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'É a visão para quem fica': a tanatopraxista e o preparo de cadáveres

Izolda Nara Schouer. técnica em tanatopraxia, mostra a coroa de flores que será colocada sobre o caixão - Camila Svenson/UOL
Izolda Nara Schouer. técnica em tanatopraxia, mostra a coroa de flores que será colocada sobre o caixão
Imagem: Camila Svenson/UOL

Do TAB, em Osasco (SP)

20/06/2022 04h01

A fachada no centro de Osasco é discreta. A garagem cheira a flor. No chão, crisântemos são depenados por duas pessoas que, com cuidado, os colocam em torno de uma senhora de idade com as mãos cruzadas sobre o abdômen, olhos cerrados e uma face serena. Ela está morta e a dupla ornamenta a urna para antes do velório. O toque final é a salpicada de glitter prateado, jogado sobre as flores para dar um brilho extra e reviver aquelas que estão começando a perder o viço. "Assim fica bom", diz a funcionária, olhando para o caixão aberto. "Seria melhor se ela estivesse viva."

Em silêncio, Izolda Nara Schuoer, 33, observa o agente funerário e sua assistente, finalizando mais um trabalho. Mais dois caixões (chamados de "urnas funerárias" por quem trabalha no setor) abertos aguardam a chegada dos carros para seguirem aos seus devidos velórios, onde a família os aguardam para a despedida. Os três defuntos repousavam nas urnas com a mesma seriedade. "O plantão foi tranquilo", diz a técnica de tanatopraxia e professora da Ananec (Associação Nacional de Necropsia e Auxílio a Pessoa).

Schuoer e outros profissionais da área de ciências mortuárias exercem uma função pouco conhecida, mas importante para o luto. A tanatopraxia é um conjunto de métodos e técnicas aplicadas para higienizar, preservar e manter a boa aparência de um cadáver para que ele siga o mais íntegro possível para os ritos fúnebres, suportando ainda o transporte para outra cidade ou país.

Apesar da importância sanitária, impedindo que haja proliferação de bactérias pelo corpo, o trabalho de um tanatopraxista é muito mais estético. Feito por um técnico, ele permitirá que familiares e amigos se sintam mais confortáveis no velório. "É a visão para quem fica", resume a técnica.

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Instrumentos e produtos utilizados na tanatopraxia, técnica para preservação e preparação de cadáveres
Imagem: Camila Svenson/UOL

Maquiagem para o luto

O processo de preparação de um corpo varia, mas a etapa inicial tende a ser parecida. Com o cadáver na mesa, o técnico utiliza uma cânula longa de metal ("é o mesmo tipo que usam para fazer lipoaspiração, aliás", comenta a técnica com o instrumento na mão) para perfurar a artéria femoral na coxa e bombear um fluido à base de derivados de formol. Com a ajuda de uma máquina que injeta a substância simulando a pressão arterial, o tanatopraxista massageia o corpo para drenar os líquidos e auxiliar na retirada o sangue, que sai por outra perfuração na artéria.

No próximo passo, a cânula aspira todos os líquidos cavitários. Além disso, todos os orifícios do corpo são tamponados com um algodão próprio para evitar que mais líquidos decorrentes do processo de decomposição escorram durante o velório. A boca é suturada da forma mais discreta possível, fazendo com que o defunto tenha uma aparência mais natural.

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Roupas do falecido são enviadas pela família para a funerária
Imagem: Camila Svenson/UOL
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Máquina que simula pressão arterial é utilizada para bombear fluidos derivados de formol no corpo do falecido
Imagem: Camila Svenson/UOL

Depois que o fluido preenche o corpo, o técnico parte para a preparação estética. A pele é lavada e os cabelos são escovados e arrumados da forma que os familiares desejam. Veste-se o corpo com a roupa enviada pela família e aplica-se uma maquiagem. Às vezes há necessidade de se fazer reconstrução facial, usando uma massa sintética moldável para criar uma "nova" estrutura óssea para o defunto. Os casos em que o procedimento é mais comum são afundamento de crânio decorrente de acidentes fatais, dilacerações e buracos de bala.

"A necromaquiagem se adapta às tendências e técnicas atuais, mas a prioridade é sempre algo mais discreto", conta Schuoer. "Não posso descaracterizar a pessoa, até porque tudo isso afeta diretamente a família que vai se despedir."

Em quase uma década de profissão, a técnica diz que é preciso também atender aos pedidos, de acordo com a religião do falecido. "Católicos tendem a ser mais tradicionais. Gostam de roupas sóbrias e o terço na mão", conta. "Já os evangélicos são mais restritivos. Não pedem maquiagem, nem muita ornamentação. Pessoas que seguem o candomblé pedem coisas específicas nas roupas e enfeites."

Por coincidência, o agente funerário que finalizava a ornamentação do caixão atendia a uma ligação no celular sobre o próximo corpo que deve trazer para o laboratório de preparação. "Qual é a religião do falecido?", perguntou.

Para quem observa de fora, parece um trabalho que exige frieza, talvez um certo descolamento sentimental. Nesse quesito, Izolda é categórica. "É preciso sempre ter empatia", afirma. "Nunca podemos perder a humanidade nessa profissão." Um dos casos que mais lhe vêm à memória foi quando recebeu um menino no laboratório de preparação. A família pediu para que ele fosse vestido com o manto usado pelo protagonista do anime "Naruto".

Quando perguntada sobre a qualidade do seu trabalho, é econômica. "Todo trabalho é satisfatório, mas sou muito autocrítica. Me cobro porque sempre me coloco no lugar da família", diz, deixando a entender que sempre poderia fazer melhor.

Olfato, o inimigo

Ainda que seja uma função importante, o mercado de trabalho da tanatopraxia não é amplo. Recém-formados contam que é difícil conseguir emprego e ainda há resquícios de um confronto de gerações. "Embora a geração antiga seja mais conservadora, há uma certa banalização da morte. É comum chamarem o corpo de 'presunto' ou 'podrão'. Isso é falta de respeito", diz.

Ainda assim, Izolda enxerga de forma positiva o interesse maior pela profissão. "Hoje as famílias que contratam o serviço também ficaram mais exigentes e seletivas com esse serviço."

O trabalho é feito em plantões que podem variar de 24 a 48 horas. E, assim como em um hospital, a rotina é incerta. Há plantões em que os profissionais precisam lidar com mais de dez corpos, e aqueles em que o laboratório de preparação passa um ou dois dias sem receber ninguém.

Ao longo dos anos, o olfato do tanatopraxista também vai se adaptando aos cheiros. Há o odor adocicado, muito parecido ao de fruta apodrecida que aparece nos estágios primários de decomposição, até os mais desagradáveis que surgem nos estágios mais avançados. Dos cinco sentidos, de acordo com a técnica, o olfato é o que mais atrapalha a função.

Na pandemia, a preparação de cadáveres foi suspensa. Foram alguns meses sem trabalhar, até que fosse seguro voltar do trabalho. A vantagem é que todo equipamento de segurança que o resto da humanidade teve de decorar o nome — máscaras N95, luvas, óculos protetores etc — já faziam parte do dia a dia da tanatopraxista. "Já ouvi de pessoas mais antigas na área que a nossa geração é 'Nutella' porque fazemos questão de usar esse tipo de equipamento", afirma a técnica.

Todos os dias, Izolda volta para casa e tira toda a roupa no corredor, antes de abraçar os dois filhos pequenos. "Façam a mesma coisa", aconselhou à reportagem do TAB.

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Izolda Nara Schuoer, técnica em tanatopraxia, trabalha no setor funerário há quase uma década. "É preciso ter empatia", explica ela sobre as exigências da profissão
Imagem: Camila Svenson/UOL

Um encontro na perda

Nascida na capital de São Paulo, Izolda Nara Schuoer atua na área há oito anos — seis deles dedicados também a ministrar aulas. Quando começou, predominavam os homens no setor e as informações sobre os métodos eram restritas. Ainda pairava uma visão estigmatizada sobre a função. "Ninguém queria trabalhar com isso antigamente", relembra. "Já era uma profissão mal vista e ainda tinha pessoas de dentro que me menosprezavam ou me assediavam por ser mulher."

Quando fala que a empatia é primordial na profissão, não está exagerando. Foi uma perda familiar que a levou para o preparo de cadáveres. Aos 18 anos, Izolda perdeu um tio, atropelado no túnel Ayrton Senna enquanto andava de bicicleta. Foi um acidente feio. "O boletim de ocorrência em si já era impactante e minha mãe teve que reconhecer o corpo desfigurado do próprio irmão", relembra.

Além da dor do luto, a falta de atendimento decente e informações concisas sobre os procedimentos após a morte piorou a situação. Com essa experiência em mente, Schuoer começou a estudar tanatopraxia para evitar que outras famílias recebessem o mesmo tratamento.

O que é pouco falado é que a morte envolve uma gama de burocracias e valores elevados para os serviços. Em casos de traslado do corpo por avião, é preciso embalsamá-lo para que ele fique mais tempo preservado e livre de contaminações. A preparação "básica" de um corpo ultrapassa a casa dos milhares — está entre R$ 1.000 a R$ 3.000.

Não é fácil lidar com o fim, mesmo entre aqueles que lidam com a morte todos os dias. A dor da perda, segundo a técnica, vem na mesma intensidade para quem trabalha ou não trabalha no setor. "Precisa gostar do que se faz, porque nunca fica 'fácil'", afirma. "Mas posso dizer que trabalhar com a morte me fez repensar a vida e ser um ser humano melhor."