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'Destruição de reputação': ex-diretor de TV narra inferno pessoal em livro

Aaron no Festival de Cannes, em 2019: acusação de estelionato virou vida de cabeça para baixo e resultou num livro de autoficção sobre o submundo carioca - Arquivo pessoal
Aaron no Festival de Cannes, em 2019: acusação de estelionato virou vida de cabeça para baixo e resultou num livro de autoficção sobre o submundo carioca Imagem: Arquivo pessoal

Yuri Eiras

Colaboração para o TAB, do Rio

13/03/2023 04h01

Os pés de Aaron Salles Torres relaxavam à beira da piscina de um luxuoso hotel do Rio, na manhã de 9 de dezembro de 2020. À noite, os mesmos pés pisaram pela primeira vez em um presídio. Ainda hoje, é como se nunca tivessem saído dali: os três dias em que ficou preso afetaram toda a sua vida, daquele momento em diante.

O cineasta de 38 anos nascido em Três Lagoas (MS) fez curso de cinema nos Estados Unidos, dirigiu peças publicitárias, um longa-metragem e fez parte da equipe que produziu "Vai Que Cola", um dos maiores sucessos do humor brasileiro no Multishow, estrelado durante algumas temporadas pelo ator Paulo Gustavo. Agora, o portfólio de Aaron também tem um livro, que mistura ficção e graves denúncias sobre o que afirma ter sido um complô para levá-lo à prisão.

Volumoso — são mais de mil páginas — e carregado de drama, "Inferno e Danação: A Queda Irreal no Funil de Nietzsche" (Georgois Livros) será lançado em 26 de março, em São Paulo. O livro é um misto de romance e autobiografia, baseado nas histórias que Salles diz ter vivido.

São episódios de brigas, torturas, prisão e o que chama de "campanha de destruição de reputação", desde que seu nome apareceu na imprensa como o "diretor gay da TV Globo" preso em um hotel de luxo no Rio, acusado de tentativa de estelionato e associação criminosa.

O caso que o levou à prisão foi arquivado pela Justiça do Rio em abril de 2022, a pedido do Ministério Público. Mas o que foi publicado na internet não foi mais apagado, e Aaron ainda vive as consequências.

Diretor de TV conta história de perseguição - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Enredo de novela: Aaron com Marjorie Estiano e Enrico Cazzola nas gravações da série 'Noturnos'
Imagem: Arquivo pessoal

A prisão

Era para ser uma jornada de trabalho. Em dezembro de 2020, Aaron e seu então namorado, Jhony de Souza, desembarcaram no Rio para gravar um clipe publicitário para a MTV dos EUA. A permanência na cidade foi estendida quando souberam que Thaila Ayala, atriz que estrelou o comercial, apresentava sintomas de covid-19 e não poderia estar presente. Depois de se hospedarem em um hotel de Copacabana, reservaram por alguns dias o MGallery, em Santa Teresa, com vista panorâmica da cidade. Não chegaram sequer a entrar no quarto. "O check-in nunca foi feito", relembra o cineasta.

Ao chegarem, Jhony foi à recepção e Aaron para a área de piscina, onde iria trabalhar remotamente. Aaron desconfiou da demora do namorado, que só apareceu horas depois, já cercado por policiais. Jhony e Aaron foram presos em flagrante pela Polícia Civil por suspeita de usarem cartões clonados para pagar reservas em hotéis de luxo no Rio.

No inquérito, funcionários do hotel dizem que a história havia começado em janeiro de 2020, quando Jhony de Sousa teria usado diferentes cartões para custear uma hospedagem no hotel Fairmont. Segundo o inquérito, a tentativa acendeu um alerta na administração. O pagamento não foi concluído e funcionários fizeram em dezembro um boletim de ocorrência na 13ª DP (Copacabana).

O Fairmont pertence à Rede Accor, assim como o MGallery. Ao tentar fazer check-in em Santa Teresa, os seguranças perceberam que era a mesma pessoa do caso dos cartões, onze meses antes. Desta vez, Jhony estava sem o cartão de crédito utilizado para a pré-reserva. Os funcionários, acreditando se tratar de um novo golpe, acionaram a Polícia Civil, que levou o casal preso.

Diretor de TV conta história de perseguição - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A capa do livro, com mais de mil páginas e lançamento marcado para o dia 26, em São Paulo
Imagem: Arquivo pessoal

Vítimas ou mentores?

No inquérito policial ao qual o TAB teve acesso, Jhony e Aaron dizem que foram lesados por um estelionatário que trocava milhas em hotéis por dinheiro. Sob essa hipótese, eles seriam vítimas de um golpe, não mentores de um. O cartão utilizado para fazer a pré-reserva no MGallery estava em nome do operador de milhas, mas era clonado. O intermediador não foi envolvido no inquérito. Já o casal foi preso em flagrante e levado para a cadeia pública José Frederico Marques, em Benfica.

Nesse período, Aaron relata ter sido constrangido por policiais. "Policiais incitaram detentos a nos estuprar. Nada aconteceu porque eles têm mais decência", afirma. A Justiça do Rio liberou o cineasta e Jhony em 11 de dezembro: eram réus primários e não havia motivo para transformar a prisão em temporária.

Em novembro de 2021, a juíza Simone de Araujo Rolim, da 29ª Vara Criminal do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), determinou o arquivamento do inquérito, a pedido do próprio Ministério Público. Em abril de 2022, o processo foi arquivado definitivamente. A baixa ocorreu porque, seis meses após a denúncia, os representantes legais do hotel ainda não haviam se manifestado. Um funcionário foi o autor do registro de ocorrência.

Procurada, a Rede Accor afirmou que o MGallery "nunca registrou boletim de ocorrência contra o sr. Aaron Salles. O boletim de ocorrência registrado pelo hotel foi em nome de outra pessoa, por uso de diversos cartões de crédito clonados" e "cujos pagamentos das reservas foram negados pelo hotel". A rede defendeu que o boletim foi registrado "com o objetivo de preservar os direitos do empreendimento frente à contestação por parte dos portadores dos cartões". A Accor ressaltou ainda que a pendência financeira segue em aberto e que o hotel não tem qualquer relação com o inquérito.

O documento em que o Ministério Público pede à Justiça o arquivamento do processo foi enviado ao TAB. Nele, o promotor Felipe Rafael Ribas afirma: ainda que "haja indícios de que os indiciados tenham, de forma reiterada, praticado fraudes", não há uma terceira pessoa no suposto esquema, o que impede a tipificação de associação criminosa.

Diretor de TV relata perseguição - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Caso foi arquivado pela Justiça em 2022, mas o que foi publicado na internet não foi mais apagado
Imagem: Arquivo pessoal

Sem direito a esquecimento

Para a Justiça, Aaron não é mais um réu. Isso importa, mas não é tudo. Ao deixar a prisão, o cineasta deparou-se com uma enxurrada de links em suas caixas de e-mail e mensagens de WhatsApp. Jornais, programas de TV e portais de notícias, até mesmo os direcionados à comunidade LGBTQIA+, falavam do "casal gay preso por pagar hotéis de luxo com cartões clonados".

Aaron foi vítima de ofensas — "bicha trambiqueira", "quando vai ter selfie de sunguinha na cadeia?", "será que vai ter cama king no presídio" — e de montagens de grupos de extrema direita, como o "Direita Nilópolis": "171 Global! Diretor do Multishow preso (...) falava em 'corrupção' e 'ética' para atacar Bolsonaro".

No livro, Aaron diz que as redes sociais e a imprensa têm grande responsabilidade pelo que aconteceu. Ele afirma que não foi procurado por jornalistas para dar sua versão da história e que portais se negaram a retirar as notícias do ar, mesmo após o arquivamento do processo.

As imagens usadas pelos sites e jornais também formam o mosaico de ataque à reputação: à época, os portais usaram fotos de Aaron sem camisa, de sunga, ou de cueca, publicadas em seu perfil pessoal. Sites de pesquisa ainda mantêm no ar montagens e fotografias do cineasta — que entrou com um processo direcionado aos provedores Yahoo, Google e Facebook para retirá-las de circulação.

Roteiro do submundo carioca

Em trechos autobiográficos do livro, Aaron dá sua versão: ele desconfia que sua prisão foi um complô. Para ele, tudo o que aconteceu até culminar na cadeia, em 2020, é consequência de um caso em que se envolveu em 2017. Um episódio que ele associa aos poderes do jogo do bicho no Rio.

Na noite em que celebrava a estreia de seu primeiro longa-metragem, "Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe" (2017), Aaron estava num bar no Leblon quando viu uma agressão contra uma mulher. O cineasta foi defendê-la e diz ter desferido socos no agressor — "dei ganchos de esquerda", relembra. A confusão deu polícia.

Mas a vítima dos socos, ele afirma ter descoberto anos depois, seria Gustavo de Andrade, filho do bicheiro Rogério de Andrade, sobrinho de Castor de Andrade, icônico contraventor morto em 1997. Para Aaron, a agressão foi o estopim para tudo que aconteceu depois.

Conhecido como "Príncipe Regente" e "02", segundo denúncia do Ministério Público, Gustavo está preso desde agosto de 2022, acusado de participar dos esquemas de contravenção do pai. Rogério deixou a prisão em dezembro por força de um habeas corpus e usa tornozeleira eletrônica. A defesa de Gustavo foi procurada para confirmar a história no bar, mas não respondeu.

A reportagem do TAB procurou antigos funcionários e possíveis testemunhas daquela noite. Algumas sustentam que houve uma confusão envolvendo violência contra uma mulher e que Aaron estava envolvido, mas não confirmam a presença do filho do bicheiro. Procurada, a Polícia Militar afirmou não ter registros do caso.

Registros do caso

O inferno presente no título do livro voltaria a assombrar Aaron em janeiro de 2020, quando afirma ter sido vítima de uma perseguição pelas ruas da zona sul do Rio. Ao sair de um hotel, no início da manhã, viu um automóvel no seu encalço. Acuado, correu e entrou em um minúsculo banheiro de um café no Leblon. Segundo ele, a polícia, acionada, o machucou em vez de o proteger, e o levou na viatura para uma delegacia. A reportagem esteve no local e um funcionário confirmou o episódio em que um homem entrou em disparada, parecendo fugir de alguém. Mas não disse quem.

Os dois episódios, além da prisão, formam o mais tenso momento da vida de Aaron. Afastado dos trabalhos, o cineasta faz da publicação do livro um expurgo de tudo o que viveu. "Passei um mês em choque depois da prisão e escrever foi minha terapia. Deixei todo o resto de lado porque precisava, de alguma maneira, jogar isso para fora."