'Esquerdomachos' e sudestinos: o humor cotidiano de Ademara Barros
O TikTok não é só um dos aplicativos que mais cresceu nos últimos anos — a ponto de o presidente Donald Trump querer barrá-lo nos EUA — mas também se tornou uma plataforma onde personalidades jovens têm despontado, criando memes e pautando a conversa nas redes. Afinal, o que seria do brasileiro trancado em casa por causa da quarentena sem o fenômeno "ame-o ou deixe-o" de Mário Jr, o sedutor do TikTok?
O fenômeno da vez é Ademara Barros, de 24 anos, jornalista nascida em Igarassu (PE) e usuária da plataforma que passou a fazer sucesso no TikTok de forma bem descontraída, postando vídeos curtos sobre o vocabulário pernambucano e tirando sarro de situações cotidianas. Seu sucesso, inclusive, começou após páginas de humor de Pernambuco compartilharem seus vídeos. "Pernambucano é muito bairrista e muito orgulhoso, porque é rico culturalmente, então ele venera a cultura própria. Por causa disso, meus vídeos sobre Pernambuco foram compartilhados por páginas bairristas com muitos seguidores, como a Brega Bregoso e a Recife Ordinário", conta ela, que também é atriz.
Assim como Kaique Brito, Laura Seraphim e Esdras Saturino, Barros faz parte de uma nova geração do humor brasileiro que foge do circuito da televisão — e dos teatros de stand-up — e tem possibilidade de criar conteúdo de forma mais livre e rápida na captura do que está sendo dito e feito nas redes sociais.
Estereótipos sudestinos
Nos vídeos curtos produzidos por Barros, é difícil não reconhecer alguns "tipos" do dia a dia. Ninguém escapa: sobrou para o cara de coque que chama a mulher para fazer um projeto de nu artístico "empoderado", mas que só está interessado em sexo casual (o clássico esquerdomacho); e também para aquela chata que só sabe falar do intercâmbio que fez.
Sua personagem mais recente, a jornalista Laura Tampurini, fala com sotaque paulistano pesado (o famoso sotaque de "Boça") e parece alheia a qualquer coisa que fuja do eixo Rio - São Paulo. É uma caricatura dolorosamente fiel à postura de alguns profissionais do meio. A inspiração para a criação da personagem, segundo Barros, foram suas próprias experiências como jornalista sofrendo preconceito no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Em 2019, Barros conta que se se mudou "da noite para o dia" de Recife para o Rio de Janeiro para trabalhar como jornalista. Durante os três meses em que ocupou a vaga, ouviu todo tipo de comentário preconceituoso sobre sua origem. "Parece que naturalmente sou vista como um ser cômico por ser do Nordeste", conta Barros. "Era um trabalho tenso, envolvia política, e assim que entrei a pessoa que me contratou deu o texto para mim, falando: 'Olha, eu sei que as pessoas do Nordeste são mais informais, mas você tem que entender que, para trabalhar com jornalismo no Rio, é preciso se comportar", conta.
O emprego não durou, mas Barros segue morando no Rio de Janeiro e fazendo teatro — que estuda desde os 14 anos. Pela experiência teatral em construir personagens e´pela curiosidade por situações desagradáveis, os vídeos de Barros são cômicos e realistas. "Tenho uma ânsia muito forte em compreender o que motivou a pessoa a se comportar de determinado jeito", diz. "Quero saber de tudo dela, tudo que define sua personalidade. Tento compreender o que tem por trás de um comportamento, principalmente quando é algo ruim."
No caso do personagem esquerdomacho — um sucesso nas redes —, Barros também procura extrair algum tipo de conteúdo, mesmo lidando com uma situação intragável. "O que leva o homem a criar uma situação que vai magoar? Não acho que ele acorda pensando que vai me magoar, apesar de realmente existirem uns caras assim. O que faz menos sentido para mim em relação a esses caras é venerar, em 2020, um escritor cuja obra é toda voltada para, digamos assim, o 'imundo'", diz a jornalista sobre o escritor e poeta Charles Bukowski, popular especialmente entre jovens leitores.
Hackeando o Sudeste
Antes de começar a gravar os vídeos, Barros conta que foi muito influenciada pelo trabalho do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autor do livro "A invenção do Nordeste e outras artes", que estuda justamente a formação e homogeneização da identidade uma região formada por 9 estados. "Em 2018, entrevistei Durval para falar sobre a xenofobia que estava rolando na internet na época da eleição presidencial. Existe um imaginário muito bem estabelecido sobre nossa região, construído por elites locais e externas, e que ainda reverbera como uma mesma identidade coletiva, e isso que não confere com a realidade", conta.
O "humor nordestino" se tornou um gênero brasileiro de humor — inúmeros comediantes famosos nasceram na região. No entanto, Barros acredita que muitas vezes há uma aceitação dos estereótipos do nordestino — seja preguiçoso, informal, servil — como uma forma de defesa. Por isso, a jornalista acredita que a internet serve como um instrumento para mostrar as diferenças regionais de cada estado e falar de sua identidade pernambucana sem fortalecer estereótipos.
Suas inspirações vão desde o youtuber Max Peterson, estudante de teatro cearense que mora em Paris, a Whindersson Nunes, um dos maiores comediantes brasileiros. "O Whindersson é uma referência massa pra mim hoje em dia. A presença dele na internet é muito importante, porque ele faz diversos tuítes falando das diferenciações no Nordeste e de valorizar a diversidade e a pluralidade cultural nessa região", diz.
Outra grande inspiração de Barros é a atriz e comediante Tatá Werneck — que recentemente repostou o vídeo da jornalista narrando um quadro de comédia de Werneck. "Tatá para mim é uma vanguarda na atuação. Ela chegou fazendo coisas na comédia que a gente estava muito mais acostumado a ver homem fazendo. (...) Quando uma mulher se propõe a seguir essa mesma performance, tende a ser deveras ridicularizada. Ela abriu o Mar Vermelho para mulheres que sonham em fazer humor", conta.
Com mais de 100 mil seguidores nas redes sociais e milhares de visualizações, Barros acredita que a internet pode ser uma ferramenta poderosa para combater a hegemonia da produção cultural no Sudeste. "A internet dá a chance de a gente produzir, aparecer e 'hackear' essa produção de conteúdo hegemônica, que reproduz muitos desses preconceitos contra a região", conta. "A internet, principalmente agora na quarentena, é uma grande exposição de habilidades."
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