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A volta aos shows do Cabra Cega, banda de forró formada só por cegos em BH

Banda de forró mineira Cabra Cega se apresenta há mais de 30 anos e já fez até turnê na Suíça - Gustavo Baxter/UOL
Banda de forró mineira Cabra Cega se apresenta há mais de 30 anos e já fez até turnê na Suíça
Imagem: Gustavo Baxter/UOL

Nina Rocha

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

09/06/2022 04h01

Com um repertório que inclui clássicos da música nordestina de Dominguinhos, Gonzagão, Elba Ramalho e Alceu Valença, a banda Forró Cabra Cega está junta há mais de três décadas e voltou a se apresentar. Ao longo dos anos, já trocaram de formação, tiveram outros nomes e testaram outros estilos, mas apostaram no forró. O nome atual veio em 2019, e o trocadilho bem-humorado representa bem a essência do grupo que, logo ao entrar em cena, se apresenta como a única banda de forró pé de serra de cegos do Brasil.

Os músicos Jerônimo Rocha, Alessandra Madureira, Ademir Tinoco dos Santos, Leonildo César Lopes e José Maria de Oliveira se conheceram na década de 1980, quando eram alunos do Instituto São Rafael, em Belo Horizonte. A escola, que é referência no ensino especializado para pessoas com deficiência visual, oferece cursos técnicos e livres para a população cega — entre eles, o de música.

Foi dentro de um dos projetos de musicalização que Alessandra Madureira, 52, teve contato pela primeira vez com instrumentos de percussão como o triângulo. A afinidade com a música, no entanto, faz parte de sua vida há bem mais tempo. "Acho que cego é musical por causa do rádio. Tem gente da família que não conversa com a gente, aí a gente vai ouvir rádio. Minha mãe fala que, quando eu era neném, eu só dormia com o rádio dentro do berço", diz. As transmissões sonoras continuam sendo uma boa companhia em seu dia a dia. "Tudo que toca, eu escuto."

Forró Cabra Cega se apresenta em Belo Horizonte - Veronica Manevy/UOL - Veronica Manevy/UOL
Show do grupo Cabra Cega em Belo Horizonte em maio
Imagem: Veronica Manevy/UOL

Forró é MPB

Nem todos os integrantes do Forró Cabra Cega são ecléticos como a cantora e triangulista. O guitarrista José Maria Oliveira, 52, por exemplo, é fã de rock e suas vertentes. Aprendeu a gostar e tocar o forró por causa da banda, mas suas predileções ficam evidentes durante os ensaios e apresentações, principalmente quando as canções do repertório possibilitam solos na guitarra ou no violão.
"Com seis anos eu já tava cantando música do John Lennon. Apesar de também tocar sertanejo e caipira, gosto de Jimi Hendrix, Metallica, Pink Floyd", conta, enquanto os colegas brincam, apelidando Zé com nomes de grandes guitarristas, como Eric Clapton e Eddie Van Halen.

O frontman do grupo, Jerônimo Rocha, 53, comanda a voz, o contrabaixo e explica a escolha do forró: um gênero musical popular e alegre. "É um estilo que a gente escolheu para trabalhar, mas cada um tem seu gosto pessoal na intimidade. O que a gente faz é com muito carinho", pontua. "A gente escolheu o forró porque tem cultura e história e é popular."

Zé Maria de Oliveira é o violeiro da banda de forró Cabra Cega - Gustavo Baxter/UOL - Gustavo Baxter/UOL
Zé Maria de Oliveira é o violeiro da banda de forró Cabra Cega
Imagem: Gustavo Baxter/UOL

Alessandra também defende a escolha do repertório com músicas já consagradas do estilo devido à efemeridade dos hits atuais, em sua opinião. "Se formos acompanhar a mídia, toda hora muda. No momento, agora é só a pisadinha". Isso não impede de o Forró Cabra Cega incorporar adaptações de canções famosas nos shows. "Já fizemos uma versão de 'Trem Bala' [de Ana Vilela], por exemplo", conta a vocalista.

Se os gostos particulares de cada artista divergem, é na vibração das notas e acordes do violão, guitarra, acordeão, zabumba, triângulo e contrabaixo que os músicos se encontram. Ademir Tinoco dos Santos, acordeonista de 57 anos chamado de Tinoquinho pelos companheiros de banda, cresceu acompanhando outros músicos. "Eu morava perto de um lugar onde o pessoal ensaiava música. Toda vez ia vê-los tocando e acabava tocando também." Tinoquinho começou praticamente autodidata, com a percussão, e foi parar no acordeão e sanfona quando estudou no Instituto São Rafael.

Ademir Tinoco dos Santos toca acordeão na Cabra Cega - Gustavo Baxter/UOL - Gustavo Baxter/UOL
No acordeão, Ademir Tinoco dos Santos
Imagem: Gustavo Baxter/UOL
Jerônimo Rocha é baixista da banda Cabra Cega - Gustavo Baxter/UOL - Gustavo Baxter/UOL
Jerônimo Rocha é baixista da banda Cabra Cega
Imagem: Gustavo Baxter/UOL

Ensaios semanais

Para cumprir a agenda de 2022, o grupo pratica toda semana a poucos metros da praça Duque de Caxias, no bairro de Santa Tereza. A União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais acolhe os ensaios, que foram retomados recentemente, e são motivo de felicidade para Leonildo César Lopes, o caçula da banda, de 43 anos. Leo se reveza entre a bateria e a zabumba, a depender do tipo de show. "Foi muito ruim ficar parado. Tocar é o que nós gostamos de fazer. Já estávamos bem ansiosos para voltar aos nossos trabalhos", revela o percussionista.

Os ensaios exigem uma logística complexa. Ao longo da semana, os artistas precisam dividir a rotina com as obrigações profissionais, do funcionalismo público à massoterapia, tornando os dias úteis uma alternativa inviável. "Somos todos trabalhadores. A gente não consegue viver só de música", afirma Jerônimo.

Os encontros acabam acontecendo aos sábados pela tarde, o que funciona bem mas também traz um desafio: transporte e deslocamento. Como os integrantes moram em diferentes bairros de BH e até em outras cidades da região metropolitana, como Ibirité e Vespasiano, é preciso alinhar bem os horários para que os ônibus ou metrô, escassos no fim de semana, possam atender a todos.

No triângulo, Alessandra Madureira, integrante da banda Cabra Cega - Gustavo Baxter/UOL - Gustavo Baxter/UOL
No triângulo, Alessandra Madureira
Imagem: Gustavo Baxter/UOL

Shows e viagens também tem suas especificidades - para que tudo ocorra bem, é preciso que técnicos de som e roadies estejam aptos a lidar com deficientes visuais. Existe ainda a necessidade da presença de um guia que acompanhe os músicos em todo o trajeto, da chegada aos locais do evento até as marcações no palco, mas isso nunca foi um empecilho para a banda, que já esteve em várias cidades do Brasil e fez até uma turnê pela Suíça, em 2007. As próximas cidades a serem visitadas são Mariana (MG), Natal (RN) e Patos de Minas (MG).

A apresentação mais recente do Forró Cabra Cega foi na manhã do domingo de 29 de maio, no Circuito Municipal de Cultura de Belo Horizonte, em um palco montado ao lado da Praça da Estação, no centro da cidade. O público era modesto, mas animado. Entre uma canção e outra, Jerônimo brincava com os ouvintes: "não enxergo, mas quero ver vocês dançando!". Tinoquinho celebra quando há interação do público. "Se o pessoal responde, a gente se sente mais animado para tocar. Nossa sinergia é diferente. A palavra da moda agora é sinergia."

Na zabumba da banda Cabra Cega, Leonildo César Lopes - Gustavo Baxter/UOL - Gustavo Baxter/UOL
Na zabumba da banda Cabra Cega, Leonildo César Lopes
Imagem: Gustavo Baxter/UOL

Quando anunciaram que na sede da União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais estava prevista uma apresentação do Coral DEVI, também composto por deficientes visuais, um dos homens que dançava sozinho em frente o palco confirmou prontamente a sua presença: "onde tem cego cantando e tocando bonito assim, eu vou".