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Hoje preso, homem famoso por lamber arma aterrorizava cidade, diz delegado

Matheus Pichonelli e Tiago Varella

Colaboração para o TAB, de Artur Nogueira (SP)

14/10/2022 04h01

O burburinho da rua chegava até o balcão de Ariel Hereman, 60, proprietário de uma loja especializada em óleos e lubrificantes automotivos no centro de Artur Nogueira, município da região metropolitana de Campinas (SP). Ele saiu para ver o que acontecia e, da esquina, a cerca de 40 metros de sua casa, observou um homem de 71 anos com um facão de cabo escuro nas mãos, aos berros, ameaçando dois advogados que trabalhavam perto dali.

Carlos Eduardo Vallim de Castro, 63, já estava no seu escritório naquela manhã fria de quarta-feira, 28 de setembro, quando viu José Sabatini, seu antigo cliente, batendo e esmurrando o vidro do carro de seu filho, também advogado, na garagem.

"Seu bosta, seu filho da puta, sai do carro, eu vou cortar seu pescoço se você não retirar o que escreveu no processo", gritava o homem.

O agressor se referia a uma decisão judicial, proferida na véspera. Vallim de Castro cobrava na Justiça os honorários de um processo em que o agressor tentava recuperar o controle de sua fábrica de motores hidráulicos. A firma é administrada por familiares desde que ele resolveu deixar o comando, dez anos atrás para, segundo amigos, descansar e pescar.

Como Logan Roy, o magnata interpretado por Brian Cox na série "Succession", da HBO, o patriarca não demoraria a se arrepender da decisão, o que motivou a ação judicial e detonou uma disputa familiar. Ele ganhou a causa e voltou à companhia, mas não pagou o advogado, que cobrou os honorários, com os juros e correções, na Justiça. Intimado a pagar, o ex-cliente recorreu da sentença com uma faca de 25 centímetros.

Também aos gritos, Vallim de Castro e o filho botaram o homem que invadiu seu escritório para correr. O agressor voltou para o seu automóvel, mas não se deu por vencido.

De onde estava, Hereman viu o momento em que o homem atravessou a rua e, de dentro do veículo, esbravejou antes de sair em arrancada. O sujeito ameaçava, mais uma vez, matar e cortar o pescoço dos seus antigos defensores.

Só então reconheceu quem era o dono da faca: José Sabatini, industrial conhecido na cidade pelo histórico de agressões, o sujeito que ganhou fama nacional como protagonista de uma série de vídeos que viralizaram nas redes sociais.

Em um deles, gravado no início de 2021, ele ostenta uma pistola enquanto treina tiro e ameaça atirar no ex-presidente Lula (PT). A repercussão rendeu ao empresário um processo iniciado pelo petista por injúria, calúnia e difamação. Ele também teve as armas apreendidas. O caso ainda não foi julgado, não houve conciliação e uma audiência de instrução está marcada para o ano que vem.

Em 21 de setembro de 2022, cerca de um ano e seis meses depois das ameaças, ele voltou a ter acesso às armas. No exato dia em que foi buscá-las, em uma delegacia do centro de São Paulo, Sabatini gravou uma outra sequência de vídeos caminhando pela rua Brigadeiro Tobias ostentando uma espingarda e conclamando o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), a promover um golpe de Estado do país.

Em uma das cenas, já dentro do carro, ele lambe o cano de sua espingarda recém-recuperada. A imagem correu o país.

Por causa da repercussão, as armas seriam apreendidas novamente por agentes do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa de São Paulo. A busca aconteceu no mesmo dia em que o empresário ameaçou seu ex-advogado com uma faca: 28 de setembro.

Centro de Artur Nogueira, cidade do interior de São Paulo - Matheus Pichonelli/UOL - Matheus Pichonelli/UOL
Prédio da antiga estação de trem numa praça no centro de Artur Nogueira (SP)
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Grosso calibre

Ameaçar seus antigos advogados com faca não foi uma boa ideia para Sabatini.

A fúria com que se aproximou das vítimas jogava por terra o argumento de que os vídeos enviados aos amigos, em que aparece armado e furioso, eram direito à liberdade de expressão.

Após a invasão do escritório, os advogados foram até a polícia pedir proteção. Àquela altura, a cena de Sabatini lambendo o cano da arma ganhava mais e mais repercussão. Em outras palavras: se algo acontecesse, o mundo todo ficaria sabendo que ninguém tomou qualquer providência.

Sabatini foi preso no dia 4 de outubro.

A descrição das ameaças contra as vítimas consta no boletim de ocorrência anexado pelo advogado Alceu Jorge Vieira, novo defensor de Sabatini, em um pedido de habeas corpus em favor do cliente.

O caso corre em sigilo, mas seus detalhes, no pedido de habeas corpus, ficaram abertos e disponíveis na internet com uma simples consulta processual.

Por ironia, os escritórios dos antigos e do novo advogado são próximos, separados por uma rua, a poucos metros de distância um do outro.

No pedido de prisão preventiva, também anexado ao pedido de habeas corpus, o delegado da cidade, Filipe Rodrigues de Carvalho, recordou que, além de atacar os defensores, o empresário já havia proferido ameaças de morte contra Lula e também aos ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, "sempre fazendo uso de armamento de grosso calibre e dispondo de tal conduta em redes sociais".

Para ele, era um perigo manter em liberdade alguém que ameaçava advogados e transitava armado em via pública. Carvalho citou a garantia da ordem e justificou o pedido, dizendo que a população nogueirense não se sentia segura com Sabatini à solta. O pedido foi endossado pelo Ministério Público e acolhido por uma juíza.

Exact Power, empresa da família Sabatini em Artur Nogueira (SP) - Matheus Pichonelli/UOL - Matheus Pichonelli/UOL
Exact Power, empresa da família Sabatini na região metropolitana de Campinas (SP)
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Tratoraço e tiro na perna

"Xarope", "perturbado" e "perigoso" foram alguns dos adjetivos usados pelos moradores de Artur Nogueira para definir José Sabatini durante uma visita da reportagem do TAB na segunda-feira (10). Em uma cidade com pouco mais de 55 mil habitantes, o empresário é figura conhecida.

Naquela tarde chuvosa, com bandeiras a meio mastro espalhadas por uma cidade em luto pela morte de um ex-prefeito, o que mais se ouvia pelas ruas era que as autoridades demoraram a tomar alguma atitude contra seu cidadão mais conhecido.

Histórias sobre o filho de imigrantes italianos nascido em Viradouro (SP) não faltam. Uma antiga vizinha lembrou o dia em que Sabatini, irritado com o barulho de adolescentes em frente à sua casa, num domingo à noite, passou com um trator em cima dos carros estacionados. O episódio não está registrado em boletins de ocorrência ou em processos judiciais, mas já é parte do folclore criado em torno do empresário e foi narrado por mais de uma pessoa.

Na cidade, Sabatini ficou conhecido como o empresário que atirou na perna de um antigo sócio em 1997. Acabou indo a júri popular por tentativa de homicídio, mas, no fim, foi condenado por lesão corporal. A pena de quatro anos, em regime semiaberto, foi extinta por cumprimento.

Também ficou famoso por gravar vídeos em tom de ameaça contra todo mundo que identifica como inimigo do país — dos ministros do STF a Lula, passando pela apresentadora Fátima Bernardes, da TV Globo. Nem todos ganharam os holofotes, mas é possível dizer que não tem cidadão nogueirense que não recebeu as mensagens via celular.

Há quem jure que Sabatini e um de seus filhos chegaram a trocar tiros, no auge da batalha judicial pelo controle da empresa.

O histórico de brigas familiares é tamanho que um amigo de longa data calcula que o filho, com quem havia se reconciliado recentemente, no fundo deve ter comemorado a prisão do pai: em poucos dias, ele perdeu as armas, a liberdade, o processo contra os advogados e o controle da empresa — a justa razão que o levou a contratar os defensores.

Na delegacia da cidade, onde passou uma noite antes de ser levado ao Centro de Detenção Provisória de Americana (SP), o que se fala é que nenhum amigo ou parente chegou a visitá-lo.

"Ele não é a mesma pessoa que conheci há muitos anos. Virou um psicopata e agora todo mundo tem medo do que ele pode fazer", disse um conhecido, sob anonimato.

Com medo de retaliação, ninguém de Artur Nogueira topou se identificar ao contar as histórias da família Sabatini.

Os amigos dizem que o empresário sempre andou armado. A diferença é que agora as blagues e ameaças são registradas em vídeo. "O que mudou foi isso aqui, ó", diz um amigo, apontando para o celular.

Há também outra diferença: Sabatini sempre foi um eleitor conservador, saudoso da ditadura e de políticos identificados à direita, como Paulo Maluf e certos candidatos do PSDB. Também é "anticomunista". Mas só se envolvia em política quando resolvia doar dinheiro para as campanhas de candidatos a prefeito na cidade — geralmente todos os que tivessem chance de se eleger.

Em vídeo gravado em setembro, ele pede que no dia das eleições os bolsonaristas invadam o Congresso, o STF e agridam o ministro Alexandre de Moraes - Reprodução - Reprodução
Em vídeo gravado em setembro, Sabatini pede para bolsonaristas invadirem Congresso e STF
Imagem: Reprodução

Ódio alimentado com fake news

Tudo mudou com a ascensão de Jair Bolsonaro, de quem se mostrava um fiel soldado (armado) nas redes sociais.

Em uma rara entrevista gravada para o site do jornal O Nogueirense, em maio de 2021, é possível perceber como a revolta do empresário foi alimentada, ao longo dos anos, com informações tiradas de contexto e fake news, dessas que correm nos grupos de WhatsApp para justamente provocar revolta dos eleitores — como um suposto "roubo" de R$ 84 bilhões dos fundos de pensão, do qual Lula nunca foi acusado, a geração de milhões de empregos na China às custas do fechamento de fábricas brasileiras e o envolvimento de uma filha do ex-presidente com uma ONG suspeita.

Na entrevista, ele se gabou da repercussão e do número de visualizações dos vídeos em que ameaça Lula e disse que tudo não passou de uma "gozação entre amigos". "Atirei no escuro e acertei no alvo. Agora o estrago está feito."

Sabatini contou que quis gravar o vídeo após o ex-presidente deixar a prisão, em 2019, por ordem do STF.

Classificou o ato como uma rebeldia e atribuiu o ódio ao PT a um episódio citado por ele como "traumático", quando morava e trabalhava em São Paulo, em que um sindicalista o teria convidado a participar de greves e praticar atos de violência nos anos 1970, durante a ditadura. O Partido dos Trabalhadores, porém, só foi criado na década seguinte.

Sabatini classificou o governo petista como um desastre e manifestou revolta com um pedido de clemência, assinado por Dilma Rousseff, para o governo da Indonésia libertar um cidadão brasileiro condenado à morte por tráfico de drogas no país.

Foi o suficiente para ele concluir que Lula, Dilma e o PT tinham solidariedade apenas com traficantes, nunca com policiais. Sabatini sugeriu que o governo faria melhor se, em vez de "dar dinheiro para a UNE e a Lei Rouanet", comprasse inseticida para proteger as crianças brasileiras do mosquito da dengue.

Casa de José Sabatini, numa rua tranquila de Artur Nogueira - Matheus Pichonelli/UOL - Matheus Pichonelli/UOL
Casa de José Sabatini, numa rua tranquila de Artur Nogueira
Imagem: Matheus Pichonelli/UOL

Fã de Pepe Mujica

Sobre Bolsonaro, ele disse admirar o trabalho do atual presidente e o comparou a Pepe Mujica — ex-presidente uruguaio considerado uma referência da esquerda na América Latina —, de quem se disse um fã em razão de sua honestidade.

O empresário deixou claro também que tinha planos para entrar na política, de preferência pelo PTB de Roberto Jefferson. O vídeo, segundo ele, era uma "carruagem" em direção à vida pública que passou por sua casa e na qual deveria embarcar.

Não foi bem o que aconteceu.

Um amigo de velha data diz que não se pode dissociar o extremismo de Sabatini a sua trajetória pessoal. "Ele era um visionário. Trabalhou anos com motores hidráulicos, a princípio como empregado, e criou uma peça nova, que patenteou, levou para sua própria empresa e passou a vender pelo Brasil inteiro. Ele é realmente bom nisso. Mas, quanto mais poder e dinheiro a pessoa tem, pior ela fica", lamenta.

O mesmo amigo observa uma relação de base psicológica entre a devoção a Bolsonaro e o histórico familiar de Sabatini, marcado por desavenças e agressões. Era como se o empresário buscasse em um líder político que tanto fala em restaurar a ordem e a defesa das famílias uma forma de dar sentido, ganhar respeito e compensar as frustrações deixadas pelas brigas particulares.

A reportagem entrou em contato com Sabatini por meio de seu advogado. O defensor, porém, disse que não iria fazer nenhum comentário.

Procurada, a seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil informou, em nota, que não admite nenhum tipo de violência, sobretudo contra a advocacia, e está à disposição para que as garantias das prerrogativas dos profissionais sejam preservadas e as eventuais condutas criminosas, apuradas.