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'A maior': Rita de Cássia deixa como legado mais de 500 letras de forró

Bandas como Mastruz com Leite, Cavalo de Pau, Mel com Terra, Rabo de Saia e Banda Aquárius gravaram composições da cearense, morta aos 50 anos - Acervo pessoal
Bandas como Mastruz com Leite, Cavalo de Pau, Mel com Terra, Rabo de Saia e Banda Aquárius gravaram composições da cearense, morta aos 50 anos Imagem: Acervo pessoal

Wagner Oliveira

Colaboração para o TAB, de Recife

08/01/2023 04h01

As roupas e sapatos que seriam usados nos finais de tarde e noites de domingo eram escolhidos no dia anterior. As festas eram assunto garantido nas escolas, faculdades e locais de trabalho. Não se falava em outra coisa na Região Metropolitana do Recife, no início da década de 1990, que não fossem as bandas de forró cearenses. Elas lotavam casas de shows na capital pernambucana e na cidade vizinha, Jaboatão dos Guararapes.

Entre as atrações, Mastruz com Leite, Cavalo de Pau, Mel com Terra, Rabo de Saia, Capital do Sol, Banda Aquárius, Catuaba com Amendoim, Calango Aceso e tantas outras bandas — que faziam um forró diferente do tradicional "pé de serra" a que o nordestino estava acostumado. O que muita gente não sabia é que, por trás do sucesso de todos esses grupos, havia uma única pessoa responsável por escrever quase todas as canções.

Rita de Cássia Rainha do forró - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
Rita com o sanfoneiro Dominguínhos e o irmão Redondo (de chapéu): parceria
Imagem: Reprodução/Redes sociais

Tímida e talentosa, Rita de Cássia compôs mais de 500 letras de forró, que foram gravadas pelas principais bandas e cantores da época. Também compôs algumas melodias. A menina que nasceu em Alto Santo, interior do Ceará, foi a 11ª filha de uma professora e um agricultor analfabeto que tiveram doze filhos. Aquela que ficaria conhecida como a maior compositora de forró do país, Rita de Cássia, morreu aos 50 anos na última terça-feira (3), vítima de uma fibrose pulmonar.

A doença, crônica e ainda sem cura, provoca cicatrizes no pulmão que causam o enrijecimento do tecido e dificuldade de respiração. Rita fora diagnosticada há cerca de um ano. De acordo com o Ministério da Saúde, a fibrose pulmonar idiopática pode ser definida como uma forma crônica específica da pneumonia. Os médicos acreditam que tabagismo, infecções virais crônicas ou até exposição a poluentes estejam entre as causas, embora possa ser uma doença hereditária.

A notícia da morte da compositora e cantora deixou os amantes do gênero de luto no país. As redes sociais foram invadidas por homenagens e mensagens de carinho. Rita estava internada na UTI de um hospital particular em Fortaleza. Seu corpo foi sepultado na quarta-feira em sua cidade natal.

Rita de Cássia Rainha do forró - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
Além de um talento sem igual para atualizar nas letras a alma romântica nordestina, Rita cantava e tocava violão
Imagem: Reprodução/Redes sociais

Primeiro hit, 'Brilho da Lua'

Filha e neta de sanfoneiros, Rita cresceu ouvindo Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Em casa, viu seu irmão Redondo aprender a tocar sanfona com o pai e foi tomando gosto pela música. Aos 7, foi levada pela mãe para cantar no coral da igreja e, já adolescente, começou a escrever as primeiras letras. As obras ficaram guardadas num caderno por muito tempo.

"Rita de Cássia é a maior compositora de forró do Brasil", afirma Emanoel Gurgel, empresário e dono do grupo SomZoom, responsável por uma longa parceria com a autora. "Ela tinha um talento enorme para falar de amor e contar o que as pessoas queriam escutar", conta Gurgel, que lembra que a compositora achava no início que ninguém acreditaria que ela tinha escrito aquelas letras.

O primeiro forró de Rita de Cássia a fazer sucesso foi "Brilho da Lua". A música já era cantada pela própria Rita, sem assumir autoria, até que, em 1991, ela decidiu oferecê-la à cantora Eliane — conhecida hoje como a rainha do forró. O sucesso estourou no ano seguinte.

Rita de Cássia rainha do forró  - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
A cantora Eliane gravou o primeiro forró de Rita de Cássia a estourar: 'Brilho da Lua'
Imagem: Reprodução/Redes sociais

Cantando pelo telefone

A própria Eliane relata em uma rede social: "O ano era 1991, a mocinha tímida que foi até a minha casa na Messejana me apresentar umas composições. Ritinha passou a tarde na minha casa com o seu violão apresentando seus sucessos para mim e meu amado pai Zé Lima. Ela me apresentou 'Brilho da Lua', 'Meu nego', 'Meu vaqueiro, meu peão' e 'Sonho real'. Escolhi 'Meu nego' e 'Brilho da Lua'. De 91 em diante, todo álbum tinha que ter clássicos dessa estrela."

Depois que "Brilho da Lua" ganhou o prêmio de música mais tocada em Fortaleza, Rita viu outra letra sua estourar nas rádios. Foi quando a banda Mastruz com Leite gravou "Sonho real". Mas seria em 1993 que ela ficaria nacionalmente conhecida, com a versão da Mastruz para "Meu vaqueiro, meu peão".

Antes de ser conhecida como compositora, Rita foi chamada pelo irmão Redondo para cantar na banda Som do Norte. Numa entrevista ao canal de YouTube da Mastruz com Leite, ela explicou por que os pais não a queriam deixar cantar: "O padre disse à mamãe que não deixasse eu ir porque eu era muito inteligente e iria me perder no forró. Eu fui e comecei a cantar, inclusive músicas de minha autoria, mas sem dizer que eram minhas."

Após o sucesso de "Sonho real" e "Meu vaqueiro, meu peão", Emanoel Gurgel procurou Rita de Cássia para pedir novas letras para o próximo CD da Mastruz com Leite. "Eu ainda não a conhecia pessoalmente, falávamos apenas por telefone e ela cantava as músicas durante as ligações para eu aprovar", lembra o empresário. "Um dia, Rita me apresentou cinco canções e eu gravei quatro. Todas fizeram muito sucesso."

Rita de Cássia rainha do forró  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
'Rita revolucionou o forró, com canções românticas e uma linguagem jovem', diz a cantora Bete Nascimento
Imagem: Arquivo pessoal

'Maior no talento e no tamanho'

O dono da SomZoom conta que somente a banda Matruz com Leite gravou cerca de cem músicas compostas por Rita. E que a produção era tanta que ainda tem letras inéditas da artista para gravar, entre elas uma canção que homenageia Luiz Gonzaga. "Rita é a maior compositora de forró desse país no talento e no tamanho, pois tinha 1,85 m. Lamento muito que o Brasil não tenha dado [em vida] o valor que ela merecia."

Rita colecionou, ao longo da carreira, muitos amigos e uma legião de fãs. Todos amantes das músicas que ela escrevia com maestria e simplicidade. Cantores, músicos e artistas de todas as áreas lamentaram sua partida. As cantoras que passaram mais tempo nos vocais da Mastruz com Leite, Bete Nascimento e Kátia Cilene, prestaram homenagens à autora em suas redes sociais.

"Rita foi a primeira mulher que revolucionou o forró com suas canções de letras românticas e com uma linguagem jovem", diz Bete, em entrevista ao TAB. "Além de grande compositora, foi também um grande ser humano. Uma pessoa amiga, alegre e divertida. Me sinto honrada de ter interpretado algumas de suas canções. São canções eternas que não podem faltar no meu repertório."

A ministra da Cultura Margareth Menezes escreveu que a morte da artista deixa o forró brasileiro de luto: "Rita de Cássia foi uma das maiores compositoras do gênero. Sua contribuição expressiva para a cultura do nosso país será sempre lembrada."

A deputada federal e ex-candidata ao governo de Pernambuco nas últimas eleições, Marília Arraes, postou uma foto com a artista no Recife. E declarou ao TAB: "Fiquei muito triste com a partida de Rita de Cássia, uma das maiores compositoras do forró e uma das minhas favoritas. Já fui a muitos shows dela. Como forrozeira que sou, sei do vácuo que a sua partida irá deixar."

Rita de Cássia rainha do forró  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Como forrozeira que sou, sei do vácuo que a sua partida irá deixar', diz a deputada Marília Arraes
Imagem: Arquivo pessoal

Fileira de sucessos

O amor, a poesia, o vaqueiro, o pescador, o sertão e a força dos sertanejos foram inspiração para quase todas as composições assinadas por Rita de Cássia. Entre outros sucessos da cearense estão "Tatuagem", "Barreiras", "Eu, você e o amor", "Passos na areia", "Pra viver eternamente" e "Onde canta o sábia" — a que dizia ser sua preferida.

Mesmo no período em que cantou na Banda Som do Norte ao lado do irmão, Rita seguiu escrevendo letras para outras bandas da SomZoom. A parceria com Redondo durou 25 anos e rendeu 16 CDs. Depois disso, a artista seguiu para carreira solo, em que gravou seis CDs, alguns com voz e violão, instrumento que ela também tocava.

A artista, que era separada, deixa dois filhos.