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Chapada, o vaqueiro hétero que leva bandeira LGBTQIA+ para missa no sertão

Desde 2016, Valmir Calaça, conhecido como Chapada, hasteia uma bandeira arco-íris na tradicional procissão para a missa de Serrita (PE), "capital dos vaqueiros" - Adriano Alves/UOL
Desde 2016, Valmir Calaça, conhecido como Chapada, hasteia uma bandeira arco-íris na tradicional procissão para a missa de Serrita (PE), 'capital dos vaqueiros'
Imagem: Adriano Alves/UOL

Adriano Alves

Colaboração para o TAB, de Serrita (PE)

28/07/2022 04h01

Poeira, cavalgada e homens encourados. Todo quarto domingo do mês de julho, desde 1971, é assim na pequena Serrita (PE), a 536,7 km do Recife. Nesse período do ano, a cidade faz jus ao título de "capital dos vaqueiros", recebendo visitantes de várias partes do Nordeste. Eles tomam as ruas da cidade sertaneja, seguindo a cavalo em procissão até chegar na tradicional missa realizada para pedir bênçãos para os meses de estiagem que estão por vir. Um ambiente de machos.

O cenário marrom das vestes típicas em couro cru ganha novos tons pelo colorido de uma bandeira arco-íris. Em cima do cavalo Boomerang, Valmir Calaça, 55, segura a bandeira que representa o orgulho LGBTQIA+, cavalgando ao lado de bandeiras políticas do estado e dos municípios no domingo (24).

Natural de Floresta (PE), a 168 km dali, o vaqueiro conhecido como Chapada frequenta a festa há mais de 20 anos. Em 2016, assumiu para si a missão de levar o símbolo da luta LGBTQIA+ para o evento protagonizado pela figura do homem macho do sertão. Naquele ano, ele se deparou com dois fatos marcantes nos noticiários: em junho, o massacre na boate Pulse, de Orlando (EUA), que deixou 50 mortos; e uma agressão homofóbica em uma festa realizada em sua cidade, semanas depois da tragédia americana. Foi quando disse "vou levar essa bandeira para homenagear esse pessoal".

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'Chapada' faz questão de ostentar a bandeira e pedir por respeito a todos
Imagem: Adriano Alves/UOL

Lá em 2016, a bandeira "deu um choque, porque no meio de vaqueiro isso é uma coisa diferente, quase um tabu", conta ao TAB. Ele chegou a ser abordado pela organização do evento, que o questionou se sabia o significado do que carregava.

O bispo, que celebrava a missa naquele ano, também interveio, queria que baixasse a bandeira na hora da celebração. Seu Valmir não arredou. "Você sabe ler? Pois leia aqui", referindo-se à frase "diga não ao preconceito" que mandou bordar no peitoral do cavalo. "Eu acho que na minha vida foi o pedaço de pano mais pesado que eu já carreguei", afirma.

O vaqueiro não tem mais a rotina de lida no mato com pegas de boi, mas não deixa de frequentar os eventos da categoria. Vai para muitas missas do tipo durante o ano e não deixa de levar a bandeira colorida. Inclusive tem mais de uma, para caso alguém aceite ajudar a causa.

Por onde passa, a reação é sempre polêmica, "é uma coisa fora do comum, você leva tanto nome", ele diz, referindo-se aos xingamentos que escuta. "Só sabe quem tá com ela. Mas, tá tudo certo, enquanto não partir para agressão, tudo beleza."

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Ambiente tradicional ganha toques modernos com a bandeira LGBTQIA+: 'Luta'
Imagem: Adriano Alves/UOL

Uma celebração sertaneja

No domingo, o Parque Estadual João Câncio ficou lotado de vaqueiros. Mesmo com o tempo chuvoso característico do mês na região, os apaixonados pela tradição não deixariam os pingos atrapalharem a volta do evento, que ficou dois anos suspenso devido à pandemia. "A emoção é muito grande, estamos aqui desde terça-feira esperando essa missa", conta Tiago Jorge do Nascimento, 32, que viajou de Cedro.

A reunião dos "heróis do sertão" é para cumprir a tradição de homenagear Raimundo Jacó, vaqueiro imortalizado na canção de Luiz Gonzaga, seu primo. A história popular conta que Jacó foi morto em uma emboscada, em 1954, por inveja de outro vaqueiro ao seu aboio. A tragédia o transformou no ícone da vaqueirama.

Foi o Rei do Baião que, junto com o padre João Câncio e o poeta Pedro Bandeira, iniciou a que hoje é considerada a maior celebração vaqueira de todo o país, reunindo mais de 70 mil pessoas por edição. "Melhor do que essa aqui, só se for a do ano que vem", sentencia Édis Cardoso, 50, após tocar seu berrante em meio à multidão.

A missa campal segue um roteiro bem semelhante às já realizadas dentro das igrejas católicas. Um crucifixo ornamentado com couro, celebrantes vestidos a caráter, um coral composto por apoiadores e um ofertório que, em vez de dinheiro, recebe utensílios utilizados pelos vaqueiros em seus trabalhos no mato, como as vestimentas, facões e até rapadura. Os fiéis não ficam sentados em bancos, permanecem em cima dos cavalos durante toda a cerimônia.

À frente do palco, a maioria é homem. Uma única mulher se diz "realmente vaqueira de entrar no mato". Logo na segunda fila de cavalos está Chapada, que mantém a bandeira erguida durante toda a celebração. "O povo diz: você é um camarada que não devia aceitar carregar essa bandeira", conta.

Coincidência ou não, o sermão naquele dia foi sobre respeito ao próximo. "Todos são irmãos se chamam Deus de pai. Chamar Deus de pai é não ter ódio, é não ter raiva e intolerância", afirmou o padre Natel, pároco de uma cidade vizinha, Exu, terra natal de Luiz Gonzaga.

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Entre o marrom das vestes dos vaqueiros, o colorido da bandeira do Orgulho LGBTQIA+
Imagem: Adriano Alves/UOL

Terra de 'cabra macho'

Símbolo da força e bravura do sertanejo, a imagem do vaqueiro é também do homem "macho", que nem dor sente. A missão de encontrar entre a vaqueirama alguém que comentasse sobre a bandeira LGBTQIA+ presente no evento não foi fácil. "Deixa quieto" e "prefiro não falar disso" é o que mais se ouve, com caras tortas e olhos revirados. Até a organização se recusou a colaborar com a reportagem, com respostas negativas e curtas ao receber tentativas de contato.

Entretanto, aos poucos a realidade tem mudado. Hemerson Novaes, 32, que frequenta a festa desde criança, diz que "não é mais tão machista como antes, mas infelizmente ainda tem muito preconceito". É dele o caminhão que vem de Floresta com os cavalos, incluindo o de seu Valmir, que conhece desde que nasceu e apoia sua atitude. "Cada um tem o direito de escolher o que quer ser e te faz bem", opina o vaqueiro e boiadeiro.

Como qualquer menino da região, Valmir Calaça também foi criado nesses princípios. "Eu já era de família de vaqueiro, era o pai, o avô", conta. Segundo ele, em Floresta, sua cidade, qualquer assunto mais polêmico gera intriga da oposição.

"Quando tinha um (gay) de um lado, mandavam para fora, não ficava na minha cidade, iam todos para a capital. Era muito comum antigamente", lembra. Ele diz ter tido a sorte de não ter preconceitos. "É tipo uma pedra bruta, você vai se lapidando. Até que você pensa 'homem, tá tudo certo, o mundo tem que ser desse jeito mesmo'", explica.

O respeito ao próximo é compartilhado com os dois filhos. O mais velho, Henrique Nunes Calaça, 24, é assistente administrativo e luta jiu-jítsu. Ele compartilha nas redes sociais o orgulho do pai, que não é LGBTQIA+. "Precisamos lutar por um mundo melhor e o preconceito nos dias de hoje é inaceitável", diz Henrique. "Lutar contra o preconceito é uma forma de demonstrar amor."