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Pioneiras por acidente: Celia & Celma criaram 1ª banda feminina do Brasil

Celia & Celma contabilizam mais de 50 anos de carreira  e formaram o primeiro conjunto musical feminino no início dos anos 1960 - Fernando Moraes/UOL
Celia & Celma contabilizam mais de 50 anos de carreira e formaram o primeiro conjunto musical feminino no início dos anos 1960
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Marie Declercq

Do TAB, de São Paulo

04/04/2022 04h00

"A Celia tá no lado esquerdo e eu no direito", orienta Celma Mazzei, 79, logo que a entrevista começa. Está vestindo calça jeans, blusa vermelha e maquiagem completa no rosto, dando destaque aos olhos gateados. Ao seu lado está Celia Mazzei, 79, com o mesmo estilo de maquiagem e também vestindo calça jeans e blusa vermelha, ainda que em tonalidades discretamente diferentes.
Segundo as gêmeas univitelinas, os looks iguais não foram planejados. "Não nos vestimos iguais toda hora, mas às vezes acontece sem planejar", esclarece Celia.

Ao redor das irmãs, paredes preenchidas por fotografias enquadradas, prêmios e esculturas que decoram a sala aconchegante na casa em estilo mineiro onde vivem no bairro de Pirituba, zona norte de São Paulo. Nada está empoeirado ou cheira a naftalina, espantando qualquer sensação de museu. As memórias reunidas de mais de 70 anos de carreira musical vivem junto com o presente, sem conflitos.

Celma e Celia nasceram na cidade de Ubá (MG), em uma família extensa formada pelo patriarca, um italiano da Toscana chamado Celidonio Mazzei. Aos cinco anos foram levadas pelo pai ao circo armado na cidade para cantar músicas sertanejas. Foi o primeiro cachê das gêmeas.

Depois disso, viraram atração na cidade. Eram chamadas para ser daminhas de honra de casamentos e participar de bailes, e fizeram parte da equipe de nado artístico. Os vestidos para sair, costurados pela mãe, eram iguais. Os cabelos também. As duas gostavam da vantagem que tinham por conta de serem gêmeas, e seguiram explorando isso nas décadas seguintes, tocando música sertaneja. "Mas o sertanejo raiz", esclarecem.

O verdadeiro pontapé inicial para a carreira artística, porém, aconteceu sem pretensões, quando Celia e Celma eram adolescentes. Sem querer, formaram com colegas de escola a primeira banda instrumental inteiramente feminina do Brasil no início dos anos 1960. "A gente só queria se divertir", relembra Celma.

Nos últimos três anos as irmãs estão se dedicando à produção de um documentário que conta a história do Conjunto Garotas, em que Célia tocava bateria e Celma, o contrabaixo.

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Celia & Celma contabilizam mais de 50 anos de carreira e formaram o primeiro conjunto musical feminino no início dos anos 1960
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Pioneiras por acidente

Começou no colégio Sacrè-Coeur de Marie, em uma época em que era difícil até ter um telefone, quando as irmãs convidaram colegas para formar um conjunto musical. "Não foi algo pensado", avalia Celma sobre o pioneirismo acidental. "Hoje em dia é tudo pensado, né?"

De início era Celma no contrabaixo acústico e na percussão, Celia na bateria, Teresinha na guitarra e voz, Genny no sax tenor e as pianistas Anamares e Lísis, que também se revezavam no acordeom.

O conjunto começou tocando em bailes de Ubá, se apresentando com roupas iguais — todas de calças compridas. "Era impossível tocar bateria de vestido", resume Celma. Os bailes eram longos e exigiam um vasto repertório — do sertanejo ao bolero. "Era a balada da época", explicam. Rapidamente, o conjunto foi sendo chamado para se apresentar em outros bailes da região, até começar a sair em turnês pelo Nordeste e outros cantos do país.

"Éramos muito ensaiadas"

O conjunto começou a ganhar tração, mas também sofreu problemas relacionados à época em que estava na ativa. Era o começo dos anos 1960 no interior de Minas Gerais, e a ideia de "moças de família" seguirem uma carreira musical era impensável.
Cada integrante do conjunto levava um acompanhante homens nas viagens, mas não era suficiente para abafar as expectativas que pressionavam as jovens garotas: trabalhar, casar e ter filhos.

Após uma apresentação em Juiz de Fora, em 1963, as irmãs Anamares e Lísis foram as primeiras a sair do grupo. Segundo as gêmeas, o pai das duas não gostou de ver o conjunto rodeado por homens curiosos após uma apresentação no baile da cidade, e cortou na hora a brincadeira. Para substituir as irmãs pianistas foi chamada outra colega, Loreto, que era acompanhada pelo irmão Zé Maria.

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O conjunto, já na sua segunda formação, em 1964. Da esquerda para direita: Celia, Loreto e Celma (embaixo). Genny com o saxofone e Teresinha no alto do monumento em homenagem ao compositor Ary Barroso, em Ubá
Imagem: Acervo Pessoal

Por um golpe do destino, a fatídica noite gravada em fita. Décadas mais tarde, fazendo uma limpa no acervo de fotos, as gêmeas encontraram a gravação, a única, do conjunto tocando no baile.

"Éramos muito ensaiadas. Tudo no tempo certo, as viradas, a entrada de voz", descreve Celia, relembrando sua aptidão com as baquetas.

De Ubá para o mundo

Enquanto as amigas saíram da banda para seguir outros rumos, Celma e Celia persistiram na música. Viver de arte parecia algo natural para as irmãs, que cresceram rodeadas de arte. O pai, fotógrafo, passava o dia ouvindo música. Os irmãos tocavam instrumentos. Só a mãe, de início, torceu o nariz para as filhas. Depois cedeu.

Em meados da década de 1960, as gêmeas e o músico Zé Maria, o irmão de Loreto que as acompanhava nas turnês, se mudaram pro Rio de Janeiro.

O conjunto não durou muito tempo depois disso, mas algumas apresentações foram memoráveis. Uma delas aconteceu no Olímpico Clube, em Copacabana.

Celia estava no palco, tocando bateria, e notou que três homens a assistiam em pé, encostados em uma parede. Pareciam vidrados na apresentação. Ela já estava acostumada a esse tipo de atenção, pois não existiam outras mulheres bateristas no circuito carioca da época. Estava tudo bem até que, em uma virada da música, os três caíram na risada.

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As irmãs de 79 anos receberam o TAB na casa onde vivem em Pirituba, zona norte de São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

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Celia e Celma exibem biombo com fotos tiradas nos anos 1980
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Célia ficou indignada, e logo que o show acabou foi tirar satisfações com os três, de baquetas na mão. Foi quando percebeu que os três homens eram Milton Banana, Edson Machado e Victor Manga — exímios bateristas brasileiros.

"Perguntei, brava, se estavam rindo de mim. Logo responderam que não riam de mim, mas sim pela surpresa. 'Estávamos te apreciando', eles responderam", conta a artista, ostentando a memória afiada e o talento para prender o ouvindo em suas histórias.

No Rio, a carreira das gêmeas engrenou. Participaram do programa de Moacir Franco, trabalharam com Carlos Imperial, gravaram inúmeros álbuns como intérpretes, interpretaram a dupla Luminada e Luminosa na novela "Ana Raio & Zé Trovão" da TV Manchete e seguiram a vida vivendo de arte.

Três anos atrás, as irmãs decidiram juntar o acervo que guardam com cuidado em casa e investir na produção de um documentário sobre o Conjunto Garotas. Já entrevistaram todas as colegas e pessoas que assistiram às apresentações da banda. "Falta agora investimento para terminar", afirmam.

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Nascidas em Ubá (MG), as irmãs cantaram pela primeira vez aos 5 anos em um circo da cidade
Imagem: Fernando Moraes/UOL

"Temos muita garra"

Na casa espaçosa e aconchegante onde moram as irmãs vivem também as memórias do casamento de Celia com José Antônio Severo, notório jornalista e historiador gaúcho que morreu em 24 de setembro de 2021. "Ele nunca parou de trabalhar. Estava entregando um artigo quando foi chamado para o centro cirúrgico, de onde não voltou mais", relembra Celia, ainda se acostumando com o luto e a viuvez.

Severo foi um grande apoiador da carreira da esposa. "Ele sempre me incentivou, nunca reclamou de nada", afirma. Ao seu lado, Celma conta que não teve tanta sorte. "Tive um noivo que deu o ultimato 'é eu ou a sua carreira", relembra, deixando subentendida sua decisão.

A carreira é longa, e a energia das irmãs parece inesgotável. "Temos muita garra", resumem. Ambas são energéticas e possuem uma dinâmica peculiar, típica de gêmeos, que transparece durante a entrevista. Às vezes uma complementa a fala da outra, ou fazem entre si um fact-checking ao vivo de datas e nomes.

O cheiro de café saindo da cozinha mineira da casa é a deixa para terminar a entrevista, mesmo que a fonte de histórias das gêmeas seja infinita. "Se a gente for contar a nossa história inteira, vamos ficar dias aqui", diz Celma.