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Sem salsicha, com afeto: o cachorro-quente mais tradicional de São Luís

Há 44 anos Companheiro vende cachorro-quente no largo do Carmo, no centro de São Luís (MA) - Mônica Manir/UOL
Há 44 anos Companheiro vende cachorro-quente no largo do Carmo, no centro de São Luís (MA) Imagem: Mônica Manir/UOL

Mônica Manir

Colaboração para o TAB, de São Luís (MA)

29/05/2022 04h01

Quer dar gastura no estômago octogenário de Companheiro é pedir ketchup, maionese ou mostarda no seu carrinho de cachorro-quente. O maranhense olha atravessado para aquele americanismo e logo tasca um tanto a mais de pimenta-malagueta no sanduíche pro rapá não voltar tão cedo. Quando não, o próprio público cativo do carrinho já dá o recado para o desavisado: "Está pedindo o que aqui não tem". Nem salsicha, aliás, o aluado vai encontrar. Égua! Que raio de hot dog é este?

O que tem no largo do Carmo de São Luís, há 44 anos, é um cachorro-quente de raiz, tradicionalzão para os parâmetros locais, com carne moída soltinha, tomate, ervilha, lascas de pepino, uma folha de alface e cebola. Há duas versões de pão: o de massa fina, que o povo acha adocicado, e o de massa grossa, como os maranhenses se referem ao filão francês.

O tal molho de pimenta-malagueta, acomodado numa garrafa de plástico de 500 ml, é o segredo de Estado de Companheiro. Ele pinga o tanto que o freguês quer, com desenvoltura ou comedimento, mais com a primeira que com o segundo, porque a audiência ali aprecia uma picante.

O tempero principal, no entanto, é o papo. "O gostoso aqui é a confusão", diz Alexandre Souza, advogado de 63 anos que frequenta o ponto há quase 30. A conversa gira invariavelmente em torno do futebol, com certa reserva de mercado para os rubro-negros Flamengo e Moto Club, times de coração de Companheiro. Mas não raro a conversa resvala na política — e aí não tem consenso.

"Recebeu a comenda de uma bandida. Foi de sapato, todo empacotado, parecia que estava morto", brinca Souza, referindo-se à medalha da Ordem dos Timbiras, oferecida a prestadores de relevantes serviços a São Luís, que Companheiro recebeu das mãos da então governadora Roseana Sarney, em 2012.

Outro consumidor assíduo, o administrador e economista aposentado José Flávio Silva, 70, diz que Companheiro tinha cacife para ser vereador, se quisesse. Mas pelo jeito não quer. "É um homem corretíssimo, nunca compra a fiado nem com cartão, a questão é que ele é muito reto na conversa", afirma Silva, que conhece o empreendedor desde 1964.

No canto do largo do Carmo

José Carlos Nunes, o Companheiro, tem lá suas convicções explícitas. "Aquela macacada toda não é comigo", afirma, referindo-se ao recheio de salsicha, milho, batata palha, batata em rodela, purê de batata, bacon, maionese, ketchup, mostarda, parmesão e afins que concorrentes acrescentam ao dogão.

Companheiro, vendedor de cachorro-quente no largo do Carmo, no centro de São Luís (MA) - Mônica Manir/UOL - Mônica Manir/UOL
Sem salsicha, o hot dog leva carne moída soltinha, tomate, ervilha, pepino, alface e cebola
Imagem: Mônica Manir/UOL

Diz prezar pela saúde da sua clientela, por isso prefere a receita caseira, que também não leva óleo. Volta e meia cita os malefícios do diabetes. "É uma doença ansiosa, que causa problemas de visão, faz engordar muito ou emagrecer muito." Ele mesmo sugere pedaços menores do sanduíche ao cliente sabedor da moléstia.

Segundo Companheiro, teria sido por causa do diabetes que seu cunhado sumiu no mundo. De uma hora para outra, Merval Belmiro Pinho ou Paulo Gonzales Moreno (ele se apresentava ora com um nome, ora com outro, e nunca mostrou sua certidão de nascimento à família) começou a emagrecer, ficou quase pele e osso. O diagnóstico de diabetes não ajudou em nada, porque ele achava que a clientela o tinha como sofredor de tuberculose, bem mais divulgada na época e que causava rejeição e medo. Para Companheiro, o pelejamento do cunhado por conta disso foi muito, e ele não viu saída senão desaparecer.

Antes do sumiço, os dois se postavam em colégios como o Liceu Maranhense, o Marista e o Ateneu, vendendo cachorro-quente como lanche de intervalo. Depois desciam para a ZBM (Zona do Baixo Meretrício), no bairro do Desterro, onde ficavam até as 3 horas da manhã — para então estarem no Mercado Central às 5h, em busca dos ingredientes para o dia seguinte.

No início, a carne moída era suína porque o abastecimento da carne de boi ainda era parco no Maranhão, estado que hoje possui o 12º maior rebanho de bovinos nacional e o segundo maior do Nordeste, atrás apenas da Bahia. À medida que a carne de boi foi ficando mais acessível, Companheiro passou a comprá-la do mesmo marchante e a fincar o carrinho no mesmo lugar: o canto do largo do Carmo com o começo da escorregadia rua João Victal de Matos, no chamado beco do Quebra-Bunda, do Quebra-Costa ou da Pacotilha.

Beco indica uma rua estreita. O da Pacotilha liga uma artéria principal, o largo, à parte baixa da cidade. "A Pacotilha" foi um folhetim ludovicense de grande repercussão, crítico dos políticos e dos costumes locais, que ocupou um prédio de azulejos verdes ali do lado.

Companheiro, vendedor de cachorro-quente no largo do Carmo, no centro de São Luís (MA) - Mônica Manir/UOL - Mônica Manir/UOL
Companheiro e seus bons companheiros: 'Se o cliente chega de mau humor, tem de sair rindo daqui'
Imagem: Mônica Manir/UOL

'A gente adora esse véio'

Nesses 40 anos de João Victal, Companheiro fortaleceu a clientela com um marketing emocional: "Se o cliente chega de mau humor, tem de sair rindo daqui".

De boina no dia da entrevista (fazia 30°C à sombra), calça e camisa polo folgadas, uma indefectível sandália de couro e uma luva na mão esquerda, ele vai proseando e cortando o pão sem olhar para o pão, fatiando o pepino sem olhar para o pepino -- e todos os seus dedos continuam lá, entre eles o anular com a aliança de casado, apesar da viuvez nem tão recente assim. Há três anos e meio, Alzena Cavalcante Costa Nunes morreu de câncer, e Companheiro ainda lacrimeja pela perda da mulher, que não ia para a cozinha, nunca se zangava e fazia a melhor das feiras no sábado.

Aliás, Companheiro não trabalha nos fins de semana, e seu horário de atendimento é apenas matutino, das 7h às 11h40, estourando. Chegou a vender 500 cachorros-quentes por dia, hoje não abre o jogo. Cada lanche sai por R$ 6, e ele também traz prontos de casa sucos de bacuri, maracujá, murici, cajá e goiaba a R$ 3 cada, preparados no próprio liquidificador a partir das 3h30 da madrugada. Quem quiser tomar Jesus, o refrigerante cor-de-rosa com sabor de canela nascido no Maranhão, também pode comungar o lanche com a bebida.

Nascido em Iguaíba, em São José do Ribamar, o vendedor de rua conta com a ajuda diária do filho Jackson Pavão Nunes na moeda viva, mas também nas modernidades virtuais, como Pix e pedidos pelo celular. O delivery é in loco: "Atravesso a rua e pronto", ri o filho, já correndo para atender mais um carrão que embicou na esquina em busca da encomenda, enquanto o pessoal das antigas, o grupo do WhatsApp do Companheiro, gazeteia em volta do carrinho.

O grupo foi criado nos tempos da pandemia, para conferir o bem-estar dos atuais 16 componentes mais chegados e suas famílias. José Flávio Silva lembra a emoção de vislumbrar o amigo no alto da ladeira, depois de 12 dias internado em estado grave por causa da doença: "Mal podia caminhar, e ele veio me receber".

Companheiro tem um miocárdio que já infartou diante da televisão, durante o intervalo de um jogo de futebol, em 2017. Um médico cogitou colocar safena, mas outro disse que não era o caso de abrir o peito. Quatro comprimidos diários dariam conta do recado, desde que ele os conjugasse com uma receita de alegria. Daí se deduz que tão cedo o homem não larga o ofício, nem os viciados no Companheiro se desgarram dele. "A gente adora esse véio", diz Souza, devorando mais um tanto de carne moída no pão de massa grossa.