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Com urna eletrônica não há fraudes, diz mesário mais antigo de São Paulo

Ary Prizant, 91, mesário há quase 70 anos em São Paulo - Simon Plestenjak/Folhapress
Ary Prizant, 91, mesário há quase 70 anos em São Paulo Imagem: Simon Plestenjak/Folhapress

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

03/10/2022 12h56

Ary Prizant saiu de casa às seis da manhã. Com o auxílio da bengala, caminhou devagar a curta distância entre o prédio onde mora, no bairro do Itaim Bibi, e a escola Pueri Domus, que fica na mesma rua. Foi o segundo mesário a chegar e ocupou a mesa reservada para ele na 21ª seção. Enquanto aguardava o relógio marcar 8h, a monotonia da espera pelos eleitores era quebrada por colegas que passavam pela sala e o cumprimentavam o tempo todo. Por sua vez, o senhor de 91 anos retribuía a atenção com simpatia e brincadeiras.

Uma dessas colegas era Andréa Ferreira Fonseca, 44, que atuava como apoio logístico. "Estou na quarta eleição aqui nessa escola e quando cheguei ele já trabalhava como mesário. É conhecido por todo mundo, uma figura que cativa. Está sempre auxiliando as pessoas e conversando", testemunhou. Mais do que estar entre conhecidos, outro motivo fazia Ary se sentir tão em casa no ambiente: os quase setenta anos de experiência na função, que o alçaram ao posto de mesário mais antigo de São Paulo.

De 1953 para cá, não houve nenhuma eleição em que ele não estivesse presente. Não sabe ao certo quantas foram, porque nunca contou. Um feito reconhecido pelo TRE-SP, que o homenageou com uma medalha pelos serviços prestados à Justiça eleitoral. Quando conversou com o TAB, Prizant carregava passado e presente nas mãos. Além de documentos que registravam o começo da sua trajetória como mesário e da condecoração que ganhou recentemente, portava a convocação recebida em junho para as eleições de 2022.

Fitando o material, deixou os pensamentos escaparem. "Não basta ser brasileiro. Temos que ser patriotas. Temos que colaborar, defender e preservar a dignidade do nosso país. A eleição é uma prova dessa dignidade. É democracia pura."

Ary Prizant, 91 - Simon Plestenjak/Folhapress - Simon Plestenjak/Folhapress
Imagem: Simon Plestenjak/Folhapress

Não é à toa que o advogado, que exerceu o ofício até seis anos atrás, fala de democracia com os olhos brilhando, e ele se orgulha muito de participar do momento em que ela é posta em prática. A considera valiosa porque viu de perto os horrores de duas ditaduras: a de Getúlio Vargas e a militar.

As expressões do rosto de Prizant rechaçaram as lembranças revisitadas, de estupros, mortes, prisões, crianças roubadas das mães, suicídios forjados e pessoas em silêncio para preservar a vida. "Quem levantava a voz contra a ditadura tinha que correr, fugir, porque o pessoal ia com paus e pedras atrás do cidadão. Vi isso muitas vezes. Se fosse pego, ia para a cadeia, para o cárcere privado. E não podia reclamar. Ia reclamar com quem? Com que chefe, se era o chefe que fazia aquilo?"

Por isso, faz questão de participar das eleições. Quando o portão da escola foi liberado, o mesário redobrou a concentração. Assim que o primeiro votou, foi a vez dele. Apanhou a cola guardada e foi para a urna. Depois sentou-se novamente. Encontrava amigos na seção, mas não esticava a conversa para não atrapalhar o andamento do trabalho.

Ficava de olho na urna, para ver se estava tudo em ordem, e se a seção estava vazia com alguém esperando na fila sem necessidade. Como o movimento ainda era pequeno, já que o frio desencorajara os eleitores a sair de casa cedo, ele aproveitava para brincar com os outros mesários e repetir o quanto é apaixonado pela esposa Lídia, com quem é casado há 61 anos. É ao lado dela que o advogado gosta de passar o tempo livre, desde que se aposentou.

Mesario Ary Prizant, 91 - Simon Plestenjak/Folhapress - Simon Plestenjak/Folhapress
Imagem: Simon Plestenjak/Folhapress

Obra do destino

Foi por acaso que Prizant entrou no mundo da política. Nascido no Rio, morou alguns anos em Belém e de lá mudou-se para São Paulo, em 1948. Mesmo depois de décadas, as lembranças daquele tempo ainda estão frescas na memória de mesário veterano. Em 22 de março de 1953, pegou um ônibus na Praça da Árvore, onde morava, rumo a Vila Mariana. Não precisou pagar pela viagem, pois na época os candidatos ofereciam transporte gratuito para conquistar os eleitores — prática que era permitida.

O jovem de 19 anos se sentiu importante ao votar na primeira eleição municipal direta em São Paulo desde 1925, uma vez que durante a era Vargas (de 1930 a 1945) os prefeitos da capital eram nomeados por interventores escolhidos pelo presidente. E pelos governadores, depois do fim do Estado Novo. Assim que votou na eleição que elegeria o jovem Jânio Quadros, recebeu de volta os documentos e uma pergunta. "Você está ocupado?", quis saber a moça. "Não. Por quê?", questionou. "É porque um mesário faltou. Tu não quer substituí-lo?", ela indagou. "Ah! Tudo bem. Com todo o prazer", empolgou-se.

Seção onde Ary Prizant trabalha, no colégio Pueri Domus, no Itaim Bibi - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Seção onde Ary Prizant trabalha, no colégio Pueri Domus, no Itaim Bibi
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Era uma oportunidade de conhecer pessoas, ser conhecido e, de quebra, servir ao país. Como muitas pessoas na época, Prizant era filiado a um partido político. Pertencia ao PSP (Partido Social Progressista), embora não fosse muito atuante. Isso até Wladimir de Toledo Piza, do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), ser eleito prefeito. Por ter ficado próximo do gestor municipal ao trabalhar no partido, foi chamado para integrar o gabinete dele, onde permaneceu dois anos.

Fã das urnas eletrônicas

Ary Prizant também participou da apuração de votos. Fazia parte de um dos vários grupos que havia na cidade, compostos por dois mesários e um secretário. Cada trio recebia as urnas de madeira ou de lona lacradas, lia a ata e conferia os dados contidos nela. Depois abria os envelopes e separava as cédulas de cada partido, fazendo montinhos. Por fim, contava os votos e transmitia os números ao secretário, que os registrava em livros grandes. A hora da abertura dos envelopes era sempre uma surpresa. Dentro de alguns, o advogado, que começou a carreira como despachante policial, encontrava até 40 "santinhos" do candidato votado.

Nas eleições, as urnas podiam ser fiscalizadas por representantes dos partidos. Mas na hora da apuração, eles não estavam presentes. Por isso, fraudes podiam acontecer. O mesário conta que presenciou algumas. Como os números dos candidatos ficavam próximos, era possível "puxar a régua para baixo" e transferir os votos para o adversário. Embora a população se interessasse por política, a falcatrua não chegava ao conhecimento de ninguém porque os jornais não falavam no assunto.

Urna eletrônica na seção onde o mesário Ary Prizant trabalha - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

É por isso que ele valoriza tanto o sistema eleitoral atual. "Com a urna eletrônica não há fraudes. Acabou a marmelada que tinha antes. Bendita hora que o Brasil adotou esse sistema único no mundo. Temos que nos orgulhar disso. A gente tem o resultado da eleição no mesmo dia."

Ary fica indignado com quem coloca a credibilidade dela em xeque. "Tem gente que fala que tem fraude, mas como advogado eu pergunto: e a prova? Chega de falar bobagem. Se provar, vou acreditar. Mas enquanto não tem, é a urna mais honesta que existe."

Prizant não vê mais a violência das ditaduras, mas teme a dos dias atuais, causada pela polarização política. Também critica a quantidade de partidos políticos no país — são mais de 30. "Precisa de tudo isso? Tem mais partidos do que os dedos nas mãos. Não entendo como é permitido um troço desses", afirma. Aborrecido com essa "bagunça", desistiu de acompanhar o dia a dia de partidos e candidatos.

Quando olha para o futuro, se vê desempenhando a função que o acompanhou por toda a vida. Mas sabe que não depende dele. "Essa resposta é do Tribunal Regional Eleitoral. Não é minha. Não sei se estarei vivo na próxima eleição, mas se for convocado, não falto. A não ser que tenham que me carregar. Mesmo assim, se me carregarem, eu vou." Por ora, se concentra em voltar ao Pueri Domus no fim do mês, para cumprir sua missão no segundo turno.