Fisiculturista não se importa em viver menos para vencer Mr. Olympia
Lucas de Souza Lima, 24, pega os halteres da ponta do suporte, os mais pesados. Ele apoia o corpanzil no banco de supino e começa a fazer força. As costas e o peitoral incham, expondo o contorno dos músculos e tendões. As veias saltadas parecem o mapa hidrográfico da bacia amazônica. As costelas podem ser contadas de longe. Lucas puxando ferro é um atlas de anatomia.
Ele vai para o aparelho de tríceps e as costas ficam em evidência. É uma parede de músculos. De tão grande, a impressão é de que a distância entre a orelha e o ombro é o dobro da de uma pessoa comum.
Na ficha de treino lê-se que o exercício será repetido até o músculo falhar. Lucas é tão forte que, mesmo com quase todo o peso da máquina, isso demora a acontecer. Seu rosto fica incandescente de tão vermelho. É quando ele reencontra a sensação familiar de músculo queimando. A dor é bem-vinda. O sobe e desce só para quando os tríceps estão débeis.
Karina Silva do Nascimento, 25, não deixa o aparelho descansar. A mulher de Lucas também vai ao limite das forças. O sinal de que a falha do tríceps está próxima são os gemidos e os braços tremendo. À frente dela, Lucas olha com cara de paisagem.
No código do casal fisiculturista, desistir não é uma opção. Ela termina exaurida. Mexe os dedos como quem precisa se certificar de que ainda mantém o controle motor do corpo. Uma dupla de alunos da academia de bairro de Suzano (SP) acompanhava com rabo de olho. Eles acenam com a cabeça, reconhecendo a capacidade do casal de puxar ferro.
O que a dupla não consegue ver é que, naquele momento, Lucas e Karina estão renovando os votos matrimoniais. Aos 18 anos, Karina se impressionou com o menino fortão de 17 que apareceu na foto de um amigo do Facebook. Rolou stalkeada e pedido de amizade.
Lucas aceitou e os dois conversaram o dia todo. No final da tarde, já tinham virado crushes e ele a convidou para o primeiro encontro: irem treinar juntos. Os dois nunca mais se separaram.
No relacionamento deles, o fisiculturismo é exercício de amor e onde está abrigado o projeto de vida do casal: tornar Lucas campeão do Mr. Olympia, o principal título de fisiculturismo do mundo. Para isso, ele precisa passar pelo Arnold Sports Festival, evento em São Paulo que reunirá 85 mil aficionados por academia entre sexta-feira e domingo (29 de abril a 1º de maio).
Últimas forças
O treino acima aconteceu quarta-feira (27) e foi o último antes da participação de Lucas no Arnold. Pagou R$ 1.600 para concorrer. O campeonato também é a linha de chegada das complicadas 13 semanas que o antecedem.
Nesse período, chamado de pré-contest, Lucas se submeteu a uma rotina espartana. Levantou às 6h da manhã para fazer 50 minutos de exercício aeróbico em jejum. Na sequência, mandou fotos para o treinador nas poses que vai apresentar no Arnold.
O técnico é quem determina quantos litros de água, carboidrato, proteína e sal serão ingeridos no período. A mesa da cozinha do casal tem uma balança e nada vai para dentro do corpo sem ser pesado. Após a refeição, ele toma um remédio para controlar gases.
Dependendo da fase do treinamento, o fisiculturista chega a comer quatro quilos de comida e a beber 12 litros de água por dia. O nível de precisão é tão grande que o treinador fez os cálculos de minerais para o organismo de Lucas com base nas características físico-químicas de uma marca de água. Ele não pode tomar água de outra marca ou do filtro.
Além do limite
A rotina draconiana da última semana tem suas consequências. Ele sentiu náuseas depois dos treinamentos e dificuldade para dormir. O humor foi alterado e Karina se segurava ao receber as patadas do marido. Lucas sabe que se torna um cara difícil e conta que já chegou a socar a parede para extravasar a raiva.
Perguntado se não tem medo de colocar a saúde em risco, ele responde que está preparado para tudo para ser o Mr. Olympia. Até morrer mais cedo. "O esporte passa do ponto do saudável."
O título representa muito dinheiro e fama, mas o principal motivo não é financeiro. Karina conta que, há quatro anos, Lucas foi derrubar uma parede para construir o quarto da filha do casal, Alice, de 3 anos. Na primeira marretada, machucou as costas. Curado depois de fazer fisioterapia, deixou de treinar. Os dois anos em que o marido ficou encostado foram difíceis para ela.
Ela vê o esporte como uma provação. Desistir revela uma pessoa sem força de vontade, compromisso e caráter. O pacto que os dois fizeram na academia, desde o primeiro encontro, prevê todos esses requisitos. Fisiculturismo é a prática diária desta lista. Quando Lucas parou, deixou de ser o homem por quem Karina se apaixonou.
Sete dias de furor
A semana que antecede o campeonato é chamada de depredação. Karina achava que era frescura até fazer sua estreia, em 2021. Chamada de "saco de osso" e "craquenta" no ensino médio, ela começou no fisiculturismo aos 15 anos para "ganhar um pouco de carne".
Nunca mais parou e virou atleta da categoria biquíni. Karina não esconde que a opção envolve "muita vaidade". "Se falar que não é, está mentindo. A gente se sente um mulherão. Se olha no espelho e fala: 'Nossa, tô muito foda'."
Karina nasceu em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, e enfrentou problemas logo que entrou na adolescência. Saiu de casa aos 18 anos e tatuou nas costas a frase "livrai-me do mal", um trecho do Pai-Nosso. Ela não fala com os pais há dois anos.
Lucas é muito chegado à família e Anderson, o irmão mais novo, tem adoração por ele. Nascido e criado em Suzano, pouco saía de casa porque a mãe temia que fosse aliciado pelo tráfico. "O medo dela era que eu virasse um noia ladrão. Aqui tem uma galera bem puxada que gosta de umas paradas erradas."
Investindo milhões em músculos
Os amigos da escola de Lucas combinaram de se matricular na academia. O garoto de 13 anos vendeu uma máquina de lavar quebrada para pagar a inscrição. Hoje ele é fisiculturista em tempo integral.
Karina concilia os treinos com o trabalho de auxiliar de enfermagem. Funcionária de uma empresa de homecare, cuida de uma mulher acamada. Mas os planos do casal incluem uma mudança na carreira dela.
O posto a ser assumido é o de empresária do marido. Karina já dá as orientações de qual conteúdo produzir para as redes sociais, acompanha os treinos e faz contatos com os patrocinadores. O trato do casal prevê que Lucas se concentre em treinar e comer.
Manter a engrenagem demanda muito dinheiro. Cada uma das 13 semanas finais de preparação para o Arnold custou R$ 1 mil em alimentação. Nesse período, a conta de manipuladosbeira os R$ 10 mil.
Mais medo de lesão que da morte
O que tira o sono de Lucas é romper um músculo. Competidor da categoria classic physique que é, ele busca a perfeição. O fisiculturista precisa ter o corpo em X — costas enormes, cintura fina e alargamento nas pernas. Ter definição muscular e simetria também é fundamental.
Quando sobe no palco, Lucas repete poses ensaiadas para ressaltar os contornos do corpo. O primeiro passo é executar o que se chama de "vácuo" — inspirar muito ar, encolher o abdômen e inflar o peito. A ideia é que cada pose mostre simetria e definição. Mas, com uma lesão grave, o homem que acredita ter genética de campeão não tem chance de cumprir os dois requisitos. As chances de ser Mr. Olympia acabariam para sempre.
Na sexta-feira (29), primeiro dia das competições, Lucas sonhava fazer sua última participação como amador. Levando o título, ele teria direito à carteirinha profissional. O fisiculturista não lesionou nada até ontem, mas sofreu um revés. Lucas teve problemas estomacais e concorreu como limitações no físico.
Karina acredita que houve problemas em alguma substância manipulada. O marido ficou tão frustrado que não quis falar do assunto naquele dia. Ele terminou sem o título.
O sonho de ser Mr. Olympia vai exigir ainda mais esforço. Lucas vai ter que por em prática o discurso de que a desistência não é uma opção.
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