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'Sou corajoso': Luís Ricardo foi filho da Monga e deu soco em Bozo surtado

Filho da "mulher gorila" do circo, Luís Ricardo fez carreira no SBT e, na pandemia, substituiu quase toda a família de Silvio Santos no ar - Arte/UOL
Filho da 'mulher gorila' do circo, Luís Ricardo fez carreira no SBT e, na pandemia, substituiu quase toda a família de Silvio Santos no ar Imagem: Arte/UOL

Do TAB, em Osasco (SP)

07/05/2022 04h00

Quem vê Luís Ricardo, 59, sorteando a Tele Sena mal pode imaginar a vida cheia de peripécias por trás do terno alinhado e do cabelo engomado. Em parte de sua infância, ele foi criado pela avó, porque sua mãe foi a primeira Monga do país, excursionando como "a mulher gorila". Aos 16 anos, ele morava em um trailer de circo e pegava ônibus de madrugada para chegar antes das 7h, horário que começava a transmissão do Bozo.

Com 19 anos, foi escolhido como intérprete titular do palhaço televisivo e virou o brasileiro mais longevo no papel (nove anos). O sucesso do palhaço era tão grande que Luís Ricardo chegou a ficar ao vivo nove horas por dia. Na época, o SBT de Silvio Santos foi apelidado de "Sistema Bozo de Televisão". Hoje, de tanto que entrou na cultura pop do país, o personagem é até apelido de ex-presidente.

Após ficar com calo na garganta em 1983 por excesso de trabalho e de maquiagem, Luís Ricardo recebeu a incumbência de selecionar seus substitutos. Um dos escolhidos foi Arlindo Barreto, ex-ator de pornochanchadas, que depois ganhou notoriedade por confessar publicamente que enquanto vivia o palhaço viciou-se em cocaína, inspirando o filme "Bingo: o Rei das Manhãs" (2017).

luis ricardo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Luís Ricardo e sua mãe, Marly, se apresentando no circo Real Miami, que era da família
Imagem: Arquivo pessoal

Luís Ricardo comandava a atração matutina, e Arlindo, a vespertina. Um dia, os dois, fantasiados, se cruzaram em uma escada dos bastidores da antiga sede do canal na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo. Arlindo começou criticando e logo passou a xingar o companheiro. Luís ia em direção ao camarim para tirar a maquiagem, e Arlindo o seguiu, disparando palavrões. Luís se irritou e deu um soco. Arlindo tombou para trás e, na queda, quebrou uma parede divisória.

Na sequência, Luís foi até a sala da vice-presidência, pediu demissão para Luciano Callegari e foi embora. Dois dias depois, o executivo pediu para ele voltar. "As maquiadoras contaram a história toda e as provocações. No final, foi ele quem levou a culpa e ficou suspenso por 40 dias, mas quem se ferrou fui eu: tive que trabalhar dobrado. Conto a história, mas prefiro nem citar o nome dele", conta.

A vida é um picadeiro

Luís Ricardo é a quarta geração circense de sua família no Brasil. "Fiz de tudo, só não fui trapezista", revela. Com chicote na mão, ele guiava leões por pedestais e rodas em chama — uma das aberturas do programa de TV mostrava uma cena dele vestido de Bozo domando os felinos.

Sua bisavó, a catalã Mercedes Corominas, ganhou reputação como "a rainha dos ares" por fazer manobras em um trapézio acoplado em um balão. O jornal "La Voz de Galicia" noticiou em 3 de outubro de 1909 que marinheiros salvaram a intrépida mulher quando o artefato caiu no mar diante de Vigo (Espanha). Em 1911, ela e o marido, o português Francisco Monteiro, migraram para o Rio, onde ganharam a vida fazendo essas demonstrações aéreas.

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Luís Ricardo posa diante de caminhão que levava estrutura do circo Aquarius, onde sua família trabalhou
Imagem: Arquivo pessoal

O próximo parente a fazer grande sucesso foi seu tio Romeu Del Duque, o criador da atração Monga. O cachê milionário no programa de Flávio Cavalcanti, na extinta TV Tupi, fez Romeu lembrar de um brinquedo de ilusionismo que transformava uma boneca em macaco. Era 1969, e ele decidiu montar um dispositivo suficientemente grande para que entrasse sua irmã Marly, a mãe de Luís Ricardo. O truque de luzes, vidros e reflexos arrebatou o público e a audiência.

Com o prêmio, ele bancou a construção da atração que fazia multidões correrem por circos e feiras pelo Brasil todo. Até que, em 1974, a Monga foi convidada para a festa junina que inaugurou o Playcenter, à época o maior parque de diversões da América Latina. Tamanho foi o êxito que a mulher gorila virou inquilina no local por 15 anos, entrando no imaginário de mais de uma geração.

Macaca com auditório

"Quando tinha uns oito anos, eu comecei a participar também do número. Ficava bem na frente do palco e começava a gritar e correr quando minha mãe virava macaco. Aquele pavor contagiava as pessoas", lembra.

Marly Monteiro, hoje com 75 anos, diz que dava risada com os tropeções da plateia, mas foi se cansando do papel, apesar de só precisar ficar de pé atrás da jaula, afinal, era o integrante dentro da fantasia peluda que corria atrás dos pagantes. Mas por dia aconteciam dezenas de sessões, nos mais variados climas, e ela tinha que vestir sempre de biquíni de lantejoulas.

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O apresentador Luís Ricardo posa nos bastidores do sorteio da Tele Sena ao lado de ajudantes de palco
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Naqueles tempos, só vedetes ou mulheres que trabalhavam em circo topavam ficar seminuas diante do "honorável público". Hoje em dia, o número da Monga é popular ainda em parques do interior do país, e não é difícil encontrar uma jovem para a função — o Beto Carrero World, por exemplo, tem um estande com a metamorfose.

Esse truque de ilusão de ótica existe há pelo menos 150 anos, e o cientista inglês John Henry Pepper (1821-1900) foi o maior divulgador, com um dispositivo inicial que transformava um lorde em fantasma. Aclimatado ao Brasil, a apresentação aterrorizante fez sucesso com uma beldade feminina se transformando em fera violenta.

Nariz de pipoca

Seus primos ainda trabalham em circo, mas Luís Ricardo deu uma guinada na sua família quando começou a aparecer diante das câmeras. "Meu pai era contra porque já tinha trabalhado na TV Record e na Globo e dizia que lá era muita droga e putaria para um adolescente frequentar. Foi minha mãe que liberou que trabalhasse na TV quando prometi que ia direto dos estúdios para casa", recorda o apresentador.

Último parceiro do icônico Piolin, Franco Monteiro, hoje com 82 anos, deu vida ao palhaço Xuxu, que trabalhou também com Carequinha e Arrelia e esteve no elenco de programas infantis dos anos 1970 como Zás Trás e Vila Sésamo. Franco teve também vários circos. Durante uma temporada no bairro paulistano de Santo Amaro, ele conheceu Marly, casaram e tiveram um único filho, que logo aos oito anos já ajudava vendendo algodão doce na plateia.

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Luís Ricardo comanda o Jogo da Memória, um dos quadros mais populares do programa do Bozo nos anos 1980
Imagem: Arquivo pessoal

Luís Ricardo foi descoberto por Valentino Guzzo, produtor e comediante que incorporava a Vovó Mafalda no programa do SBT. Aproveitando a fama televisiva, Guzzo se apresentava em vários circos na periferia paulistana, como o Real Miami, de propriedade da família Monteiro. E lá testemunhou a versatilidade do garoto, que atuava de locutor até equilibrista de pratos.

No programa do Bozo, Luís Ricardo começou fazendo números circenses quando o Bozo era interpretado pelo gaúcho Wanderley Tribeck, mais conhecido como Wandeko Pipoka. Em 1982, porém, Silvio Santos decidiu que o programa se basearia em jogos com participação dos telespectadores por telefone. O Bozo sairia do palco e sentaria em uma banqueta para atender as ligações da criançada. Wandeco foi contra e saiu do ar. O espaço estava aberto para o novato ser chamado.

Bozo, vai tomar no ...

Na pandemia, Luís Ricardo substituiu no ar quase toda a família Abravanel, apresentando cinco programas, todos de sorteios ou jogos. "Não podem dizer que não fui corajoso", brinca.

Era o mesmo destemor necessário para atender telefonemas de gente imatura quando comandava competições como Jogo da Memória, Batalha Naval e Bozo Corrida — um brinquedo de cavalinhos com pista de 40 cm que Silvio comprou nos EUA e que ajudou o programa chegar a 45 pontos no Ibope, derrubando a programação feminina nas manhãs da TV Globo e trazendo Xuxa da TV Manchete para enfrentar a franquia circense dos EUA.

A maioria dos pimpolhos ligava atrás de um prêmio, mas havia quem trocasse uma bicicleta nova por uma ofensa televisionada. "Alô, amiguinho" precedia um silêncio. "É o Bozo?" se ouvia em tom inseguro do outro lado da linha. O entusiasmo ensaiado do "sim, amiguinho!" era logo correspondido com um "Vai para p... que te pariu". "Eu logo emendava: 'O que, amiguinho, uma ponte partiu?' Já tinha preparado algumas piadas porque era palavrão toda hora", lembra o apresentador.

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No camarim, Luís Ricardo é abraçado por Liminha, ajudante de palco que trouxe um nariz de palhaço para ele
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Sempre negando que era o Bozo, Luís Ricardo foi ainda coadjuvante no último filme de Mazzaropi, "O Jeca e a Égua Milagrosa". E tentou a vida de cantor, gravando LP com temas românticos da novela "Sombras do Passado" (1983), a primeira do SBT a obter boa audiência, e o jingle do desenho "Duck Tales". "O Silvio Santos chegou pra mim e perguntou: 'Você quer ser apresentador ou cantor? Muita gente canta, mas apresentador mesmo há poucos.' Ali, ele me sinalizou o caminho", afirma.

Luís Ricardo foi jurado do Show de Calouros até 2009, quando passou a fazer os anúncios dos produtos Jequiti e os sorteios do Baú e Tele Sena. Adotou o paletó completo como fantasia e alguns cacoetes do patrão. "São 40 anos de SBT. Não tem como não seguir a linha dele. Eu até queria rejuvenescer o figurino, mas o terno, querendo ou não, dá mais credibilidade."

luis ricardo - BBC News/Divulgação - BBC News/Divulgação
A atração Monga esteve no Playcenter por duas décadas e agora faz parte de vários parques de diversão
Imagem: BBC News/Divulgação