito a quem veio antes, também estou abrindo caminhos para outras meninas virem depois de mim", diz Mayara que, no ensaio técnico na Sapucaí, no domingo (20), foi ovacionada debaixo de muita chuva.
Sabrina Sato e Hugo Gloss não lhe pouparam elogios nas redes sociais. Milton Cunha a chama de "realeza favelada". A cantora Teresa Cristina vai no embalo. "Muita gente me pergunta por que Mayara não é rainha. Não sou eu que tenho que responder isso. Alguém tem dúvida? No Carnaval, o título pouco importa. O que a gente vê é uma mulher que o Rio inteiro, e em breve o Brasil, já sabe quem é", diz Teresa.
Na mesma proporção, Thay foi vaiada na avenida. Saiu aos prantos, disposta a abdicar do reinado antes do feriado de Tiradentes, quando acontecem os desfiles desse ano. "Fiquei muito mal, como se tivesse roubando o lugar de alguém. Minha família ali, vendo tudo, foi péssimo. Podia ser cruel e falar que não queria dividir espaço com mais ninguém, mas em nenhum momento pedi para ficar sozinha. Quero viver meu sonho e não abafar o de outra", diz ela, que está tendo acompanhamento psicológico para enfrentar os haters e as vaias.
Fontes d'água e ventilador empoeirado
Mayara está há 12 anos no Tuiuti, sempre foi passista. Será sua estreia como princesa da bateria — cargo pouco usual entre as escolas, justamente para se evitar briga de egos. "Meus dias estão uma loucura, é tudo novo pra mim. Estou levando o samba para além da quadra, é a minha mensagem", diz. Quem a convidou para ascender da ala de passistas ao cargo de princesa foi o presidente Renato Thor, seu sogro. O mesmo que viu em Thay uma rainha possível.
Procurada, a escola não se manifesta sobre a rivalidade que circula na internet. Mas a verdade é que a princesa foi aclamada rainha extraoficial pelos torcedores e, a rainha, acusada de comprar o posto que ocupa. O jornal Extra diz que o cargo lhe custou R$ 500 mil. Ela nega. "Nem tenho esse dinheiro na conta. Ajudo financeiramente a escola sempre que me solicitam. Não tenho noção de valores, mas não chegou a R$ 100 mil", diz a dentista.
Elas não se criticam mutuamente. Pelo contrário: contam que uma ajuda a outra. A princesa já deu aulas de samba à rainha. "Criamos uma amizade, as pessoas é que imaginam essa rivalidade. Não vou competir com ela, temos mundos diferentes. Meu objetivo é conseguir um programa na TV e viver a experiência do Carnaval. Ela não, ela vive daquilo, acredita naquele mundo", afirma Thay, esplêndida em seu bangalô na piscina do condomínio, cercada por fontes d'água.
Mayara, fugindo do calor com ajuda de um ventilador empoeirado enquanto se produz na quadra da escola, também se abstém. "Não me envolvo com rivalidade entre mulheres. Sou muito segura do que sou. A gente se fala, brinca nos ensaios, é uma energia legal. Mulher tem que erguer mulher, ter empatia pela outra. Nós duas juntas na bateria significa muito, mostra que não precisamos brigar pelo mesmo espaço".
Rotinas paralelas
Mayara acorda cedo, às 4h30 já está de pé. Às 5h20 vai malhar com um personal trainer. Volta, dá café da manhã e leva para a escola o seu filho Arthur, de 3 anos, de seu casamento com Renan Martins, diretor de barracão da Tuiuti. Até a hora do almoço, ela segue com sua nova rotina — participar de programas de TV, dar entrevistas e fazer ensaios fotográficos. Quem a acompanha é o amigo e maquiador Otacílio Alves.
Na parte da tarde, dá aulas de samba online para gente de tudo que é lugar, da França aos Estados Unidos. "As alunas falam que eu as deixo um nojo sambando, esses elogios são maravilhosos. E é tudo pela webcam", diz.
Enquanto Mayara está fazendo fotos para esta matéria, Thay, no outro canto da cidade, segue um treino leve. Acorda às 7h, toma café e vai para a academia malhar os braços. Almoça em casa com o marido, Ancelmo Magalhães, também dentista, e segue para o consultório para atender até as 17h. Depois, toma banho e volta à academia às 20h. A personal Carol Vaz a aguarda para puxar pesado nos membros inferiores. A malhação é na base do grito. "Para de frescura, tá muito mimada", berra a personal no leg press. Às 22h30, três vezes por semana, tem aulas de samba no seu condomínio com Egili Oliveira, rainha de bateria da Acadêmicos de Vigário Geral, do grupo de Acesso.
A reportagem do TAB acompanhou a aula. Egili chega acompanhada pela alemã Caroline Reucker, que registra seus passos para um documentário. Não é de elogiar a aluna. "Sei que não vai ser fácil, ela tem muita insegurança, não tem coordenação motora nos quadris. Mas rainha não pode se importar com o que estão dizendo", diz a professora.
Em seguida, entrega que Thay andou desanimada com a Sapucaí. "Ela me falou que não se importava com o carnaval do Rio, mas expliquei que a mídia está toda aqui. Não que São Paulo não tenha seu valor, mas ela precisa entender o lugar que ocupa". Thay se defende. "Sou muito querida em São Paulo. Lá sou outra pessoa, mais leve. Gosto do clima de lá, levam as coisas menos a ferro e fogo", diz ela. No Anhembi, Thay desfila como musa pela Império da Casa Verde, num enredo em homenagem ao influenciador digital Carlinhos Maia.
Enredos engajados
Reinaldo Alves, do Observatório de Carnaval, núcleo de pesquisa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), defende que a comunidade deve se sentir representada nestes cargos midiáticos. "Escola de samba é local de sociabilidade de uma comunidade, e para exercer um local de visibilidade dentro dela, é preciso ter anuência desse povo que se está representando", diz. A rixa entre rainha e princesa conseguiu abafar até os preparativos de Carnaval do inventivo Paulo Barros, que também estreia na escola. Conhecido pela inspiração a la "Disney", Paulo é aguardado por assinar pela primeira vez um enredo afro no Rio.
Até então pouco badalada, a Paraíso do Tuiuti fica nas proximidades da Quinta da Boa Vista e do Museu Nacional, destruído por um incêndio em 2018, e que serviu de residência a D. Pedro II há dois séculos. Em 2018, despertou atenção da mídia com o enredo "Meu Deus, meu Deus! Está extinta a escravidão?", em que conquistou um inédito vice-campeonato. O título escapou por um décimo.
Crítico, o desfile fez analogia entre a aprovação da reforma da previdência e a lei que libertou escravizados sem inclusão social. Foi marcado pela imagem de um vampiro com faixa presidencial (alusão a Michel Temer) e alegoria em que destaques com camisa da seleção brasileira eram marionetes de políticos (alusão à campanha ainda em curso de Jair Bolsonaro).
A galhofa com a política costuma fazer parte de seus desfiles tanto quanto a ode à cultura negra. Em 2014, ainda no Acesso, reeditou o clássico samba da Vila Isabel, "Kizomba, a festa da raça". Antes de 2018, a única vez que a escola desfilara entre as grandes foi em 2001, com "Um mouro no quilombo: Isto a história registra".
Carnaval como prévia das eleições
Nas últimas semanas, Mayara viu seu número de seguidores disparar: já são mais de 440 mil no Instagram. Thay tem 91 mil e precisou fechar seu perfil devido a enxurrada de críticas.
Mayara é católica e, Thay, kardecista. Para a princesa, o Carnaval de 2018, o do Temer vampirão, é inesquecível; a rainha estreante espera coisas boas do de 2022 para ter do que se lembrar. Mayara não tem silicone, mas ostenta duas tatuagens — uma Nossa Senhora no pulso esquerdo e uma cruz entre os seios. Thay tem 300 ml de próteses. A primeira é eleitora fiel de Lula. Thay diz que não repete seu voto em Bolsonaro.
Melhor assim: Em 2020, foi candidata pelo PSDB à prefeitura de Mesquita, um dos municípios mais pobres da Baixada Fluminense. Vinculou sua imagem à do presidente. Teve menos de 2 mil votos. Na internet, seu santinho de campanha é facilmente localizado. Nele, a candidata se definia como "direita raiz" e "conservadora".
É essa associação com a política que diz ter atravessado seu samba. "Como muitos brasileiros, acreditei na mudança. Hoje não apoio ele, sou bolsominion arrependida. Mas ainda me associam a ele", assume Thay que, antes, foi subsecretária de Saúde de Belford Roxo.
A rainha vilanizada e a princesa aclamada pelo povo também divergem quanto aos planos para além do Carnaval. Thay prevê um reinado curtíssimo. "Não pretendo continuar rainha. Quero investir no meu lado apresentadora e em franquias de bronzeamento". Já Mayara sonha com outra ascensão. "Sou feliz como princesa. Mas não vou falar que não sonho em ser rainha, é o que toda menina da comunidade quer". Em comum, por enquanto elas só têm um objetivo: fazer da Tuiuti campeã no Carnaval.
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