'Livre e realizada': bisneta de Cora Coralina é dona de headshop em SP
Acostumada a receber adeptos da pescaria esportiva, a Fazenda Maeda trabalhou com uma onda diferente no último sábado (4). Nas mãos dos frequentadores, os anzóis deram espaço para sedas, piteiras, lanchinhos e baseados infláveis de plástico.
O espaço bucólico em Itu (SP), com direito a chalés, jardim japonês e teleférico, foi cenário da Expo Head Grow, maior encontro nacional de tabacarias e headshops, as lojas dedicadas a vender itens de redução de danos para consumo adulto da maconha e de outras plantas, como kumbaya e rapé.
Os 13 graus de temperatura incentivaram a formação de rodinhas para aquecer os entusiastas da erva, que acompanharam atentamente as palestras de assuntos como proibicionismo, guerra às drogas e mercado canábico.
Bandas entoando versos de paz, amor e união fisgaram os ouvidos da plateia, que passou 12 horas sem testemunhar uma briga. Aliás, se existiu alguma foi por um lugar nas disputadas filas do restaurante, que vendia laricas variadas, desde barco de sushi a coxinhas.
Apesar da semelhança com feiras canábicas internacionais de países legalizados, quem imagina encontrar um dispensário com maconha está viajando. Apenas expositores de produtos e serviços lícitos são permitidos no evento, que tem revista rigorosa feita por seguranças na entrada.
O destaque são as novidades do setor, como painéis de luzes e sistema de irrigação para cultivo de última geração, testes colorimétricos para verificar a quantidade de canabinoides em óleo medicinal e outros itens, cosméticos estimulantes do sistema endocanabinoide, chocolatinhos "reborn", cujo visual confunde com buds de verdade (flores de cannabis), cervejas artesanais e até gim tônica infusionada com terpenos.
Um stand decorado com cartazes e embalagens de produtos com desenhos psicodélicos indianos chama atenção. Foi ali onde o TAB encontrou a empresária e ativista Mariana Tahan James Braz, 42, sócia da Namastey Shop.
Ser bem-sucedida e atuar sem medo em áreas dominadas por homens é como se fizesse parte do DNA de Mariana. Ela é bisneta de Cora Coralina (1889-1985), escritora de versos em prol da liberdade feminina. As últimas lembranças de Mariana são da bisa, bem velhinha, fazendo doces na sua casa em São Paulo, quando a menina tinha cinco anos.
As narrativas de Cora fascinavam tanto a família a ponto de a mãe de Mariana, a jornalista Ana Maria Tahan, só descobrir na casa dos 20 anos que os personagens de "Os Meninos Verdes" são uma fábula — no livro, "Vovó Cora" conta a história de criaturinhas estranhas e o pano de fundo é aprender a lidar com o diferente.
Quando Ana descobriu que Mariana fumava maconha na adolescência, "quis me internar numa clínica de reabilitação", conta a empresária, aos risos. A ameaça nunca foi adiante. Cora, imagina Mariana, "ficaria brava, como a minha mãe". "Porém, com o tempo, aceitaria porque ela sempre defendeu que nós sejamos livres e realizadas."
'Big boss girl'
Mariana trabalhou em empresas multinacionais, mas não se sentia realizada. Decidiu investir no próprio negócio, a Namastey, em 2018. Localizada na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, a headshop da Mariana é vizinha de escritórios tradicionais de advogados, contadores e consultórios médicos, em um prédio comercial de luxo, daqueles com elevador inteligente.
Na portaria, o segurança faz uma discreta cara feia medindo de cima a baixo quem veste roupas nada sociais. A segurança é rigorosa, confirmou Mariana.
Antes da inauguração, ela foi barrada usando um vestido de estilo hippie, sandália rasteirinha nos pés e tatuagens à mostra. Foi impedida de entrar no seu próprio escritório junto com a arquiteta que reformou o espaço. Reclamou e "fez um barraco", sem sucesso. Foi liberada apenas após um telefonema para o proprietário. "Duvido que agiriam dessa forma se eu fosse um executivo de gravata."
Ao atravessar a porta da Namastey tem-se a impressão de estar na empresa de maconha do rapper Snoop Dogg. As referências à verdinha estão por todos os cantos em cartazes e nas estantes repletas de piteiras, bongs, blunts, pipes para todo tamanho de boca e lombra imagináveis. Também há diferentes sedas, cuja gramatura, estado da celulose, presença de corantes e tamanhos reduzem danos para quem fuma.
Camisetas ganham trocadilhos relacionados a cannabis com o logo de marcas famosas: Fanta se transforma em "Ganja", Champion é "Cânhamo", Google vira "Grower" e por aí vai. Desde a montagem da headshop, a empresária fez questão de escancarar a porta para mostrar que vende itens lícitos.
Aos poucos, os funcionários do prédio foram perguntando sobre os produtos da loja. Mariana faz questão de explicar a funcionalidade dos utensílios em detalhes. Hoje, todos se acostumaram.
'Hempreendedoras'
Assim como Mariana, muitas proprietárias de headshops trocaram a estabilidade de uma carreira promissora para empreender com maconha: é o caso de "hempreendedoras" como Verena Isaack (Ultra 420), Ludymilla Matoso (Riamba), Andrea Lago (Mary Jane), Camila Losada (4eVinte) e Indira Barreiro (Tupinambá). Entre elas, há mães, mulheres negras, religiosas e os mais diversos perfis.
Apostar no segmento para lutar pela legalização é o objetivo delas, uma luta bastante antiga, na verdade. A venda de sedas e bongs custeou o movimento pró-regulamentação nos EUA. Em 1973, depois do Oregon, mais dez estados norte-americanos descriminalizaram o pequeno porte de maconha graças à mobilização das headshops.
A expressão "head" para designar consumidores de drogas apareceu pela primeira vez em um registro policial nos EUA, em 1913. Os fãs da banda canábica Grateful Dead eram chamados de "head", cabeções.
Talvez seja uma sigla para "He Eats Acid Daily" - quando a primeira headshop foi inaugurada, em 1966, o uso de LSD era permitido. Inspirados após assistir uma aula na Universidade Harvard com Tim Leary e Richard Alpert, primeiros pesquisadores de psicodélicos, os irmãos Ron e Jay Thelin abriram a The Psychedelic Shop.
A loja oferecia zines, artigos científicos sobre LSD, discos e até aulas de yoga. Bongs e derivados eram proibidos e ficavam na moita. Na época, muitos hippies foram expulsos pela família e a rua da Psychedelic Shop se tornou um abrigo para 100.000 sem-tetos. O uso de drogas pesadas e a violência tornaram a vizinhança insuportável.
Em 1967, a dupla fechou a loja com uma marcha de 80 pessoas jogando bitucas de baseados num caixão com um boneco vestido de hippie simbolizando a morte do movimento. A passeata terminou com Ron Thelin liberando o público para pegar tudo de graça na loja.
Lojas assim vivem outro momento hoje. Só em 2020, mais de 1.600 headshops e tabacarias abriram na cidade de São Paulo, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Mulheres estão entrando forte nesse mercado, um tanto masculino. "No começo, eu cuidava das redes sociais da Namastey e as pessoas só falavam comigo pelo pronome masculino. Não imaginavam que poderia ter uma mulher por trás da empresa", conta Mariana.
"Hoje, isso está mudando. União é fundamental. Juntas vamos partir para cima e dominar o mundo."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.