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De vanguardista a 'cancelada': quem foi a lendária drag queen Kaká di Polly

Kaká di Polly, drag queen que foi considerada "rainha da noite" de São Paulo - Paulo Vitale/Divulgação
Kaká di Polly, drag queen que foi considerada 'rainha da noite' de São Paulo
Imagem: Paulo Vitale/Divulgação

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

28/01/2023 04h01

Vestindo um casaco de pele que pertenceu à sua mãe, a drag queen Kaká di Polly chegou a uma festa na Homo Sapiens, casa noturna no centro de São Paulo. Era uma noite qualquer na década de 1990 — uma em que, depois de uma chuva intensa, ficaram poças d'água na rua. Kaká ficou com medo de se molhar e estragar o look, e decidiu "sacrificar" o casaco, jogando-o na poça, para passar por cima dele. "Bicha, joguei com dor no coração, mas não perdi o carão", dizia ao lembrar da história.

Kaká era como se identificava o artista Carlos Alberto Polycarpo, 63, que teve uma parada cardíaca e morreu na segunda-feira (23), após cinco dias de internação devido a uma dor na lombar. Ícone da noite LGBTQIA+, quando a drag queen chegava às festas, os DJs paravam tudo e tocavam sua canção preferida, "Meu mundo caiu", da Maysa. Kaká, espalhafatosa, pegava uma garrafa de vodca e se deitava no chão agarrada a ela.

Kaká também ficou famosa por deitar noutro chão, o da avenida Paulista. Na primeira Parada Gay de São Paulo, em 1997, a Polícia Militar não estava especialmente disposta a liberar a pista para a caminhada de cerca de 600 manifestantes.

A drag queen então fingiu desmaiar e se deitou na avenida, dispersando a atenção dos policiais, e permitindo que o carro de som e a passeata passassem. Minutos depois, levantou-se e disse a uma amiga: "Estamos longe da polícia? Então corre, querida. É tudo enganação".

Marilyn Du Morro e Kaká di Polly relembram a primeira marcha na Parada de 2000 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Marilyn Du Morro e Kaká na Parada Gay, em São Paulo, em 2000
Imagem: Arquivo Pessoal

'I Will Survive'

Em dezembro passado, o jornalista Chico Felitti, 36, lançou o livro "Rainhas da noite: as travestis que tinham São Paulo a seus pés" em um teatro. Entre as atrações da noite estava uma performance de Kaká, que no palco interpretou a música "I Will Survive", de Gloria Gaynor. Uma frase dela que ficou marcada no autor foi: "Até pra me esquecer, vocês vão ter de lembrar de mim".

Kaká, uma das fontes do livro, é lembrada pelo autor pela generosidade de abrir sua casa e sua história. É considerada uma das protagonistas da noite paulistana entre as décadas de 1970 e 2010, junto a Jacqueline Welch, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan, três travestis que lideravam uma espécie de "máfia" para proteger a comunidade LGBTQI+ no centro da cidade.

"Na época dela, chamavam-na de transformista, mas ela se considerava artista. Sempre foi uma figura que brincava com gêneros, algo fluido", destaca Felitti.

Nascida em uma família de classe média alta, Kaká nunca precisou da prostituição para sobreviver. Sempre andava com carros bons e as melhores roupas, uma condição que, junto ao talento, permitiu-lhe circular por onde desejava.

Fã de Kaká, Silvetty Montilla, 55, diz que a trajetória da drag queen pode ser resumida na palavra "pioneira".

Kaká foi vanguardista, pois viveu uma época em que ser drag queen não era usual, diz Jaime Braz Tarallo, 64, amigo de longa data da drag queen, e mais conhecido como a personagem Lizz Camargo, cover de Hebe Camargo. "Criou um verdadeiro pelotão de resistência num cenário nem sempre propício ao universo LGBTQIA+ da época."

Kaká Di Polly durante a Parada do Orgulho LGBT, em 2016 - Greg Salibian/Folhapress - Greg Salibian/Folhapress
Kaká na Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, em 2016
Imagem: Greg Salibian/Folhapress

Militante sem descanso

Integrante da Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, Carolina Iara, 30, conheceu Kaká na militância. "Ela continuava ativa nas pautas sociais LGBTQIA+ até os últimos momentos de sua vida", diz, citando a mobilização da drag queen pela reabertura do Museu da Diversidade Sexual, no centro da capital paulista.

O fotógrafo Paulo Vitale, 57, não esquece que o dia em que Kaká soube da ideia do livro "Drags", que reuniria fotos de 50 drag queens, das mais antigas às mais novas. Eles estavam num estúdio, e ela disse que ela deveria escolher quem deveria estar entre as 50 — o fotógrafo acatou as escolhas, tanto que a considera coautora do livro.

Nem todo mundo viu Kaká sempre com bons olhos: a artista declarou apoio a Jair Bolsonaro em 2018. Ela se arrependeu depois, mas não foi perdoada por muitos ativistas.

Para Felitti, o julgamento duro de Kaká não foi justo. "O que ela fez em vida é importante, não só por um momento ali que se avalia como um erro. E ela se sentia bastante injustiçada por isso, já que reduziram a vida dela ao apoio a um candidato", recorda o jornalista. "A gente precisa aprender que as pessoas são humanas e elas vão fazer coisas com as quais a gente discorda e não precisa cancelar a existência delas por causa disso."

Valder Bastos, 53, intérprete da personagem drag TchaKa, diz que Kaká não é tão reconhecida justamente por não ter submetido sua existência ao sistema, sem medo de ser "cancelada".

O artista plástico Miguel Angelo de Abreu, 55, também considera que a amiga não foi tão valorizada quanto merecia. "Agora, após o falecimento, haverá uma comoção, histórias, causos, figuras pegando carona nas mídias, mas, no cotidiano, nós sabemos que não é assim."