Topo

'Renasci': o policial que perdeu a perna atropelado por um Porsche no DF

Atropelado por um Porsche enquanto participava da corrida de rua 17ª Volta do Lago, em Brasília, Gueltz diz que tem dois aniversários, o de nascimento e o renascimento - Pryscilla K./UOL
Atropelado por um Porsche enquanto participava da corrida de rua 17ª Volta do Lago, em Brasília, Gueltz diz que tem dois aniversários, o de nascimento e o renascimento
Imagem: Pryscilla K./UOL

Ana Pompeu

Colaboração para o TAB, de Brasília

21/10/2022 04h01

Gueltz Costa Pinto, 42, acordou às 3h da madrugada de 26 de junho. Às 4h10 já estava a postos para a corrida de rua 17ª Volta do Lago, um revezamento de 100 km que faria junto a amigos, policiais penais como ele, saindo do Morro da Asa Delta, no Lago Sul, em Brasília. Ele correria dois trechos, somando quase 22 km. Sozinho, viu o sol nascer enquanto passava perto das grades do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente, hoje Hamilton Mourão (Republicanos). Foi sua última lembrança.

Por volta das 6h30, um Porsche o atingiu e colidiu com um poste a 180 km/h — o velocímetro ficou travado, segundo a perícia da Polícia Civil. No impacto, os pneus foram arremessados para longe, e a grade do Jaburu foi derrubada. O policial quebrou a perna e o braço direitos e perdeu muito sangue (quase dois terços, descobriu-se depois). Foi resgatado e levado ao Hospital de Base, onde quase foi declarado morto. "A perna ou a vida dele", os médicos disseram à esposa de Gueltz, Cristiane Lopes Gonçalves, 42. Ela escolheu a vida.

Gueltz teve uma infecção após a cirurgia e passou um tempo na UTI. Só notou a amputação três dias após o acidente. Sentia dores fortes na perna direita e, ao relatar aos médicos, foi informado que, em decorrência dos ferimentos do acidente, foi preciso amputar o membro. O que ele sentia era uma dor "fantasma", uma dor real que acomete 90% dos recém-amputados.

Internado, o brasiliense acordou perguntando a Cristiane se a viagem de férias a Maceió aconteceria conforme o casal tinha programado. Ela respondeu que ele não tinha dimensão do acidente — a viagem não aconteceu. Entretanto, ficou feliz ao saber que foi escoltado do acidente ao hospital por amigos, e por receber visitas de agentes da Dpoe (Diretoria Penitenciária de Operações Especiais) e de outras corporações, de colégios onde estudou e outros onde deu aulas de educação física em Brasília, e de vizinhos de quem não tinha notícia há 25 anos, elenca.

Sete minutos foi o tempo entre o resgate dos bombeiros, que fizeram um torniquete imediatamente, e o pronto-socorro do Hospital de Base, segundo relatos. Depois, o policial foi transferido para o DF Star, onde foi acompanhado por 63 dias, até a alta hospitalar, em 31 de agosto. "Foi Deus e também o socorro, que foi muito rápido. Foi primordial", conta o policial ao TAB, cerca de três meses depois do acidente.

"Perdi a perna? Fiquei reflexivo muito pouco tempo, meio parado. E comecei a comemorar que estava vivo, que eu podia ainda cuidar do meu filho, ir para casa."

Gueltz Costa Pinto, policial que sofreu um acidente em uma corrida em Brasília - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
'A perna ou a vida dele', os médicos disseram à esposa de Gueltz, Cristiane
Imagem: Pryscilla K./UOL

Da Papuda ao Porsche

Policial penal desde 2018, Gueltz trabalha no Complexo Penitenciário da Papuda, o presídio que já abrigou famosos como José Dirceu (PT), Geddel Vieira Lima (MDB) e Sérgio Cunha Mendes, da construtora Mendes Júnior.

Lotado na Dpoe, Gueltz cumpre funções como escolta de detentos para júri ou monitoramento do presídio, por exemplo. Não é rotina fixa e é disso que ele gosta. "Nada de ficar parado atrás de uma mesa, não gosto disso, não. Prefiro mil vezes o trabalho operacional. Sou um pouco hiperativo", diz ele, que decidiu prestar concursos públicos após casar (hoje, é pai de Hugo, 2). "Gosto demais da conta do meu trabalho. É praticamente um hobby."

Antes, era professor de educação física e também dava aulas de capoeira. Fã de esportes, animou-se a participar da corrida de revezamento. Contra os policiais penais disputavam outros grupos, entre eles uma equipe do Corpo de Bombeiros. Quem já tinha passado pelo trecho do Jaburu antes do atropelamento continuou em frente — e só soube do acidente depois. A via foi interditada.

Gueltz Costa Pinto, policial que sofreu um acidente em uma corrida em Brasília - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Policial no Complexo Penitenciário da Papuda, Gueltz era educador físico e capoeirista
Imagem: Pryscilla K./UOL

Enquanto Gueltz ladeava o Jaburu naquela manhã de domingo de junho, o empresário Rafael Esmaniotto Soares, 37, passaria com um Porsche a mais de 150 km/h. Também estava a bordo a namorada do motorista, Gabriella Moreira Andrade Faria, 22. Os dois morreram. No dia, Jair Bolsonaro (PL) visitou o ponto onde o acidente ocorreu, a 650 metros do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente.

Gueltz só buscou saber das circunstâncias e da dinâmica do acidente. Ouviu histórias de que o casal estava em uma festa, Gabriella foi a outra na sequência e o namorado quis encontrá-la e tirá-la de lá, e por isso ela estava no carro. Não há provas, porém, desses momentos anteriores.

Na sua casa, no Sudoeste, Gueltz conta tudo o que sabe do acidente como policial. "A partir daqui as fotos são duras, talvez vocês não queriam ver. Eu não me importo", disse ao TAB na manhã de 7 de outubro, referindo-se às imagens do inquérito policial: fotos da cena do acidente, da trilha deixada pelo Porsche e dos oito pontos marcados pela polícia (o início de derrapagem, o poste, o ponto onde o poste ficou, as manchas de sangue na grama, onde ele estava, as marcas do capotamento, a derrubada da grade do Jaburu e o ponto onde o carro parou).

Férias no Nordeste

Para Gueltz, o acidente foi algo que aconteceu a ele — e não é definidor de quem é desde então. Depois do episódio, ele andou de helicóptero pela primeira vez, junto à Divisão Operacional Aérea da Polícia Civil, saindo da base atrás do Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal.

Não vê a hora de voltar ao trabalho e de viajar com a família de férias ao Nordeste. "Depende da cicatrização e da reabilitação, não tem dia certo."

No braço, ele agora tem dois parafusos e três pinos, mas os movimentos estão quase como antigamente, o que ele atribui à flexibilidade adquirida com o histórico de diversas atividades físicas, principalmente a capoeira.

Gueltz Costa Pinto, policial que sofreu um acidente em uma corrida em Brasília - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
'No dia 26 de junho eu renasci. Foi um milagre. Ninguém contava que eu sobrevivesse'
Imagem: Pryscilla K./UOL

Enquanto espera a adaptação à prótese para a perna, Gueltz surpreendeu os médicos pela postura positiva. A expectativa é que a reabilitação será mais rápida do que se imagina, diz. As esperadas férias, também.

Gueltz diz que agora tem dois aniversários: o de nascimento e o de renascimento. "No dia 26 de junho eu renasci. Foi um milagre. Ninguém contava que eu sobrevivesse", lembra.

"Vou celebrar a vida que eu ainda tenho, a vida para cuidar do meu filho, da minha família. Nada melhor do que fazer umas coisas que nunca tinha feito, fazer essa viagem para Maceió. E ver praia e visitar o mundão."