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Medo e naufrágio na 1ª travessia Lisboa-Rio, a bordo de três hidroaviões

Santa Cruz no litoral do Brasil: três hidroaviões para completar a travessia épica - Museu da Marinha/Portugal
Santa Cruz no litoral do Brasil: três hidroaviões para completar a travessia épica Imagem: Museu da Marinha/Portugal

Adriana Negreiros

Colaboração para o TAB, de Lisboa

30/03/2022 10h40

Há exatos cem anos, no dia 30 de março de 1922, dois aviadores portugueses iniciaram uma viagem histórica: a primeira travessia aérea sobre o Atlântico Sul. Pouco antes das 7h da manhã de uma quinta-feira primaveril em Lisboa, Artur de Sacadura Cabral, o piloto, e Gago Coutinho, o navegador, posicionaram-se lado a lado na minúscula cabine do hidroavião Lusitânia.

Das águas do rio Tejo, com a Torre de Belém ao fundo, partiram rumo ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil. A viagem havia sido planejada para durar uma semana e ser feita em uma única aeronave. Mas foram necessários dois meses e meio, três hidroaviões e um naufrágio em meio aos tubarões para que a dupla, finalmente, completasse a travessia.

A viagem de Cabral e Coutinho, além de representar pioneirismo tecnológico (com uso inovador de recursos de navegação astronômica), tinha caráter diplomático e comemorativo. A ideia era reafirmar os laços de cooperação e amizade entre as antigas colônia e metrópole no centenário da independência do Brasil. Na população portuguesa, a despeito do incentivo do governo à empreitada, o entusiasmo com a aventura era tímido: naquele dia 30 de março de 1922, pouco mais de cem curiosos testemunharam o momento em que o Lusitânia sumiu no céu lisboeta.

O hidroavião Lusitânia - Museu de Marinha/Portugal - Museu de Marinha/Portugal
O hidroavião Lusitânia
Imagem: Museu de Marinha/Portugal

No Brasil, a situação era inversa: embora o governo não tivesse dado o apoio esperado por Cabral e Coutinho ao projeto, os dois foram recebidos em terra por multidões em êxtase, como heróis e galãs, embora não tivessem aparência de tais. Aos 41 anos feitos durante a viagem, Cabral ostentava farto bigode, testa proeminente e um certo ar taciturno. Coutinho, por sua vez, aparentava ter mais do que os 53 anos registrados nos documentos.

No Recife, uma das escalas da viagem, cerca de dez mil pessoas acompanharam o cortejo dos aviadores pelas ruas. No Rio de Janeiro, conforme relataram os jornais da época, um tímido Cabral e um reservado Coutinho precisaram lidar com abraços e beijos entusiasmados de mulheres em um dos vários eventos públicos nos quais foram homenageados.

Hoje, é o contrário. Em Portugal, há uma série de eventos programados para comemorar o centenário da viagem. Entre eles, lançamentos de livros sobre o episódio e uma travessia de dez veleiros entre Lisboa e o Rio, prevista para iniciar-se em 3 de abril. No Museu da Marinha de Portugal, na capital do país, o hidroavião Santa Cruz — que chegou ao Rio de Janeiro — é a grande estrela do pavilhão das Galeotas.

Hidroavião Santa Cruz exposto no Museu de Marinha, em Lisboa - Museu da Marinha/Portugal - Museu da Marinha/Portugal
Hidroavião Santa Cruz exposto no Museu de Marinha, em Lisboa
Imagem: Museu da Marinha/Portugal

No jardim da Torre de Belém, um dos principais pontos turísticos de Lisboa, uma réplica do hidroavião Lusitânia — com o qual os aviadores deixaram o país, e que foi parar no fundo do mar — ajuda a manter viva a memória da aventura.

'Cheio de óleo'

A despeito do sobrenome em comum, Artur Sacadura Cabral e Pedro Álvares Cabral, o navegador português que chegou à costa do Brasil em 1500, não têm parentesco comprovado. O passado colonizador, no entanto, une as duas figuras. Sacadura atuou na demarcação das fronteiras das colônias portuguesas na África, ocasião em que conheceu Gago Coutinho, também este a serviço da antiga metrópole lusitana.

O entrosamento entre os dois seria fundamental para o êxito da viagem, cheia de contratempos que fariam qualquer relacionamento mais frágil desmoronar.

Poucas horas após deixarem Lisboa, os dois estavam cobertos pelo líquido escuro que escapava da descarga do motor. "Todo eu estou cheio de óleo, fazendo esforços desesperados para limpar os olhos e ver alguma coisa", escreveria Cabral no relatório da viagem. Dali a pouco, quando avistassem a primeira parada da travessia — as ilhas Canárias, a noroeste da costa africana, pertencentes à Espanha — comemorariam comendo bolachas e "paus de chocolate". "A alegria dá-nos apetite", registraria o piloto.

Na bagagem de bordo, frugal o bastante para não pesar na aeronave, os homens arrumaram espaço para uma garrafa de vinho do Porto da produtora Ramos Pinto — uma compensação para "casos extremos", como escreveu Cabral em seus diários.

Sacadura Cabral e Gago Coutinho - Arquivo da Marinha do Brasil - Arquivo da Marinha do Brasil
Sacadura Cabral e Gago Coutinho
Imagem: Arquivo da Marinha do Brasil

O mar agitado fez com que o primeiro pouso na água fosse mais difícil do que o imaginado. O hidroavião sofreu avarias. Os estragos, somados às más condições meteorológicas, obrigaram a dupla a permanecer nas ilhas Canárias até o dia 5 de abril. Somente naquele dia, os dois voaram na direção da ilha de São Vicente, em Cabo Verde, então colônia portuguesa na África. Cabral e Coutinho permaneceram na escala 12 dias — quase o dobro do tempo estimado para a viagem completa — na escala. A demora, mais uma vez, foi motivada por desgastes no hidroavião, bem como por surpresas no funcionamento do motor.

Ao chegar a São Vicente, Sacadura apavorara-se ao constatar que o consumo de gasolina fora muito superior ao previsto. Daquele jeito, teriam dificuldades para vencer a seguinte (e mais difícil) etapa da viagem, o trecho entre Cabo Verde e Fernando de Noronha. Apenas condições extraordinárias de vento impediriam que o combustível acabasse no meio do caminho, lançando-os ao mar.

Lusitânia: primeiro hidroavião da travessia foi para o fundo do mar - Museu da Marinha/Portugal - Museu da Marinha/Portugal
Lusitânia: primeiro hidroavião da travessia foi para o fundo do mar
Imagem: Museu da Marinha/Portugal

O primeiro naufrágio

Enquanto faziam reparações no Lusitânia, além de estudos e testes para o prosseguimento da viagem, os aviadores aproveitavam a boa acolhida dos cabo-verdianos. Como informavam os jornais brasileiros, Sacadura e Coutinho participavam de festas e convescotes oferecidos pelas autoridades locais. Ao tomar conhecimento das notícias, os aviadores — tidos como disciplinados e silenciosos, sendo Cabral descrito como capaz de passar dias inteiros sem dizer uma única palavra — teriam ficado aborrecidos.

De acordo com o jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, eles não aprovavam o enfoque da cobertura de alguns jornalistas, que consideravam a travessia mero evento esportivo. Aquilo era coisa séria — tanto que arriscavam a vida em nome do projeto.

No dia 17 de abril, os aviadores deixaram Cabo Verde com destino ao arquipélago de São Pedro e São Paulo, no litoral de Pernambuco — local visitado pelo naturalista Charles Darwin 90 anos antes, durante expedição científica ao redor do mundo.

Aviadores portugueses sobrevoam o arquipélago de São Pedro e São Paulo, no litoral pernambucano - Museu da Marinha/Portugal - Museu da Marinha/Portugal
Aviadores portugueses sobrevoam o arquipélago de São Pedro e São Paulo, no litoral pernambucano
Imagem: Museu da Marinha/Portugal

A ideia original, de seguir direto para Fernando de Noronha, fora descartada devido ao gasto excessivo de gasolina. Ainda assim, no meio da viagem, passaram por um sufoco, como anotaria Cabral. "O consumo de gasolina mantém-se em pelo menos 20 galões por hora. Volto a discutir com o comandante Coutinho a nossa situação, que me parece bastante grave".

A comunicação entre os aviadores ocorria por meio de bilhetes, pois o barulho que se fazia na cabine impedia-os de conseguir ouvir as próprias vozes. Durante todo o trajeto, Cabral e Coutinho permaneceram na incerteza se o combustível duraria até o fim da viagem. Durou o suficiente para que amarassem às 11h21 do dia 18 de abril, de maneira brusca, quase na vertical — ao colidir contra uma onda, um dos flutuadores partiu-se.

O Lusitânia foi ao encontro das profundezas do oceano. "Salvaram-se do naufrágio os principais instrumentos e todos os livros, incluindo o diário de navegação, pelo qual se concluía que tínhamos voado 908 milhas, em 11 horas e 20 minutos, à velocidade média de 80 milhas por hora", registrou o navegador Gago Coutinho.

Gago Coutinho e Sacadura Cabral - Museu de Marinha/Portugal - Museu de Marinha/Portugal
Sacadura Cabral e Gago Coutinho
Imagem: Museu de Marinha/Portugal

O segundo naufrágio

Encerrava-se ali a viagem do Lusitânia, mas não a dos aviadores. Do local do naufrágio, os aviadores foram levados por um cruzador português até a ilha de Fernando de Noronha, onde permaneceram à espera de um novo hidroavião. No dia 11 de maio, já com o substituto do Lusitânia, fizeram um breve voo de teste até São Pedro e São Paulo. No retorno, o motor do aparelho parou de funcionar, obrigando os portugueses a uma amaragem forçada, no meio do nada, distantes cerca de 280 quilômetros da costa de Fernando de Noronha.

Como não retornaram à ilha à hora prevista, Sacadura Cabral e Gago Coutinho deixaram preocupados os portugueses e brasileiros que acompanhavam a travessia. Nos jornais do dia 11 de maio, o sumiço dos dois -- na altura, já homenageados e retratados heroicamente nos melhores espetáculos do teatro de revista do Rio de Janeiro -- fazia com que se pensasse no pior. Um boletim da agência de notícias Associated Press parecia sugerir uma tragédia: "Não há notícias dos aviadores".

Enquanto nos dois países especulava-se a respeito de um triste fim para a viagem épica sobre o Atlântico Sul, Cabral e Coutinho permaneciam à deriva, sobre o novo hidroavião, lutando para não se distanciar das rotas dos navios.

Nesse momento, segundo relata o engenheiro eletrotécnico João Moura Ferreira, estavam "cercados por tubarões". Entusiasta dos "feitos portugueses" e da travessia sobre o Atlântico Sul em particular, Ferreira é presidente da Lusitânia 100, uma associação criada há dez anos para divulgar a viagem de Sacadura Cabral e Gago Coutinho. "Na época, não havia quem se atrevesse a fazer nada parecido", afirma Ferreira, que estudou a viagem na infância. Hoje, a aventura não consta mais dos livros escolares.

Sacadura e Coutinho sobrevoando a ilha de Fernando de Noronha - Museu da Marinha/Portugal - Museu da Marinha/Portugal
Sacadura e Coutinho sobrevoando a ilha de Fernando de Noronha
Imagem: Museu da Marinha/Portugal

Português ou brasileiro?

Seis horas após a amaragem forçada, Sacadura Cabral e Gago Coutinho foram resgatados por um navio inglês que navegava nas proximidades. Embora saudáveis, estavam encharcados e famintos. Depois de alimentados -- e com roupas secas oferecidas pela tripulação do navio --, foram levados de volta para Fernando de Noronha, onde permaneceram até 5 de junho, quando decolaram a bordo de um terceiro hidroavião providenciado pelo governo português, o Santa Cruz, rumo ao Recife.

Na capital pernambucana, a chegada da dupla fez com que os sinos das igrejas tocassem, os motoristas dos automóveis buzinassem sem parar e o comércio fechasse as portas. Nas copas das árvores distribuídas ao longo das avenidas por onde os dois desfilaram, curiosos equilibravam-se em galhos para tentar obter um melhor ângulo de visão da dupla.

Em Salvador, para onde voaram na sequência, a situação repetiu-se. Emocionado com a receptividade calorosa, o piloto Sacadura Cabral dirigiu-se à multidão: "Já nem sei se sou português ou brasileiro".

A travessia pioneira e épica sobre o Atlântico Sul seria finalmente concluída no dia 17 de junho de 1922, quando os pilotos amararam o hidroavião Santa Cruz nas águas da Baía da Guanabara, na ilha das Enxadas, em frente à escola de aviação naval. Fazia frio e chovia na cidade, mas uma multidão acorreu às ruas para ver os portugueses.

Recepção apoteótica na chegada ao Rio de Janeiro: aviadores e heróis - Museu da Marinha/Portugal - Museu da Marinha/Portugal
Recepção apoteótica na chegada ao Rio de Janeiro: aviadores e heróis
Imagem: Museu da Marinha/Portugal
Cariocas enchem as ruas do Rio de Janeiro para receber a dupla de aviadores portugueses - Museu de Marinha/Portugal - Museu de Marinha/Portugal
Cariocas enchem as ruas do Rio de Janeiro para receber a dupla de aviadores portugueses
Imagem: Museu de Marinha/Portugal

Após 62 horas e 26 minutos de voo, no intervalo de 69 dias, Sacadura Cabral e Gago Coutinho fizeram história ao cruzar o oceano Atlântico em um hidroavião, com uso exclusivo da navegação astronômica e sem auxílio externo.

De volta a Portugal, foram recebidos com honras e distinções pelo governo português. Em 1954, Coutinho fez o voo experimental da TAP Linhas Aéreas entre Lisboa e Rio de Janeiro -- a linha regular entre as duas cidades, o chamado "Voo da Amizade", seria inaugurada em 1961. Quatro anos depois, seria promovido a almirante, a mais alta patente de oficial general da Marinha portuguesa. Faleceu um ano depois, aos 90 anos, sem deixar filhos.

Sacadura Cabral não teria carreira tão próspera quanto o colega de aventura. Elaborou projetos de novas travessias, que não foram realizadas, e morreu dois anos depois de cruzar o Atlântico, de forma trágica: o avião que pilotava caiu sobre as águas do Mar do Norte. O corpo do piloto nunca foi encontrado. Como Coutinho, também não deixou descendentes diretos.

Santa Cruz flutua sobre as águas da baía da Guanabara - Museu de Marinha/Portugal - Museu de Marinha/Portugal
Santa Cruz flutua sobre as águas da baía da Guanabara
Imagem: Museu de Marinha/Portugal