Ex-organista, estilista do papa Francisco cultua o corpo e só veste preto
Filippo Sorcinelli, 48, foge dos esquemas. Alto, barbudo, cabeça raspada, corpo malhado, tatuado, vestido de preto e gay assumido, pagou um preço alto por ser quem é: um artista eclético que decidiu não mais se esconder. E que costura para o papa.
A sede romana do ateliê recebeu o nome Lavs ("Laboratorio Atelier Vesti Sacre", laboratório-ateliê de vestes sacras, na tradução), fica no Borgo Pio, a dois passos do Vaticano, e reflete a personalidade forte de Sorcinelli. O preto é a cor predominante — é a cor da poltrona de couro onde recebeu a reportagem do TAB. O monocromático só é quebrado pelo tom colorido das túnicas produzidas para padres e papas.
Uma melodia sacra é ouvida de fundo. Nos pequenos gestos das mãos, que acariciam a barba ou a cabeça pelada, nota-se um emaranhado de linhas tatuadas no pulso.
Foi em Mondolfo, um vilarejo próximo ao litoral, na comuna de Pésaro e Urbino, que aprendeu a arte da alfaiataria e dos bordados, vendo a tia costurar. Anos mais tarde, já completamente fascinado pelo mundo sagrado, formou-se no Conservatório de Pésaro e se tornou organista titular de algumas catedrais próximas à cidade de Pésaro.
Em 2001, um amigo lhe telefonou dizendo que estava prestes a ser ordenado sacerdote e Sorcinelli imediatamente pediu ao amigo que não comprasse nada: ele mesmo prepararia tudo. Assim, por acaso, nasceu a Lavs — que em latim significa "louvor" e cuja sede central fica na cidade de Santarcangelo, na província da Emília-Romanha.
Do amigo ao papa
"Na igreja funciona o boca a boca", diz o italiano. Foi assim que conquistou Angelo Bagnasco, na época arcebispo de Pésaro. Anos mais tarde, em 2005, recebeu uma ligação do escritório das Celebrações Litúrgicas Papais, pedindo uma vestimenta para Bento 16. "Senti uma grande emoção, já tinha estado lá durante o Jubileu de 2000 como organista, mas dessa vez era diferente. O papa precisava de mim", diz ele.
No ateliê de Roma, Sorcinelli emprega dez pessoas, que se revezam na criação, costura e acabamento dos paramentos sagrados (as vestes sacras) — dependendo do pedido, um item pode demorar de dois a três meses para ficar pronto. Os tecidos usados são quase sempre de fibras naturais — algodão, seda, lã, damasco — e alguns mistos, como os que são feitos com lycra, definindo melhor o acabamento e dando um peso mais leve à vestimenta, que pode custar até 7 mil euros.
Toda a composição de tecidos, cores e acessórios que são usados nos paramentos destinados ao papa são definidos junto com a equipe de Celebrações Litúrgicas Papais.
Segundo Sorcinelli, Bento 16, o primeiro que atendeu, era uma pessoa muito culta e tímida, profundamente apaixonada pela igreja. Como católico, diz que está convencido de que os papas deveriam sair ou ser vistos cada vez menos. "Este personagem pertence a todos, mas não é para todos. Para os cristãos ele é quase intocável, quase inalcançável. 'Miserere', de Gregorio Allegri, hoje é cantada ao redor do mundo, mas lá atrás era considerada tão divina que não era permitido escutá-la fora da Capela Sistina", compara.
Quando Bento 16 faleceu, Sorcinelli sentiu um grande vazio. "Tenho marcado na memória o dia do funeral. Um nevoeiro incrível pairava na Praça São Pedro, cortando o mundo em dois. Foi bastante emocionante."
Sorcinelli é tão conhecido no meio litúrgico que acabou descobrindo ser famoso até no Brasil. Soube disso quando um jovem bispo auxiliar de São Paulo foi até lá comprar uma túnica. "Ele estava provando algumas peças, até que me olhou e disse que eu era muito famoso em São Paulo", conta o estilista, com um sorriso tímido no canto da boca.
Um fato curioso é que antes de descobrir que havia fãs no mosteiro beneditino de Ribeirão Preto, ele já havia tentado abrir um ateliê no país, mas isso foi antes da pandemia, que acabou fazendo com que a tentativa naufragasse antes mesmo de começar.
Preconceito via cartas anônimas
Seu ateliê fez a curadoria estilística da primeira missa do papa Francisco e o continua vestindo. Mas foi o pontificado de Bento 16 que marcou sua vida profissional e pessoal. Costurar para o papa lhe rendeu fama, os negócios cresceram, mas ele pagou um preço alto por isso.
Em 2013, cartas anônimas chegaram às redações de jornais e congregações, informando que Sorcinelli era inscrito na Arcigay, uma associação que luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ no país. Até aquele momento, o costureiro levava uma vida tranquila e era bem discreto no trabalho. O que fazia e com quem saía eram detalhes que pertenciam a sua vida privada. Mas, da noite para o dia, tudo mudou.
Ele se viu obrigado a se assumir publicamente. "Era um texto venenoso que de certa forma atacava meus clientes", disse. Quando soube das cartas, telefonou para o mestre-de-cerimônias do papa e para o cardeal Angelo Bagnasco. Depois, zarpou numa viagem em que rompeu definitivamente com o passado. Voltou outro homem. Assumiu quem era com orgulho e tatuou um emaranhado de linhas no corpo para lembrar que é um homem livre. Desde então, adotou o preto total.
"Quando acontecem coisas ruins, a gente precisa de tempo para elaborá-las. Precisava entender se poderia ser livre para ser eu mesmo. Tive muita sorte, porque fui capaz de sair deste momento delicado da vida com muita serenidade", conta o estilista.
Ao se olhar no espelho, Sorcinelli se lembra todos os dias desse momento de ruptura, pois o tatuou no corpo. Para ele, elas são visíveis através das linhas traçadas e entrelaçadas que percorrem o dorso, os braços, o peito, as mãos, as costas, as pernas que ele coloca à mostra nas fotos em suas redes sociais.
Católico praticante, vai à missa mas não faz a comunhão porque lhe é negada. Ele assegura que os padres apreciam sua sinceridade e, acima de tudo, o fato de não ter desistido da religião. Mas diz que vai à igreja à procura de Deus, não de um padre que lhe diga se está errado ou não. Com o papa Francisco, a igreja parece ter ficado um pouco mais tolerante, mas Sorcinelli diz: "até que haja um documento no qual a Igreja declare total abertura, não acredita em mudanças".
Tudo isso pode parecer contraditório, mas não para o estilista do papa. "Tenho minha fé, trabalho para igreja e não faço mal a ninguém."
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