'O quilombo foi ao cinema': bailarino negro do Paraná estrela documentário
Kunta Leonardo da Cruz, 35, tinha 10 anos quando pôs os pés no quilombo Paiol de Telhas pela primeira vez. A memória de menino registrou um sem-fim de mato e curiosidade. "Onde nós vamos morar?", sussurrou ao pai. "A gente escolhe", ouviu de volta. Tentando assimilar a dimensão daquela resposta, ele forçou os olhos para ver mais longe, tão distante quanto pudesse de suas referências urbanas, limitadas a barracos, cortiços e metros quadrados. Notou, então, que a cachoeira, as árvores e a montanha também podiam servir de casa, mas antes quis se certificar.
- De quem é essa terra?
- É nossa.
- Nossa quem?
- É da nossa família, da família do seu Gabriel, da família do seu Domingos...
Ao longo dos anos seguintes, Kunta assistiu ao espetáculo da plantação de perto. Todos os dias, quando levava comida aos mais velhos na roça, tomava um tempo para contemplar a dança dos chapéus na colheita de arroz, o mesmo chapéu que agora o acompanha nos palcos.
"Essa é minha referência. O chapéu não é só bonito, ele protege do sol, é simbólico, e é um instrumento que me une a uma coletividade. Com ele, eu me distanciava de como o outro me denominava, da ideia de pobreza, da subserviência. Eu via beleza no que a gente tinha", lembra ele, estrela do filme "Upa, Neguinho!", que estreou e recebeu menção honrosa no Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho.
Às vezes tentam, mas não dá para dissociar a história do município de Guarapuava, centro-sul do Paraná, das raízes de Kunta. "Somos uma comunidade de ex-escravizados. Há registros de que o Visconde de Guarapuava era o responsável por esse tráfico de pessoas — entre elas, cinco famílias possivelmente nagôs, do antigo Império de Oyó, que herdaram as terras da Balbina", diz.
Balbina Francisca Siqueira Cortês foi uma fazendeira escravocrata falecida em 1865. Viúva e sem herdeiros diretos, ela deixou, em testamento, parte de sua propriedade a onze escravizados libertos e ao coronel Pedro Lustosa de Siqueira. Os resgates históricos são do pesquisador Filipe Germano Canavese.
Após o fim do Império, Siqueira foi o primeiro prefeito eleito de Guarapuava e iniciou um processo de expropriação de terras que culminou na disputa ainda viva entre filhos e netos de herdeiros ex-escravizados e a Cooperativa Agrária. Hoje, Invernada Paiol de Telha é o primeiro quilombo titulado no Paraná e conquistou metade dos 2.960 hectares a que tem direito, então segue na luta.
Os quilombolas foram expulsos do território em meados dos anos 1970, e o pai de Kunta se mudou para Goioerê, no interior do Paraná, onde se casou. Kunta nasceu em 1987 e cresceu entre as periferias de Cuiabá e Guarapuava (PR).
"Minha mãe e meu pai precisavam trabalhar e não tinham com quem me deixar, por isso morei alguns anos com a minha tia, Ana, que é uma grande liderança da comunidade, referência para a gente do campo que tem a perspectiva de se intelectualizar. Ela alfabetizou toda a família antes de entrarmos na escola", comenta ele, em conversa com o TAB no Memorial de Curitiba. Com ela, ele aprendeu o ofício de professor.
A dança e a terra
Em 1998, quando 66 famílias quilombolas foram realocadas em outra fazenda de Entre Rios (PR), a família de Kunta voltou para casa, a 300 km de Curitiba.
Ávido por desbravar o quilombo, o menino foi pescar com Seu Domingos, o patriarca da comunidade. Ele tentava abrir a sacola para contar os peixes quando recebeu uma advertência por sua ganância. Sem saber o que significava essa palavra, buscou respostas com a tia.
"Ganância é quando você tem uma coisa e quer mais do que precisa. É diferente de ambição, quando a gente não tem algo e quer alcançar", diz, lembrando as palavras de Ana.
Kunta foi incentivado pela família a estudar para poder contribuir com a comunidade. "A gente amassava 6 km de barro pra chegar na escola, com sacolas e sacolas nos pés pra entrar na aula sem ser chamado de pé lameado", diz. Durante um festival de etnias, teve a oportunidade de estreitar os laços com a cultura africana com a dança, e assim nasceu o Kundun Balê, o primeiro grupo artístico de Paiol de Telhas.
"Kunta já era essa pessoa que transborda. Ele era espaçoso, lindo de ver", diz sua irmã mais nova, Isabela da Cruz, que hoje é ativista e assessora jurídica da bancada do PT na Câmara de Vereadores de Curitiba.
Desde a primeira vez que dançou, ele soube que era isso. Quando saiu do quilombo para fazer um curso técnico na cidade, ficou amuado. "Lembro que meu pai me disse: olha, você tem terra, você não precisa estar aí. Se a gente estiver em casa comendo o feijão que a gente planta, a gente está bem."
A dança e a cidade
Com persistência e apoio familiar, o bailarino quilombola se aproximou do coreógrafo Jair Moraes e passou a compor sua companhia de dança, que funciona no Teatro Guaíra, onde permaneceu por cinco anos, à revelia de seus colegas formados pelo Bolshoi. Segundo Kunta, foi difícil para eles aceitar dançar lado a lado com um cara que chegou sem saber fazer plié.
Na mesma época, ele ingressou no curso de dança da Faculdade de Artes do Paraná, e conheceu o cineasta Douglas Carvalho que, em 2017, partiu para a saga dos editais e conseguiu viabilizar um filme sobre o bailarino. "Não poderíamos estar mais felizes de ver o Cine Passeio e seu tapete vermelho tomado por negros, negras e negres, espaço historicamente negado a nós", diz o diretor. "O quilombo foi ao cinema, e de lá não sairemos mais."
Kunta se tornou um dos maiores especialistas em danças negras do país. Já participou de um workshop na Califórnia e foi professor convidado de uma disciplina na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Hoje, vive na capital paranaense e dá aulas no Garoto Cidadão, projeto sociocultural voltado para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social em Araucária, região metropolitana de Curitiba.
Caminhando na rua, cumprimenta conhecidos com alegria, mas confessa que nunca se acostumou à vida urbana e ainda se espanta quando vai ao Jardim Botânico, cartão-postal da cidade. Acha estranho ver o beijinho, o carrapicho e a araucária dentro de uma estufa, como se fossem plantas raras. "Cadê a bracatinga? Cadê o monjoleiro? Cadê a imbuia? Cadê o que precisa ser preservado?", questiona.
Por essas e outras, seu projeto de vida continua o mesmo: ele quer voltar para casa. "Quero construir um espaço de dança dentro do quilombo. A gente não precisa sair de lá para experienciar as coisas de um modo tão cruel, longe da nossa terra", afirma.
"Vim com a ideia de buscar os títulos e voltar pro meu território. Quero que o direito à arte seja assegurado a toda a comunidade, e se eu for contar com quem faz as políticas públicas para isso, talvez nunca aconteça. Por que Curitiba pode ter uma mobilização artística oxigenada e a gente não?", questiona.
"Descentralizar não é só sair do centro e chegar na periferia, é preciso ir 300 km adentro."
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