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'Sem ônibus nem cachê': Cavalo Marinho volta a Pernambuco após a pandemia

Com a troca do governo estadual, não vieram os brincantes da Zona da Mata, onde o folguedo nasceu, mas a família Salustiano manteve a tradição - Brenda Alcântara/UOL
Com a troca do governo estadual, não vieram os brincantes da Zona da Mata, onde o folguedo nasceu, mas a família Salustiano manteve a tradição Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Valentine Herold

Colaboração para o TAB, de Olinda

07/01/2023 15h34

Na Casa da Rabeca, o tempo parece não obedecer ao passar das horas das normas do relógio. Tudo ali é cíclico, mágico e único. Os fluxos dos brincantes do Cavalo Marinho e dos visitantes que, há quase 30 anos, acompanham as celebrações da Festa de Reis idealizada pelo saudoso Mestre Salu se encontram em um vai e vem hipnótico e certeiro, tal qual os movimentos da dança.

Localizado na Cidade Tabajara, em Olinda, o espaço cultural carrega um certo misticismo. Talvez seja a ancestralidade presente no terreiro, a poeira que sobe madrugada adentro com as pisadas no chão de terra batida, as rodas que se formam para que o folguedo aconteça ou a melodia contínua da rabeca, do pandeiro, do ganzá e do reco-reco.

Depois que a brincadeira começa, o tempo toma vida própria e segue — ora rápido demais, ora arrastando-se — o ritmo das toadas e das loas desta que é uma das mais tradicionais expressões populares de Pernambuco.

Festa de Reis em Olinda - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
A sexta-feira (6) marcou a retomada pós-pandemia da tradicional celebração do Dia de Reis em Olinda
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Ausência da Zona da Mata

Não foi diferente na noite desta sexta (6), data da retomada pós-pandemia das celebrações do Dia de Reis, seguindo a tradição dos grupos locais fecharem o ciclo natalino e darem início aos preparativos para o Carnaval.

Se normalmente dezenas de grupos do interior chegam à Cidade Tabajara para compor os festejos, este ano a comemoração teve que ser de casa, com os três Cavalo Marinho tocados pela família Salustiano. Com a troca de gestão do governo estadual, não houve garantia de incentivo financeiro para custear a vinda dos brincantes da Zona da Mata Norte, região onde nasceu o folguedo. Um sintoma do quadro de falta de continuidade dos incentivos para a cultura popular.

"No Brasil há uma falha grande ainda na salvaguarda, no estímulo e investimento financeiro na memória da nossa cultura popular. Sempre foi sofrido esse nosso fazer e vimos isso muito escancarado com a extinção do Minc nos últimos quatro anos. Queríamos muito que hoje estivessem presentes os grupos do interior, mas eles precisam de ônibus para vir e de um cachê digno", pontua Maciel Salustiano, músico, filho do Mestre e figura central na manutenção do legado do pai.

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'No Brasil há uma falha na salvaguarda da memória da nossa cultura popular', diz Maciel Salustiano
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Matriz indígena e africana

O Cavalo Marinho, assim como tantas outras manifestações da cultura popular brasileira, nasceu do encontro do saber dos povos originários com a riqueza cultural de matriz africana. "Quem era que construía a cultura? Quem trabalhava no pesado, os homens que cortavam cana, as mulheres que trabalhavam no roçado. Até hoje nossa Festa de Reis é feita por pessoas negras, que saem para trabalhar às 4h da manhã e, quando chegam em casa de noite ainda costuram as fantasias, e nos fins de semana reservam tempo para ensaiar e manter a tradição viva", ressalta Maciel.

Das 19h de sexta até o amanhecer do sábado, centenas de pessoas se reuniram para celebrar a volta da tradição depois da pandemia e a proximidade do tão aguardado Carnaval. Para muitos, parece que o período da folia de Momo já está aí, com purpurina e roupas coloridas e brilhantes, sentindo não ainda a embriaguez do frevo cantada por Alceu Valença, mas caindo no passo do Cavalo Marinho.

Quem aqueceu os trabalhos foi o grupo Boi da Luz, formado por crianças e adolescentes, netos e bisnetos de Salu, as novas gerações de brincantes. Depois foi a vez do Flor de Manjerona se apresentar, primeiro e único Cavalo Marinho formado apenas por mulheres, enquanto o encerramento dessa grande festa se deu com o Boi Matuto, o maior dos grupos, fundado por Mestre Salu.

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No enredo, Capitão Marinho dá uma festa de Santo Rei e chama Mateus e Bastião pra tomar conta do terreiro
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Enredo sobre as alegrias e anseios

Em uma apresentação de Cavalo Marinho, tudo começa com a chegada do "banco", a formação dos músicos, e a história se desenvolve dentro da roda. Quem comanda o folguedo é o Capitão Marinho, personagem que decide dar uma festa em homenagem ao Santo Rei e contrata Mateus e Bastião para tomarem conta do terreiro.

A partir daí, mais de setenta personagens, entre figuras humanas, fantásticas e animais, se sucedem por horas em cerca de sessenta cenas que contam não apenas essa lenda regional, mas também, de forma indireta, parte da história do País. Da tradição europeia e cristã do Dia de Reis nasceu uma forma brasileiríssima de falar sobre as alegrias e os anseios do povo trabalhador, com humor e ironia, tecendo críticas sociais e celebrando a vida.

Mesmo a escassez de recursos sendo sentida e cobrada pelos brincantes, ela nunca foi impedimento para realizar a festa. "Salu sempre dizia que 'com dinheiro ou sem dinheiro, a gente brinca!' Então, se hoje não conseguimos trazer os grupos da Zona da Mata, brincamos com os de casa", ressalta Imaculada Salustiano, também filha de Salu, mais conhecida no terreiro como Mestra Moca.

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'Apesar da resistência inicial, conseguimos a bênção deles', conta Mestra Moca, fundadora do Flor de Manjerona
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Mulheres na roda

Fundadora do Flor de Manjerona, ela lembra com um sorriso no rosto do momento em que decidiu, junto às irmãs, quebrar o paradigma masculino da brincadeira. Historicamente reservado aos bastidores, o papel das mulheres no Cavalo Marinho foi ganhando cada vez mais espaço nos últimos anos. Mas colocar um grupo exclusivamente feminino para brincar foi considerado, por muitos mestres, uma grande ousadia.

"Apesar da resistência inicial, conseguimos a bênção, o apoio deles. Decidimos fazer da forma que nosso pai ensinou, indo visitar os outros mestres pelo interior para conversar e continuar o processo de aprendizagem", conta Moca. A subversão muitas vezes necessária para trazer as tradições aos tempos atuais hoje encanta os brincantes e recebe o incentivo de toda a família.

"Até hoje, em muitos grupos, as mulheres não têm permissão de vestir certas figuras dentro do Cavalo Marinho. Com o Flor de Manjerona, espero que mais mulheres entrem para a brincadeira e formem seus grupos. Quem quiser aprender, estamos de portas abertas", diz Moca.

Legado familiar

A dedicação com que a família Salustiano perpetua o legado do pai vai além de manter o calendário das apresentações. Há uma preocupação em formar novos brincantes e transmitir esse saber, que não é ensinado nas salas de aula. É preciso tempo para isso, muito mais do que uma madrugada de Festa de Reis. Por isso, o ciclo do Cavalo Marinho se inicia em julho, chega ao ápice em 25 de dezembro e se encerra em 6 de janeiro.

Começo, meio e fim. Talvez a sensação do tempo fluido e incontrolável após uma noite de folguedo seja justamente por sentir que será preciso voltar de novo e de novo e de novo.