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'Dedicada e poliglota': Natália, do Papo de Preta, lutava pela autoestima

Morta aos 29 anos vítima de uma parada cardiorrespiratória, Natália Romualdo criou com a parceira Maristela Rosa o canal de YouTube que se tornou referência para outros criadores e influencers negros - Arquivo pessoal
Morta aos 29 anos vítima de uma parada cardiorrespiratória, Natália Romualdo criou com a parceira Maristela Rosa o canal de YouTube que se tornou referência para outros criadores e influencers negros
Imagem: Arquivo pessoal

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

11/01/2023 04h01

"Não posso morrer sem ver o show da Beyoncé" foi uma das últimas frases que a ativista e jornalista mineira Natália Romualdo, 29, trocou com a amiga e conterrânea Maristela Rosa, 31, mestre em comunicação e criadora de conteúdo. Natália estava em São Paulo para participar da CCXP, feira de cultura pop com estandes de grandes indústrias das histórias em quadrinhos, filmes e séries para TV, e de outros eventos de trabalho, quando passou mal. Dias depois, em 10 de dezembro, ela morreria na Santa Casa de São Paulo, onde estava internada.

Natália foi vítima de uma parada cardiorrespiratória no apartamento em que estava hospedada e chegou a ser reanimada, mas teve duas outras paradas respiratórias no hospital e não resistiu. Sua morte súbita causou perplexidade, uma vez que a comunicadora não fazia tratamento de saúde, nem tinha histórico de problemas cardíacos. "Foi um infarto agudo do miocárdio, esse foi o laudo médico", informou Maristela ao TAB. Somente agora, um mês depois da tragédia, familiares e amigos se sentiram mais à vontade para falar.

Natália e Maristela se conheciam desde a faculdade em Juiz de Fora (MG) e eram as responsáveis pelo conteúdo do canal "Papo de Preta", criado em 2015, com mais de 180 mil inscritos e mais de 100 mil seguidores nas redes sociais.

'Alfabetização racial'

Maristela e Natália começaram a parceria na produtora de multimeios da Universidade Federal de Juiz de Fora. Lá, fizeram programas educativos e reportagens para internet, nas quais eram responsáveis pela edição, cinegrafia, texto e apresentação.

Ao fim da graduação, as duas decidiram seguir na carreira juntas. "A gente estava lendo muito sobre questões raciais. Era a primeira vez que eu estava entendendo o que era racismo mesmo", conta Maristela. "Estava sabendo mais sobre o que tinha a ver comigo, o quanto eu passava na vida por ser uma pessoa negra, uma mulher afrodescendente".

Natália acabava de passar por sua primeira transição capilar, processo das mulheres negras de eliminar os tratamentos químicos de alisamento para adotar o cabelo de textura natural. As duas então decidiram criar um espaço onde pudessem falar dessas experiências, debater estudos sobre mulheres negras e tratar de outros temas de que gostavam — música, beleza e maquiagem.

Natália Romualdo e Maristela Rosa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Não sei quantos conseguiram enxergar o que a gente fazia como trabalho, não como videozinhos', diz Maristela
Imagem: Arquivo pessoal

Jornada tripla

Em 2015, a ideia saiu do papel e teve início o "Papo de Preta" no YouTube, projeto que desde então se tornou referência. "A gente estudava o que ia falar, era tudo bem feito, mas nunca conseguimos viver disso. Sempre tivemos jornada dupla, tripla", contou Maristela. "Não sei quantas pessoas conseguiram enxergar o que a gente fazia como um trabalho de fato, não apenas duas meninas fazendo videozinhos."

Nos últimos sete anos em que esteve próxima da amiga, Maristela disse que viu Natália crescer como mulher. E usar a afirmação da beleza e de sua força interior para uma causa coletiva. "Sempre falavam das cores dos batons que ela usava, coloridos. Eu a vi se transformar e usar o que ela queria. Falava francês, inglês, espanhol e dava o máximo de si, sempre com alegria."

Natália Romualdo e Maristela Rosa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Recentemente, Natália trabalhou num projeto para inclusão da população LGBTQI+ no mercado de trabalho
Imagem: Arquivo pessoal

'Legado de amor'

Valter Souza, 38, mais conhecido como Valter Rege nas redes sociais, é o criador de conteúdo autointitulado "blogayrinho de favela". Ele diz que a lembrança mais afetuosa que tem de Natália é de sua participação, em junho de 2016, no canal "Papo de Preta", ao lado de outros youtubers negros.

O objetivo do encontro era falar de questões como o racismo no dia a dia, a falta de oportunidades para crianças pretas e a ausência de rostos negros em propagandas e novelas. Para Valter, Natália foi uma das precursoras do debate sobre autoestima nas redes sociais, tema pouco explorado até bem recentemente.

"Ela deixa um legado de autovalorização, de amor. O trabalho que ela fez junto com a Maristela é muito importante. As duas viram uma oportunidade dentro do audiovisual, colocaram a cara delas e foram capazes de construir uma sociedade negra nesse ambiente." Recentemente, ela atuava em um projeto para incluir a população LGBTQI+ no mercado de trabalho e disse ao "blogayrinho de favela": "Te quero no time". A morte súbita impediu os planos. "Foi um choque. A gente não espera isso, do nada."

'Uma joia'

O rapper Joao Gabriel Augusto dos Santos Romualdo, 23, mais conhecido como Jotagefaus, comove-se ao falar da irmã. "Ela era um ser raro, uma joia do milênio", diz. "Pessoas como ela são raras de existir. Não é qualquer família que tem a sorte de ter um ser humano assim, uma benção de Deus."

Amiga de longa data de Natália, a estatística Fernanda Cardoso Rosa Gonçalves, 43, a conhecia do "Papo de Preta", quando participaram juntas de uma edição do programa "Aceleradora de Carreiras", do Grupo Mulheres do Brasil. As duas se falaram na véspera da morte da ativista.

"Conversamos por horas ao telefone e fizemos planos para iniciar 2023 e fortalecer a causa da diversidade e da inclusão racial", lembra. Poucas horas depois, ficaria sabendo da internação de Natália e de sua morte. "Criei forças, informei as demais amigas do grupo e comecei a tentar fazer contato com a empresa em que Natália trabalhava para pedir auxílio. Eles deram todo suporte necessário para os familiares."

Natália Romualdo e Maristela Rosa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Natália (de blusa vermelha) em um evento de aceleração de carreiras; Fernanda Rosa está abaixada, à esquerda
Imagem: Arquivo pessoal

'Trabalho prático'

Fernanda diz que o legado de Natália está na inspiração que deixou e no trabalho prático para incluir outras mulheres negras em espaços de poder e privilégio. "Sou uma mulher preta que atuo com 'data science & analytics' [análise de de dados]. Na minha área existem poucas mulheres. A situação é ainda mais séria com as mulheres pretas. Elas lideram os piores índices de empregabilidade, saúde e renda", lembra.

Fernanda diz que, mesmo nas maiores empresas do país, as mulheres negras estão concentradas nos cargos mais baixos dentro das organizações. Raros são os casos em que ocupam cargo de chefia. E quando há acesso, em geral não há permanência nesses espaços. "Natália era uma mulher incrível, com uma personalidade forte e uma voz potente. Por onde ela passava deixava a sua marca. É assim que ela sempre será lembrada por mim."