Topo

Tapa-sexo censurado, mãe aos 60: o legado de Gal Costa segundo ela mesma

Transgressora: no ensaio de 2017 para o UOL, Gal tinha 72 anos e posou para as fotos mostrando o dedo do meio e fazendo o chifrinho de heavy metal - Lucas Lima/UOL
Transgressora: no ensaio de 2017 para o UOL, Gal tinha 72 anos e posou para as fotos mostrando o dedo do meio e fazendo o chifrinho de heavy metal
Imagem: Lucas Lima/UOL

Da Redação

10/11/2022 04h01

O olhar penetrante na hora da foto e a boca pintada com sorriso largo denunciavam: a diva da MPB estava entre nós.

Era 2017, o nome dela era Gal Costa, ela estava com 72 anos e posava para as fotos mostrando o dedo do meio e fazendo na mão o chifrinho de heavy metal, que estampava à época o então novo trabalho, "Estratosférica Ao Vivo". O disco resgatava canções de cinco décadas de transgressão na música — em especial "Gal a Todo Vapor", objeto cultuado na MPB que, em 1971, desafiou a ditadura militar e transformou em musa do desbunde e da contracultura brasileira a cantora morta nesta quarta-feira (9).

A ditadura foi a época em que Gal se tornou a principal tropicalista no Brasil, enquanto seus camaradas Caetano Veloso e Gilberto Gil viviam no exílio em Londres. A barra que segurou foi pesada, ela logo lembrou. "Sentia agressividade das pessoas na rua. Eu me vestia como ia para o palco. Meu cabelo era black power, minhas roupas eram meio hippies e as pessoas não gostavam muito, me chamavam de piolhenta, mandavam eu tomar banho."

A entrevista feita pelo UOL em 2017 aconteceu numa casa no bairro da Bela Vista, em São Paulo, onde ficava a assessoria de imprensa da artista. Gal se ajeitou no canto do sofá e falou por quase duas horas, sempre sorrindo, sobre seus mais de cinquenta anos de carreira.

Gal Costa - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

'Um lugar livre'

Vez ou outra pontuava suas falas com o riso inconfundível, principalmente quando lembrava dos anos 1970 e das areias de uma parte da praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, que ficou conhecida pelos jovens da época como "Dunas da Gal".

"Era um lugar onde ninguém ia porque tinha uma obra, tinha um duto que ia até dentro do mar. E tinha umas dunas de areia por causa da obra. E eu e [o músico e compositor] Jards Macalé começamos a ir lá justamente porque não tinha ninguém. Aí todo mundo passou a ir, as pessoas legais, né?"

Confortável, não se importava em falar sobre o comportamento sexual da época, embora se considerasse "careta". "As pessoas achavam que eu me drogava. Nunca gostei de nada que me tirasse do sério, do meu centro. Também não trepava na praia (risos), eu tinha vergonha. Mas era um lugar livre, era um lugar bacana, onde se conversava de tudo, onde as pessoas faziam o que queriam e tudo certo."

Gal Costa - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

Corpo censurado

A trajetória musical de Gal sempre foi marcada por ruptura e transgressão. Em 1973, ela pisou mais na terra, gravou a versão guarânia de "Índia", hoje lembrada como um dos registros mais poderosos de sua carreira. O encontro com as raízes brasileiras fez Gal vestir a persona e posar para fotos pintada e com os seios de fora.

"Eu me lembro que foi uma sessão longa, ao ar livre, talvez no Jardim Botânico [do Rio de Janeiro]. Eu estava com um tapa-sexo, não era nem biquíni, e as fotos foram feitas pelo [fotógrafo] Antonio Guerreiro, que também fez a roupa", conta.

A capa escolhida para o disco "Índia" era até discreta: apenas a imagem da barriga e do tapa-sexo. "Quando o disco saiu foi proibido, a censura proibiu. Não sei como a gravadora resolveu esse problema, mas sei que foi vendido num saco plástico, invólucro. Eu achei um absurdo, claro, porque ali não tinha nada de mais. A única coisa era eu expor meu corpo, eu acho que naquela época nem existia essa coisa de mulher expor o corpo. Não existia a revista Status, a revista Playboy."

Ela viria a posar nua, na década seguinte, num momento em que o nu feminino ainda não era comum, muito menos para uma cantora da MPB. "Já tinha posto tudo pra fora quase [risos], só faltava o que estava embaixo do tapa-sexo, que aí eu mostrei suavemente. Eu achei que não era nada de mais, as fotos eram elegantes."

Dessa época, disse sem rodeios, que era muito paquerada "porque era gostosa", mas que nunca sofrera assédio sexual. "Quando eu me propus a ser cantora, eu disse: eu nunca vou ceder nada para conseguir alguma coisa. Nunca! Nenhum diretor me pediu pra dar pra ele: 'Vem trepar comigo que eu faço um disco'. Nunca! Eu viraria as costas. Quando eu comecei a minha carreira era uma coisa que as pessoas me diziam: 'Olha, vai acontecer isso.' Era meu próprio temperamento."

Engatinhando no palco

Ser dona do próprio corpo e dos próprios gestos fez a garota tímida desencantar. Em "Gal Tropical" (1979), ela subiu no salto alto e vestiu um longo brilhante. Nascia ali um dos mais potentes símbolos sexuais da música.

Em 1994, sob o impacto da morte da mãe, Gal rompeu outra vez. No show do disco "O Sorriso do Gato de Alice", deixou de lado a exuberância e acatou a sugestão do diretor Gerald Thomas para que entrasse em cena engatinhando silenciosamente: uma gata perdida na noite.

A provocação ia além. Durante a música "Brasil", de Cazuza (exatamente no trecho: "Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim"), Gal levantava os braços e a camisa aberta revelava seus seios. Na plateia, tinha quem vaiava e quem aplaudia. Mas não se falava em outra coisa.

"As pessoas focaram muito nessa coisa do peito e o espetáculo que era lindo, maravilhoso, acabou se perdendo no sentido de que as pessoas não olhavam para outras coisas bonitas que havia. E era uma bobagem porque meu peito eu já tinha mostrado, não era novidade". Ao relembrar das críticas que faziam ao show, ela reforçou: "Eu amava entrar engatinhando naquele palco".

Gal Costa - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

'Está muito perigoso, não só na política'

"Imagina eu, se fosse naquela época, eu seria presa", disse. "Agora tá foda. Agora tá difícil, está muito perigoso. Não só na política. No mundo inteiro, tá um caos. Parece que estamos chegando no fim do mundo. As pessoas estão com raiva, estão com ódio."

Naquele momento, a expressão de Gal ficou séria. Na época da entrevista, grupos de conservadores atacaram exposições de arte e museus, fazendo com que a exposição "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", em cartaz em Porto Alegre, fosse cancelada.

"Arte é arte, não tem como associar à pedofilia. Essa censura é absurda vindo de cima [institucional] ou de baixo [população]. O pior é que as pessoas se contaminam com isso. As pessoas têm que entender aquilo que o artista está querendo dizer e não suprimir, esmagar. Não pode haver censura pra arte, nem pra nada. É proibido proibir."

Mãe aos 60

E como ela transgredia naquela época, aos 72 anos? Gal estava confortável mesmo era no papel de mãe. Ela, que nunca engravidou e descobriu tardiamente ter as trompas interrompidas, decidiu aos 60 anos que iria adotar uma criança.

"Encontrei Gabriel, que é a cara da família do meu pai. Eu amo o Gabriel como se tivesse saído da minha barriga, ele veio de uma barriga de aluguel pra mim e tem meu DNA espiritual".

Naquela tarde, após relembrar os tempos áureos e loucos, ela mostrava fotos do cachorro que adotou a pedido do filho. "Ele ficou com ciúmes do cachorro e agora quer um PS4 (PlayStation 4)", disse, gargalhando. "Ah não, dá um tempo."

Segundo Gal, Gabriel era quem a embebia de energia para continuar a carreira — fato que via refletido na plateia, que a cada ano rejuvenescia, para a sua incredulidade.

"Eu nunca imaginei que com essa idade eu estaria fazendo o que estou fazendo, com um público jovem e a carreira ainda mutante aos 72 anos. Eu não imaginava isso quando comecei, aos 22."