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'Às vezes entro para tocar num lugar e sou a única preta', diz DJ Carola

DJ Carola na pracinha em frente ao colégio Rubem Berta, onde estudou na infância e na adolescência - Tiago Coelho/UOL
DJ Carola na pracinha em frente ao colégio Rubem Berta, onde estudou na infância e na adolescência
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Fernanda Canofre

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

03/09/2022 04h01

Carola entrou no palco de uma pista do festival Tomorrowland, na Bélgica, no final de julho, só pensando que não poderia errar. Apenas dois anos depois de ter entrado no cenário nacional, a DJ brasileira havia chegado a um dos maiores eventos da música eletrônica no mundo, ao lado de outro artista do Brasil, Kvsh.

Cerca de dez anos se passaram entre o show na Europa e o dia em que, ainda numa casa da Vila Jardim, na periferia de Porto Alegre, Carolina Alcântara, 29, publicou no Facebook uma imagem do Tomorrowland, dizendo que iria trabalhar e estudar bastante para um dia chegar lá. "Tenho o print até hoje", conta. "Fui entender o tamanho daquilo depois. Caralho, olha onde eu estou, sempre sonhei com isso e aconteceu." Neste sábado (3), ela realiza o sonho de outro festival, o Rock in Rio.

Mulher preta, periférica, bissexual e fora do padrão das DJs mulheres que ela costumava ver se apresentarem na cena da música eletrônica, DJ Carola tem 840 mil ouvintes no Spotify e mais de 30 mil seguidores no Instagram. Já recebeu apoio de David Guetta em uma faixa, conta com uma equipe no Brasil e uma agência nos Estados Unidos, e viu tudo isso acontecer em cerca de dois anos.

"Minha vivência é diferente da da maioria dos artistas, porque o que a gente tem hoje dentro do mercado da música eletrônica é uma parada muito elitista e branca. Não falo isso de maneira pejorativa, mas é a realidade", diz. "Quem fez a música eletrônica foram os pretos, mas saiu disso e virou uma parada totalmente elitista e embranquecida. Tem vezes que eu entro para tocar em um lugar e sou a única preta ali. Acho que isso diz muito sobre o que eu trago para dentro dos meus shows."

No primeiro ano como DJ, Carola tocou em três festas, com cachê de R$ 100, gastos no próprio evento. Depois de morar por três meses na Espanha, onde conseguiu alguns bicos, ela voltou ao Brasil e perguntou a um conhecido o que era preciso fazer para ter espaço em uma festa dele. Trabalhou três meses com divulgação nas redes sociais e, assim, conseguiu o slot e um emprego na produtora.

"O som dela é muito dançante, é diferente do que se vê por aí. Tenho muito orgulho, sei o que ela batalhou para estar ali. Ela é muito resiliente", diz o ex-chefe William Ruschel, 38.

DJ Carola na casa de sua avó em Porto Alegre, onde cresceu - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
'Tem vezes que eu entro para tocar em um lugar e sou a única preta ali', diz Carola
Imagem: Tiago Coelho/UOL

De volta à Vila Jardim

Carola não tem contato com o pai biológico e perdeu o padrasto querido quando tinha nove anos. A mãe, Eliana, morreu cerca de um ano depois. Ela e o irmão mais velho seguiram vivendo na casa branca, construída nos fundos da casa da avó, Firmina dos Santos Alcântara, 90, que foi quem os criou. Gerações da família vivem ali há pelo menos 70 anos, desde que Firmina, vinda de Bagé, região da Campanha gaúcha, comprou o terreno com o marido e construiu a casa.

A DJ saiu de casa no final de 2019, para morar com uma ex-namorada. No início de 2021, mudou-se para São Paulo, para facilitar os shows e viagens pelo país. A visita dela em Porto Alegre, agora, era por motivos familiares.

Apesar de alguma dificuldade de movimento, Firmina tem a memória afiada sobre a infância da neta. Lembra que era levada, escapando da escola vez ou outra. "Mas ela estudou", diz a avó. "Comigo ela era boa. A gente sempre quer moldar a pessoa à moda da gente, mas agora que estou velha, estou sabendo que as coisas não são assim."

Carolina Alcântara, a DJ Carola, e Firmina da Silvia Alcântara, sua avó - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Carolina Alcântara, a DJ Carola, e Firmina da Silvia Alcântara, sua avó
Imagem: Tiago Coelho/UOL

A região da Vila Jardim onde a avó vive tem ruas pacatas e casas simples, mas próxima a zonas nobres da capital gaúcha. O contraste a uma caminhada curta de distância sempre chamou a atenção de Carola. Na casa da avó, ela diz que nunca passou fome, ao contrário de muitos colegas da escola. Outros amigos de infância, lembra, entraram para o tráfico. Um coleguinha, na 2ª série, morreu em um disparo acidental com uma arma que a família dele tinha em casa.

Diferentemente da maioria deles, Carola entrou na universidade e cursou durante dois anos e meio de Publicidade e Propaganda, em uma instituição particular, onde tinha bolsa graças à nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Desistiu para priorizar a carreira de DJ. "Eu pensava: isso tem que dar certo. E aí trabalhar para acontecer. Quando eu tinha que fazer uma escolha, eu sempre escolhia a música."

DJ Carola em frente ao colégio Rubem Berta, onde estudou na infância e na adolescência - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
DJ Carola perto do colégio Rubem Berta, onde estudou na infância e na adolescência
Imagem: Tiago Coelho/UOL

'Quebra de expectativa'

Jéssica Bittencourt assistiu Carola tocar pela primeira vez, no final de um evento, em 2018. Estava curiosa pela mulher anunciada no line-up, já que só via DJs homens. "Ela começou já explodindo a galera, nunca tinha visto nada igual. Ali ela ganhou dois fãs de carteirinha", lembra Jéssica, que criou junto com o marido, Vinicius da Silva, um fã-clube para ajudar a divulgar o trabalho de Carola. "Dali nasceu uma amizade."

O casal também se tornou investidor do "projeto Carola", como a própria DJ se refere, e segue a apoiando até hoje.

A jornalista especializada na cobertura de música e DJs Claudia Assef conta que conheceu o trabalho de Carola em uma "masterclass" de produção. A impressão que teve, diz, foi de uma jovem desenvolta, inteligente, com uma técnica simples, que resultava em produções marcantes.

Jéssica e Vinicius fizeram fã-clube e se tornaram apoiadores da carreira da DJ - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jéssica e Vinicius fizeram fã-clube e se tornaram apoiadores da carreira da DJ
Imagem: Arquivo pessoal

"Ela me chamou a atenção pela rapidez com que despontou na cena, principalmente, pelo trabalho dela como produtora, uma área em que ainda existem poucas mulheres, sobretudo pretas", conta.

A primeira DJ brasileira apareceu nos anos 1960, a pioneira Sônia Abreu, lembra Assef. Nos anos 2000, houve uma onda de DJs mulheres no estereótipo modelo, que começou a mudar há cerca de dez anos, com mulheres aparecendo em trabalhos mais autorais, mas onde pessoas pretas ainda são minoria.

"A música eletrônica começou, em todos os lugares do mundo, na periferia. É uma música periférica total. Na origem dela, nos Estados Unidos, o techno começou entre os pretos, com pouco recurso, muitas vezes usando máquinas que não eram as ideias e criaram sons geniais. Só que, obviamente, foi se elitizando e embranquecendo. Foi para um lado oposto ao RG dela", explica ela, autora de "Todo DJ já sambou".

Carola diz que, no início, não era muito ligada a questões raciais ("demorou para prestar atenção nisso"). "[Mas] veio essa discrepância de estar em tantos lugares e não ver tantas pessoas parecidas comigo. Vejo muito segurança preto, muita tia limpando o banheiro, mas por que não vejo mais pessoas curtindo a festa ou produzindo música ou tocando?", questiona.

Gustavo da Silva Leal, o Kohen, 27, produtor e artista, que trabalha com o selo de Alok, diz que ele e Carol se identificaram também por isso, em meio a um mercado competitivo no Sul. Kohen vive na zona norte de Porto Alegre, região do bairro Rubem Berta, onde nasceu, mas segue trabalhando com Carola à distância.

DJ Carola na casa de sua avó em Porto Alegre, onde cresceu - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
A DJ começou a carreira há dois anos e saiu de Porto Alegre, mas volta para visitar a família
Imagem: Tiago Coelho/UOL

"Principalmente aqui no Brasil, as pessoas querem ter uma referência, se é mulher é branca, cabelo liso, magra, maquiada, roupas justas. Homem, mesmo esquema, dentes bonitos. A gente, eu e ela, a gente é quebra de expectativa, porque a gente não é nada disso", brinca. "A gente consegue chegar lá pelo trabalho."

A mãe de Carola, Eliana, sofreu um acidente de carro, ficou com sequelas e, devido à gravidez de risco, quase precisou abortar a filha, mas decidiu seguir com a gestação. Durante a infância, Carol lembra das dores de cabeça constantes da mãe, de idas ao hospital, mas também das vezes em que ela ouvia U2 e Cássia Eller pela casa, e dos passeios incentivando a cultura dos filhos, na Casa de Cultura Mário Quintana.

O hotel onde viveu o poeta gaúcho, no centro histórico da capital, hoje hospeda agenda cultural de todo tipo e uma sala dedicada a outra porto-alegrense que virou nome nacional pela música, Elis Regina. O bairrismo gaúcho fez com que Elis sofresse uma onda de críticas quando deixou o estado pela carreira. Para Carola, um dos primeiros shows aqui, depois de partir para o cenário nacional, também não foi fácil. Anunciada como uma das artistas na festa "Só Track Boa", ela viu uma onda de hates nas redes sociais questionando o porquê de trazer alguém que tocava sempre em festas locais até pouco tempo.

Ela estava até cogitando não tocar mais, mas tocou. "Foi um set muito foda e, quando eu terminei, a galera começou a gritar meu nome: Carola, Carola", ri. "Eu sempre tinha dentro de mim que queria mudar minha realidade", diz. "Mas ainda é um sonho que está se moldando."

DJ Carola na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
DJ Carola na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre
Imagem: Tiago Coelho/UOL